Abstract: Hayek, Friedman and Nozic have roots in the liberalism of Adam Smith, but they don’t believe, like Smith, that only the laissez-faire is enough to guarantee the stability of the free-exchange and of the minimum State. Then they utilize arguments politics and philosophics with the scope of the State to intervene in the market.
Palavras-chave:Estado,laissez-faire e liberalismo.
Key-words: State, laissez-faire and liberalism.
1. Introdução
Algo de fundamentalmente comum entre Hayek, Nozic e Friedman é a defesa intransigente do Estado mínimo e do mercado autoregulável, conforme a tradição smithiana.Os três refutam veementemente a regulamentação do mercado por parte do Estado. E quando fazem isso, o alvo principal de suas críticas não é o Estado socialista, neste eles nem chegam a centrar a sua atenção, por considerá-lo como uma espécie de aberração. A crítica deles recai nos Estados intervencionistas sob o capitalismo. Ou seja, o maior alvo de suas críticas é o utilitarismo de Bentham e o Welfare-State de inspiração keynesiana. Eles concentram as suas críticas nos teóricos liberais revisionistas, digamos assim, isto é, aqueles que são heterodoxos em relação ao modelo lesseférico.
Se compararmos Smith com Hayek, Nozic e Friedman, verificaremos que para o primeiro apenas o self-interest e o mercado autoregulável são suficientes para colocar o Estado em sua condição de Estado mínimo. Em outras palavras: Smith tem por base a crença de que o self-interest e o mercado autoregulável, por si só, condicionam o Estado ao seu formato mínimo e subordinam a política à economia, por isso praticamente não há em sua teoria normas políticas para intervirem no mercado em caso de desequilíbrio do mesmo, pois a volta ao equilíbrio, segundo sua concepção, dá-se pela lei da oferta e da procura através da célebre mão invisível. Já Hayek, Nozic e Friedman não têm total confiança nesses dois mecanismos como sendo suficientes para condicionar o Estado mínimo e buscam outros mecanismos para impedir que o Estado vá além do Estado mínimo.
Em Smith, o Estado é um órgão eminentemente político: é o garantidor das leis sociais (que vêm do mercado), o garantidor da ordem (self-interest + mercado autoregulável) contra inimigos internos e externos. Assim, ele estabelece uma dicotomia na sociedade: de um lado fica a política (Estado), de outro a economia (mercado), esta a salvo de sofrer intervenção por parte daquela. No entanto, o tempo se encarregaria de mostrar que o Estado tem a propensão de ir além do formato mínimo, chegando ao ponto de comandar a implantação do capitalismo em alguns países (como a Alemanha e o Japão), de salvar o capitalismo de crises crônicas (como o crack de 1929), de planejar a macroeconomia capitalista (Welfare-State e keynesianismo) e até de implantar sociedades basicamente estatais (casos da sociedade socialista e da sociedade fascista).
Hayek, Nozic e Friedman percebem que somente a fórmula econômica smithiana não é suficiente para conter o Estado como Estado mínimo. Por isso, utilizam também argumentos extra-econômicos para justificar o Estado mínimo. Hayek e Friedman enfatizam argumentos políticos e Nozic enfatiza argumentos filosóficos (morais).Dos três, o único que poderíamos definir a rigor como economista é Friedman, justamente o menos sofisticado deles, sendo mais um propagandista de velhas fórmulas lesseféricas do que um inovador. Os outros dois estão mais próximos de serem filósofos e politicólogos do que economistas. Não obstante esses detalhes que os diferenciam, a preocupação precípua dos três é a subordinação da política à economia. A primeira somente é aceita para interferir na segunda se for com o escopo de garantir a integridade da infraestrutura capitalista, na qual a burguesia aparece como classe dominante; é o que veremos a seguir.
