Sumário: 1. Introdução; 2. Divergência jurisprudencial sobre o tema; 3. Conclusão; 4. Referências.
1. Introdução
O direito penal objetiva proteger os bens jurídicos e valores essenciais à sociedade e aos indivíduos estabelecendo penas como instrumentos coercitivos. Este ramo do direito é regido pela ultima ratio ou princípio da intervenção mínima, ou seja, tutela somente os bens considerados de maior relevância para a sociedade, bem como só deve ser acionado quando os demais ramos jurídicos forem incapazes de proteger os bens mais relevantes. Outros princípios aos quais o direito penal deve subordinar-se são: o princípio da legalidade, da lesividade, da adequação social, da individualização da pena, da proporcionalidade, da responsabilidade pessoal, da insignificância, entre outros.
Segundo a teoria clássica o crime é composto pelo fato típico, pela ilicitude e pela culpabilidade. O fato típico engloba alguns elementos, quais sejam: a conduta, que pode ser culposa ou dolosa, comissiva ou omissiva; o resultado; o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; e a tipicidade formal e conglobante. A tipicidade formal é o ajustamento perfeito da conduta ao tipo penal previsto na lei.
Por outro lado, para que haja tipicidade conglobante é necessário que a conduta do agente seja antinormativa e materialmente típica. A conduta será antinormativa quando confrontar a norma penal, não for imposta ou fomentada por ela. Por fim, a tipicidade material é pela qual se pode cotejar a relevância do bem jurídico no caso concreto, a fim de decidir que o bem jurídico específico merece ou não ser tutelado pelo direito penal.
O princípio da bagatela ou da insignificância, proveniente do direito alemão, busca afastar da tutela criminal as condutas desprovidas de um grau mínimo de lesividade, que cause danos irrelevantes. Segundo Rogério Greco:
“o princípio da insignificância, defendido por Claus Roxin, tem finalidade de auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para fazer do âmbito da incidência da lei aquelas situções consideradas como bagatela.” (p. 65)
Ratificando tal pensamento, disserta Assis Toledo:
“segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se com bagatelas.” (p. 133)
Desse modo, conclui-se que a insignificância ou bagatela é causa excludente da tipicidade material do crime. Sobre o tema preleciona Fernando Capez:
“...se a lesão for insignificante, se não houver lesão ao bem jurídico, se não existir alteridade na ofensa, se não for traída a confiança social depositada no agente, se atuação punitiva do Estado não for desproporcional ou excessivamente interventiva, dentre outros, o fato será materialmente atípico...”(p. 187; grifo nosso).
O princípio da insignificância é dotado de certa subjetividade, devendo ser analisado em cada caso concreto e não poderá ser aplicado em todas as infrações penais.
A seguir analisaremos a possibilidade ou não do emprego deste princípio nos crimes ambientais, à luz da jurisprudência pátria. O presente estudo não se propõe a esgotar o tema, nem pretende adentrar nas minúcias doutrinárias da questão. Apenas busca evidenciar a divergência de entendimento dos tribunais pátrios, bem como a tendência de fortalecimento da tese da aplicabilidade do princípio da insignificância penal aos delitos ambientais.
2. Divergência jurisprudencial sobre o tema
A Constituição Federal de 1988 dedicou capítulo ao meio ambiente e o elevou a condição de direito fundamental. Assim diz o artigo 225, caput da Constituição, in verbis:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Estabelece ainda a Carta Magna em seu artigo 225, §3° que:
§3° as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Desta forma, resta claro que o meio ambiente é bem jurídico digno da tutela penal. Os crimes contra o meio ambiente estão regulamentados na lei 9.605/98.
