As recentes discussões sobre a Proposta de Emenda Constitucional 37 de 2011 (conhecida como PEC 37) tem revelado à sociedade um debate frágil, baseado em afirmações superficiais, o que induz a conclusões equivocadas.
Na realidade, o foco da questão está bem distante de um aparente embate entre lados opostos, os bons e os maus, os justos e os injustos, os parciais e os imparciais.
Pensamos que é necessário, antes de mais nada, recordar alguns conceitos que são fundamentais para a compreensão da questão e também para a formação de uma convicção segura, já que a essência do debate maduro pressupõe a demonstração dos fundamentos, das razões e dos caminhos que nos levam à conclusão.
Para contextualizar a questão, o primeiro aspecto que gostaríamos de ressaltar é a importância do desenvolvimento histórico e gradativo do movimento social conhecido como Constitucionalismo. A análise histórica nos revela que a compreensão sobre o papel da Constituição sofreu alterações de acordo com circunstâncias políticas e sociais.
Na segunda metade do século XX, após as guerras lideradas por governos ditatoriais, que assumiram o poder com falsas propostas de aplicação da lei e da justiça e correção das disparidades sociais, a noção de Constituição passou a se inspirar em um modelo de norma jurídica superior do povo, orientada pelo reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, a Constituição Federal Brasileira de 1988 trouxe um modelo de Estado onde existe a divisão harmônica dos poderes com mecanismos de controle simultâneo que impede qualquer espécie de poder absoluto e antidemocrático. Portanto, é inadmissível que qualquer poder e sob qualquer argumento seja exercido arbitrariamente.
No que diz respeito à apuração de infrações penais, a Constituição demonstrou uma maturidade democrática ímpar, pois destinou esta importante atribuição às Polícias Civil e Federal, que a exercem de acordo com a lei e sob estrito controle do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Para preservar a dignidade humana, evitando abusos e perseguições políticas (como as realizadas por exemplo pela polícia secreta da Alemanha Oriental antes da queda do muro de Berlim) foi previsto um rígido sistema de direitos e garantias individuais.
A legislação brasileira estabelece que as investigações criminais só podem servir para apurar a existência de um suposto fato criminoso, que deve ser descrito na Portaria ou no Auto de Prisão em flagrante de um Inquérito Policial (cujo procedimento está regulado pelo Código de Processo Penal) e sob a responsabilidade de um Delegado, que nada mais é do que um profissional aprovado em concurso público, com formação jurídica (graduação em Direito) e com formação policial e investigativa na área penal.
O desenvolvimento da investigação está submetido ao controle por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos integrantes são profissionais aprovados em concurso público e com formação jurídica, mas sem formação policial ou investigativa na área penal.
Portanto, é nítido que esse sistema estabelecido pela Constituição de 1988 prevê tarefas específicas para cada um dos órgãos durante a fase investigativa da persecução penal.
O sistema de investigação brasileiro foi esculpido com a previsão da atuação harmônica e colaborativa entre os órgãos e os poderes de cada um são explícitos: a Polícia investiga, o Ministério Público exerce o controle externo e o Poder Judiciário alem do controle, também decide eventuais questões.
Nesta fase o objetivo é apurar se o fato criminoso descrito realmente aconteceu e quem o praticou. Portanto, é possível que a conclusão das investigações aponte que o crime existiu e quem foi seu autor, mas também pode ficar provado que o crime não existiu ou que o suspeito não foi seu autor.
Ora, se cada órgão exerce um papel definido neste cenário, eventual falha na condução das investigações criminais não pode deixar de ser apontada pelos órgãos de controle e submetida a rigorosa apuração.
A investigação criminal envolve interesse público, pois é a manifestação não apenas de um poder do Estado, mas também de um dever, cujo objetivo maior é a manutenção da paz social.
Por isso, entendemos que o destinatário da investigação criminal é o próprio povo, a sociedade como um todo, que, organizada e submetida à lei, precisa de um aparato Estatal harmônico, eficiente e adequado, para que seja evitado tanto o descrédito da ineficácia do Direito, quanto a injustiça dos excessos.
Importante ressaltar que nenhum outro país apresenta estrutura semelhante à brasileira para a apuração de infrações penais, na qual uma Autoridade Policial com formação jurídica e policial-investigativa Preside as Investigações Criminais e está submetida a duplo controle externo.
Em outros países, a Autoridade Policial, com formação exclusivamente policial e investigativa, deve buscar o respaldo jurídico necessário para sua atuação.
A palavra “investigar” tem origem latina e significa, genericamente, procurar, ir atrás, descobrir. Nesse sentido, qualquer um pode investigar: o repórter quando procura a notícia, o servidor público quando apura uma infração administrativa, etc.
Mas, deixemos bem claro que a investigação criminal é e deve continuar sendo atribuição exclusiva da Polícia, que a realiza apenas em Inquéritos Policiais, com submissão ao duplo controle externo efetivo, pois na prática verificamos que procedimentos instaurados por outros órgãos para investigar crimes permanecem anos em andamento, sem que diligências sejam efetuadas, certamente porque além do conhecimento jurídico é imprescindível a cultura e a formação investigativa somada à existência e efetividade de mecanismos reais de controle externo.
Mudar o sistema estabelecido significa reduzir os mecanismos de controle e retirar dos órgãos os deveres e atribuições que lhes competem no âmbito das investigações criminais, quais sejam, a Polícia de investigar com efetividade, o Ministério Público e Poder Judiciário de controlar a atividade investigativa.
Dividir atribuições, quando não é possível sequer fiscalizar com efetividade não é o caminho para se chegar à excelência qualitativa na prestação desse serviço à sociedade.
Talvez, o foco do debate esteja um pouco desviado, pois sabemos que a melhora qualitativa das atividades desenvolvidas por qualquer órgão se faz com investimentos em capacitação, recursos materiais, valorização profissional e, o mais importante, punição efetiva nos casos em que ficar comprovado que o dever não foi bem cumprido.
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