2. Hayek
Coerente ao que acabamos de relatar, Hayek combate o liberalismo francês do século XVIII e o construtivismo carteseano, pelo fato de o primeiro enfatizar o elemento político (liberalismo político) e o segundo enfatizar que a razão humana constrói o mundo social, isto é, o mundo político (leis, poderes) em última instância. Tanto o liberalismo político quanto o construtivismo são nocivos à proposta hayekeana de democracia restrita, da qual iremos tratar adiante. Ambas as doutrinas reforçam o individualismo consciente frente às amarras sociais (Hayek e a tradição smithiana defendem o individualismo inconsciente: o individualismo do homo economicus, o individualismo do mundo da economia, do mundo das necessidades, sendo contra o individualismo político). Ambas as doutrinas desaguaram na Revolução Francesa que tanto horrorizou os liberais conservadores, devido ao fato de ter proporcionado a ascensão das massas ao mundo proscrito (pelos liberais do laissez-faire) da política.
Essa ascensão das massas, que viria a ser combatida mais veementemente em toda a Europa no ano de 1848 (“Primavera dos Povos”), fez crescer dentro do liberalismo o seu campo conservador, cujos maiores expoentes viriam a ser Benjamin Constant, De Maistre, Tocqueville e Stuart Mill. Esses liberais começaram a pregar mecanismos políticos para limitar a ação das massas, para limitar o liberalismo político, o que não estava na fórmula smithiana.
Hayek faz de sua teoria uma refutação direta a esse liberalismo da tradição iluminista francesa (liberalismo político) e ao construtivismo, vendo no primeiro não um tipo de liberalismo, mas um embrião do socialismo. Ele denomina false individualism o liberalismo da tradição iluminista francesa, em oposição ao true individualism, que é o da tradição do iluminismo escocês (Hume, Adam Fergunson, Josiah Tucker e Adam Smith) e os posteriores liberais franceses conservadores: Montesquieu, Benjamin Constant e Tocqueville (Hayek,1990). Em suma, ele defende um liberalismo que afaste as massas do mundo da política e que as mesmas fiquem presas ao mundo da economia na qualidade de consumidores. Nesse sentido, ele argumenta que a sociedade é regida por normas gerais e abstratas, as quais são geradas espontaneamente pelas ações dos homens na sociedade (isto é, no mundo das necessidades) através dos tempos. Os homens ao viverem em sociedade vão-se habituando (aprovando) a algumas normas e refutando outras, de modo que as primeiras vão-se transformando em leis. Na verdade, o que ele quer dizer com isso é que as normas, leis, poderes, nascem estritamente no mundo das necessidades (economia) pelo simples fato de os homens viverem em comunidade. O hábito faz vingar umas leis e outras não, faz vingar um certo mundo político ao invés de outros. Ao defender essa tese que já estava em Montaigne e Hume, por exemplo, Hayek, implicitamente, quer restringir o elemento político, a política, como já o fizera Smith. Há nisso, uma intenção velada sua de excluir a política do mundo social, pois nela estão os conflitos entre grupos, classes... O que Hayek propõe, em última instância, é um mundo onde a política e a ideologia sejam atrofiadas, como se as mesmas não existissem, ou pelo menos não devessem existir.
A sua defesa de que a sociedade é regida por normas gerais e abstratas (as quais não resultam dos conflitos políticos e ideológicos, mas do viver comunitário e inconsciente dos homens), é uma maneira dele se opor ao construtivismo da tradição carteseana, o qual foi adotado pelo iluminismo francês do século XVIII, para o qual são os homens que constroem as normas sociais, que constroem a história, através da razão. E construir normas implica haver conflitos políticos e ideológicos, o que Hayek quer abstrair para o seu mundo idealizado das normas gerais e abstratas.