Versa, no entanto, discussão a respeito da possibilidade ou não da aplicação do princípio da bagatela nos crimes ambientais. Isso se dá em razão de algumas peculiaridades inerentes a deterioração causada ao meio ambiente. A repercussão destes danos segue caminho próprio, ou seja, um dano ocorrido hoje em determinado lugar poderá se estender a diferentes localidades e por tempo indeterminado, sendo assim de extrema dificuldade, senão impossível, determinar sobre quem os efeitos deste mal incidirão. Bem como a prática reiterada de pequenos atos lesivos ao meio ambiente, embora insignificantes individualmente, acumulados podem gerar efeitos catastróficos. Na natureza tudo se encontra interligado, neste sentido preleciona Leal Junior:
[...] na natureza nada é isolado ou independente, tudo depende de tudo e se relaciona com tudo. Da mesma forma que a floresta (todo) não é apenas a soma das árvores que a compõem (partes), o dano a um dos indivíduos que compõem essa floresta não produz um efeito restrito a ele, mas pode alcançar o restante do ecossistema, por exemplo. Não se poderiam considerar isoladamente os danos causados ao meio ambiente, porque o impacto final dos mesmos não é igual à mera soma aritmética de cada um dos impactos individualmente considerados (2007).
Sob estes argumentos há uma corrente defensora da inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes ambientais. Neste sentido, os seguintes entendimentos jurisprudenciais.:
ACR 4083 SP 2000.61.12.004083-0 TRF 3ª Região
PENAL. CRIMES AMBIENTAIS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.
1. Os crimes ambientais são, em princípio, de natureza formal: tutelam o meio ambiente enquanto tal, ainda que uma conduta isoladamente não o venha a prejudicar. Busca-se a preservação da natureza, coibindo-se, na medida do possível, ações humanas que a degenerem. Por isso que o princípio da insignificância não é aplicável a esses crimes. Ao se considerar indiferente uma conduta isolada, proibida em si mesma por sua gravidade, encoraja-se a perpetração de outras em igual escala, como se daí não resultasse a degeneração ambiental, que muitas vezes não pode ser revertida pela ação humana. Precedentes do STJ e do TRF da 3ª Região.
2. Apelação desprovida.
ACR 150 RS 2008.71.03.000150-2 TRF 4ª Região
PENAL. AMBIENTAL. LEI Nº 9.605/98, ARTIGO 56. IMPORTAÇÃO E TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIA PERIGOSA OU NOCIVA AO MEIO AMBIENTE. GASOLINA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE DA TESE AOS CRIMES AMBIENTAIS.
1. Comete o crime previsto no artigo 56 da Lei nº 9.605/98 aquele que introduz e transporta no território pátrio substância de origem forânea (gasolina), perigosa ou nociva ao meio ambiente, em desconformidade com exigências legais e regulamentares.
2. O princípio da insignificância não encontra seara fértil em matéria ambiental, porquanto o bem jurídico ostenta titularidade difusa e o dano, cuja relevância não pode ser mensurada, lesiona o ecossistema, pertencente à coletividade.
Em contraposição há uma doutrina que advoga o emprego do princípio da bagatela nos crimes ambientais, contanto que a conduta não cause lesão ao bem jurídico protegido. Frise-se que nem todas as intervenções ambientais são capazes de impactar ou lesionar o meio ambiente, conforme no ensina José Leite:
“não é qualquer espécie de intervenção no ambiente que possui o dever de lesar efetivamente os interesses e pretensões das futuras gerações. [...] apenas lesões com contornos de gravidade e seriedade autorizam um juízo de contenção das atividades.” (2004, p. 237)
A existência de dano ambiental penalmente relevante pode ser extraída da própria Lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98), que em seu artigo 54 estabelece como crime, in verbis:
Art. 54 Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. (grifo nosso).
Da leitura do referido artigo depreende-se que só se configurará crime se houver poluição maior que um determinado nível, da qual decorram prejuízos significativos. Corroborando esta idéia seguem alguns julgados:
ENUL 2702 RS 2007.71.03.002702-0 – TRF 4ª Região
PENAL. PROCESSO PENAL. IMPORTAÇÃO CLANDESTINA DE COMBUSTÍVEL. INSIGNIFICÂNCIA RECONHECIDA.