Também ao defender a tese das normas gerais e abstratas, há outra intenção velada sua de tentar (teoricamente) salvaguardar as normas gerais e abstratas que definem o capitalismo, as quais são: self-interest, mercado livre autoregulável e Estado mínimo. Salvaguardá-las de tentativas de mudanças (de ataques) pela razão construtivista. Defendendo a tese das normas gerais e abstratas, Hayek está objetivando afastar o debate acerca da construção racional das normas, quer enfraquecer a discussão política, quer enfraquecer a democracia.Quer distanciar dos indivíduos a vontade (justamente o elemento mais forte no esquema político de Rousseau e também no de Marx) e deixá-los apenas com opiniões, isto é, senso comum, algo que enfraquece a consciência política dos indivíduos, aliena-os politicamente, mantendo-os alienados no mundo das necessidades (como mostra a tese marxiana do fetichismo da mercadoria). Afastando a vontade, que é um elemento essencialmente político, Hayek deseja mitigar nos indivíduos a capacidade de exercer juízos de valor, deixando-lhes somente a capacidade de exercer juízos de fato, pois “os membros de uma sociedade aberta têm e podem ter em comum somente opiniões sobre valores, não uma vontade sobre fins concretos”(Hayek,1990:88).
No que concerne ao combate ao liberalismo político,Hayek tem como arrimo principalmente Tocqueville e Stuart Mill. Ambos os autores combatem a democracia da maioria, a qual eles denominam tirania da maioria. O primeiro faz opor-se à tirania da maioria o poder das associações civis, e o segundo o governo representativo com mecanismos restritivos ao voto.Hayek, a exemplo de Tocqueville e Mill, também busca encontrar mecanismos especificamente políticos para conter a democracia advinda com o surgimento das massas, condicionando a liberdade e a igualdade à propriedade, algo que já estava em Locke. Significa dizer que quem tem mais propriedade, deve ter mais liberdade e mais igualdade, isso é regra geral nos adeptos do laissez-faire.Hayek percebe, como Tocqueville percebera, que os indivíduos não se saciam com a igualdade, quanto mais desta adquirem mais querem ter. É isso que ele e os liberais em geral querem barrar. A igualdade, para ele, conduz ao caminho da “democracia ilimitada” e “a maioria dos adeptos da democracia ilimitada logo passa a defender a arbitrariedade”(Hayek,1983:127). Daí a sua oposição à própria democracia liberal, considerando que esta ao invés de ser um obstáculo à concentração do poder é um incentivo.
Em sua atual forma ilimitada, a democracia perdeu grande parte da capacidade de servir de proteção contra o poder arbitrário. Deixou de ser uma salvaguarda da liberdade individual, uma restrição ao abuso do poder governamental; quando se acreditava ingenuamente que, enquanto o poder estivesse sujeito ao controle democrático, poder-se-ia prescindir de todas as demais restrições ao poder governamental. Pelo contrário, a democracia tornou-se a causa principal de um crescimento progressivo e acelerado do poder governamental e do peso da máquina administrativa (Hayek,1981:58).
Em sua visão de democracia, a maioria deve respeitar (submeter-se a) princípios dos quais ela não participou de sua elaboração:
(...) não é antidemocrático tentar persuadir a maioria de que há limites, além dos quais sua ação deixa de ser benéfica, e de que deve respeitar certos princípios que não tenha diretamente criado. Para sobreviver, a democracia deve reconhecer que não é a fonte de justiça e que precisa aceitar uma concepção de justiça que não se manifesta necessariamente na opinião popular sobre questões específicas(Hayek,1983:128).
Por essa visão de democracia, as massas, com seu construtivismo racional, devem refrear o desejo de construir novas normas - como quando da Revolução Francesa -; devem refrear o desejo de modificar as normas gerais e abstratas.Caso contrário, podem estar sujeitas ao autoritarismo, à ditadura, a qual ele vê como antídoto a tentativas de ampliação de seu paradigma de democracia que acabamos de citar, porquanto, em seu entendimento, o “liberalismo é portanto incompatível com democracia ilimitada, tanto quanto é incompatível com todas as outras formas de governo ilimitado”(Ibid.:143).