1. Aplicabilidade do princípio da insignificância, pois ínfima a ofensa ao bem jurídico meio ambiente ou à proteção social ambiental, já que o potencial lesivo da conduta e do material transportado, seja pela quantidade de combustível, seja pelo valor dos tributos eventualmente iludidos, se mostra inapto a justificar a intervenção do direito penal.
2. Embargos infringentes providos para determinar o arquivamento do feito.
AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.320.020 - RS (2012/0087668-3)
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. PESCA EM PERÍODO PROIBIDO. ATIPICIDADE MATERIAL. AUSÊNCIA DE EFETIVA LESÃO AO BEM PROTEGIDO PELA NORMA. IRRELEVÂNCIA PENAL DA CONDUTA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO.
1. Esta Corte Superior, em precedentes de ambas as Turmas que compõem a sua Terceira Seção, tem admitido a aplicação do princípio da insignificância quando demonstrada, a partir do exame do caso concreto, a ínfima lesividade ao bem ambiental tutelado pela norma. Precedentes.
2. Muito embora a tutela penal ambiental objetive proteger bem jurídico de indiscutível valor social, sabido que toda intervenção estatal deverá ocorrer com estrita observância dos postulados fundamentais do Direito Penal, notadamente dos princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima.
3. A aplicação do princípio da insignificância (ou a admissão da ocorrência de um crime de bagatela) reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, permitindo a afirmação da atipicidade material nos casos de perturbações jurídicas mínimas ou leves, consideradas também em razão do grau de afetação da ordem social que ocasionem.
4. No caso, embora a conduta do apenado - pesca em período proibido - atenda tanto à tipicidade formal (pois constatada a subsunção do fato à norma incriminadora) quanto à subjetiva, na medida em que comprovado o dolo do agente, não há como reconhecer presente a tipicidade material, pois em seu poder foram apreendidos apenas seis peixes, devolvidos com vida ao seu habitat , conduta que não é suficiente para desestabilizar o ecossistema.
5. Agravo regimental a que se dá provimento a fim de acolher o recurso especial e absolver o agravante em face da atipicidade material da conduta praticada.
Pela análise da recente decisão do STJ, transcrita acima, que se posiciona pela possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos crimes ambientais, resta claro, que apesar de não unânime, a jurisprudência parece caminhar para uma consolidação nesse sentido.
3. Conclusão
Em que pesem as divergências doutrinárias e jurisprudências, entendemos ser perfeitamente aplicável o princípio da bagatela aos crimes ambientais. Contudo, para que isso ocorra faz-se imprescindível uma análise do caso concreto a fim de averiguar se o bem juridicamente protegido, de fato, não foi lesionado.
Ressalte-se que a incidência do princípio da insignificância a determinado caso não redunda na impunidade do agente, visto que o este poderá ser civil e administrativamente responsabilizado pelo dano causado. Destaque-se ainda que a aplicação deste princípio afasta a tipicidade material do crime.
4. Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988.
_______. Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesiva ao meio ambiente e dá outras providências.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume I. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva. O princípio da insignificância nos crimes ambientais: a insignificância da insignificância atípica nos crimes contra o meio ambiente da Lei 9.605/98. Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre, n. 17, abr. 2007. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao017/Candido Leal. htm Acesso em: 12 ago. 2010.
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004.
LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do indivíduo ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 1994.
Procurador Federal, Membro da Advocacia Geral da União. Graduado pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-graduado em Direito do Trabalho. Pós-graduando em Direito Administrativo e Direito Penal.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Felipe Grangeiro de. O Princípio da Insignificância Penal e sua Aplicabilidade aos Crimes Ambientais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35367/o-principio-da-insignificancia-penal-e-sua-aplicabilidade-aos-crimes-ambientais. Acesso em: 22 nov 2024.
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