Entretanto, ele não vê incompatibilidade entre liberalismo e governo autoritário: “uma democracia pode empunhar poderes totalitários, e é pelo menos concebível que um governo autoritário pode atuar com base em princípios liberais” (Ibid.).
Seu propósito fundamental é impedir que a política se intrometa no mundo da economia de mercado livre, pois a política, com o advento da industrialização, tornou-se fortemente contaminada pela democracia das massas, a qual ele abomina. E essa política (contaminada pela democracia das massas), ao se intrometer na economia, faz com que indiretamente a maioria decida como alocar os impostos arrecadados da minoria (rica), o que Hayek considera uma espécie de roubo, algo totalmente contrário à sua visão de democracia.
Acordo para a maioria compartilhar o espólio ganho por uma minoria dominante de compatriotas, ou para decidir quanto deve ser tributado desse espólio, isto não é democracia. Pelo menos não é o ideal de democracia que tenha uma justificativa moral. Democracia não é propriamente igualitarismo. Mas a democracia ilimitada é um salto para tornar-se igualitarismo (Ibid.:157).
Hayek coloca na democracia (nessa democracia que ele considera ilimitada) a culpa pelo fato de as leis do mercado livre não terem alcançado sua otimização.
Porque para Von Hayek a crise se deve, em última instância, ao abuso de a maioria democrática ter violado as leis do mercado. Entretanto, eu sustento que a crise responde a um sistema que tem um vício original, porque não permite que as leis do mercado cumpram o papel redistributivo que se lhes atribue (Prebisch,1981:160).
Quanto à separação dos poderes governamentais, ele propõe, em lugar da clássica separação sistematizada por Montesquieu, a formação de duas assembléias distintas e autônomas: uma contendo as leis gerais reguladoras da vida em sociedade (que se traduzem pelas leis gerais do laissez-faire: self-interest, mercado livre autoregulável e Estado mínimo) e a outra tendo o papel de executar e fazer executar as leis que estão na primeira assembléia, a qual ele denomina demarchy: uma assembléia composta de membros elitistas da sociedade que têm a missão de salvaguardar as leis gerais do laissez-faire. Através desse modelo de governabilidade,a política, contaminada pelo surgimento das massas,tem obstado o seu desejo de intrometer-se na economia de livre mercado. Assim, há nesse modelo de governabilidade um engenho político para combater a política, com o desiderato de manter o Estado em seu formato mínimo.
3. Nozic
Nozic busca justificar o Estado mínimo a partir de um ponto de partida fictício, que é o estado de natureza lockeano. Tal estado de natureza é, para ele, um estado anárquico, devido à ausência de um órgão centralizador da ordem. Diante disso, vão sendo formadas agências privadas de proteção para defender os seus clientes (que são aqueles que podem pagar pelos serviços dessas agências) dos perigos inerentes ao estado de natureza lockeano. Os indivíduos que não podem pagar pelos serviços dessas agências ficam sem proteção, diríamos sem justiça social. Naturalmente, por um processo de “mão invisível”, essas agências começam a competir entre si pela aquisição de clientes. Essa competição gera vários monopólios privados e também competidores entre si. Nozic nomeia esse estágio como Estado ultramínimo, no qual continuarão desprotegidos os indivíduos sem condições de pagar os serviços de proteção.
Segundo ele, essa primeira transição - “de um sistema de agências privadas para um Estado ultramínimo” - ocorre através de um “processo de mão invisível, em uma maneira moralmente permissível que não viola o direito de ninguém”(Nozic,1991:67). Não obstante esse “avanço”, é moralmente imprescindível que o Estado ultramínimo evolua para o estágio de Estado mínimo.
Seria moralmente intolerável que as pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos, mesmo que isso requeresse uma ‘redistribuição’ específica. Os operadores do Estado ultramínimo estão moralmente obrigados a criar o Estado mínimo (Ibid.).
O Estado mínimo é o segundo e último estágio no esquema de Nozic, isto é, quando os monopólios privados do Estado ultramínimo se transformam em um único monopólio (o qual é público): “Quando apenas uma agência exerce realmente o direito de proibir outros de usar seus procedimentos duvidosos para impor justiça privada, isso a torna o Estado de fato”(Ibid.:160).
De maneira que, o Estado mínimo passa a ter o monopólio do uso legal da violência, como já está em Weber. O Estado mínimo, ao contrário do Estado ultramínimo, protege a todos indiscriminadamente (os que pagam pela sua proteção e os que não pagam) no referente “às funções restritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento dos contratos e assim por diante (...)”(Ibid.:9). Ele é assim visto como um bem comum da nação, tal como está no ideário liberal.
Por essa compreensão, o Estado mínimo é alcançado através de um contrato tácito entre os indivíduos, portanto sem conflitos, pelo fato dele ser bom para todos na medida em que garante proteção aos que por ela pagam e aos que não pagam. Nozic tem essa fórmula como a ideal em termos de justiça social, pois um “Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas, o que não se justifica; e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo”(Ibid.). Dessa maneira, ele se posiciona frontalmente contra justiças redistributivas, como o modelo rawlseano, considerando que o Estado mínimo já cumpre por si só o papel de justiça redistributiva ao proteger todos os indivíduos de seus direitos naturais lockeanos. Para ele, o Estado mínimo “continua a ser o Estado mais extenso que se poderia justificar”(Ibid.:295).Tal como Hayek e Friedman, Nozic também ataca o utilitarismo.
“(...) O utilitarismo é notoriamente inepto nos casos de decisões em que está em jogo o número de pessoas (...). A maximização da felicidade total exige que se continue a adicionar pessoas até que sua utilidade total liquida positiva seja suficiente para compensar a perda em utilidade que suas presenças no mundo causam a outras”(Ibid.:57).
Este ataque não é fortuito,acontece pelo fato de o utilitarismo propor o bem-estar da maioria em lugar do self-interest. Ao ser contra um Estado além do mínimo, Nozic está sendo contra qualquer tipo de assistência social estatal aos menos favorecidos (os que não tinham condições de pagar pela proteção no estado anárquico e no Estado ultramínimo), por considerar que estes já conseguiram ganhos suficientes no Estado mínimo, ao receberem proteção mesmo sem pagar por ela. Para ele, isso é o máximo de justiça social que o Estado (mínimo) deve conceder. A partir desse ponto, continua cada um por si, competindo sob a regência da “mão invisível”. De maneira que, o Estado mínimo em sociedade é nada mais do que um protetor dos direitos naturais que já estavam no estado de natureza lockeano. Direitos naturais esses que não eram protegidos justamente pela falta de um Estado. Deliberadamente, Nozic optou por fazer corresponder o estado anárquico ao estado de natureza lockeano. Caso optasse pelo estado de natureza hobbeseano, ele teria chegado a algo que refuta rotundamente: o Estado leviatã, ou seja, um Estado muitíssimo além do mínimo. No estado de natureza lockeano a vida humana já está harmonizada, há o respeito aos direitos naturais básicos do homem: direitos à liberdade individual e à propriedade privada. No entanto, há o risco de vez ou outra alguém se arvorar em desrespeitar tais direitos. Por isso, Locke reclama a presença de uma instituição, uma agência protetora (para falarmos a linguagem de Nozic), que seja mais forte do que o conjunto dos homens e exerça o monopólio do uso legal da força física. Essa instituição é o Estado e sua função é basicamente protetora: proteger os direitos que já existiam no estado de natureza, por isso ele deve ser um Estado mínimo.
4. Friedman
Assim como Hayek e Nozic, Friedman, na qualidade de propagandista de velhas fórmulas liberais da tradição smithiana, também tem a preocupação central em reduzir o Estado a Estado mínimo e em subordinar a liberdade política à liberdade econômica. Raúl Prebisch assinala que a teoria de Friedman não “trata de novas ideias, mas de uma divulgação inteligente do pensamento neoclássico elaborado durante a segunda metade do século XIX”(Prebisch,Op.cit.:162).O mesmo Prebisch resume a essência do pensamento de Friedman aos seguintes pontos:
- O livre jogo de forças do mercado, sem interferência alguma, em um regime de plena competição, leva à melhor maximização dos fatores produtivos e à remuneração desses fatores segundo seu aporte ao processo produtivo.
- Para que isso suceda, é indispensável evitar as restrições à livre concorrência. Restrições que se manifestam tanto na combinação das empresas para aumentar os preços, como na combinação da força de trabalho para elevar suas remunerações.
- O Estado deve ser absolutamente previdente se recorrerá necessidade de aliviar a sorte adversa daqueles que no jogo da competição ficam no fundo do sistema. Dai o imposto negativo (para não dizer subsidio) que propõe Milton Friedman.
- Finalmente, há que frear a inflação regulando a criação da moeda e evitando o déficit fiscal de onde surge aquela. Dai também a necessidade de limitar o crescimento do gasto público(Ibid.).
Tanto quanto Hayek e Nozic, Friedman também enfatiza a necessidade de se preservar a liberdade individual, a qual é, para o liberalismo da tradição smithiana, a liberdade de os indivíduos agirem no mercado livre: comprarem, venderem, trocarem, firmar contratos...Essa ação dos indivíduos no mercado livre, cada um buscando maximizar seus interesses sem constrangimentos às suas atuações, ele denomina de cooperação espontânea, que nada mais é que o modelo de laissez-faire o qual aqui estamos tratando.
Ao assim considerar fica claro que a liberdade individual para ele é traduzida essencialmente pela liberdade dos indivíduos agirem no mercado. Tanto ele, como Hayek, Nozic e os demais seguidores do modelo lesseférico não estão preocupados com a liberdade política. Pelo contrário, como já vimos, Hayek defende a possibilidade de haver liberdade econômica sem haver liberdade política, isto é, haver uma sociedade de livre mercado sob um regime de ditadura.
Quando os liberais da tradição smithiana demonstram uma preocupação nodal em restringir a liberdade política, fica evidente que eles não têm uma total confiança na cooperação espontânea de que trata Friedman. Eles não acreditam que somente essa cooperação espontânea é capaz de regular harmonicamente a sociedade como um todo, sem que haja conflitos entre classes, aprofundamento das desigualdades sociais e monopólios. Por isso é que eles não abrem mão da força do Estado para assegurar essa cooperação espontânea. Vimos que Nozic considera condição sine quae non a existência de um único monopólio de proteção (de força) acima das atividades sociais do homem, e esse monopólio é o Estado mínimo. Friedman também vai pelo mesmo caminho. Para ele, o governo deve ser forte o suficiente para proteger a cooperação espontânea e não tão forte que possa vir a ser um estorvo a ela, isso é o que podemos depreender de sua fórmula de como conciliar “a vantagem de ter governo e evitar a ameaça à liberdade”:
1) limitando o objetivo do governo à função de proteger a liberdade dos indivíduos contra os inimigos externos e internos, preservando a lei e a ordem; reforçando os contratos privados; promovendo mercados competitivos e 2) descentralizando o poder do governo (Friedman,1977:11).
Esse é um drama dos liberais da tradição lesseférica: eles não abrem mão do governo e, concomitantemente, temem que o governo intervenha no mercado, na cooperação espontânea. Por isso, são contra o utilitarismo, o Welfare-State e o keynesianismo.
Friedman e seus pares neoliberais temem o poder político porque sabem que este poder pode propiciar uma ascensão das massas, seja pelo voto ou por revoluções. Devido a isso, ele defende que a liberdade política (poder político) deve estar contida (presa) na liberdade econômica (poder econômico) (Ibid.24).
Ele chega a ter uma certa aversão por eleições, considerando que o mercado é um aferidor bem mais eficiente de democracia do que eleições para o Legislativo e o Executivo, entendendo que o ato de comprar é um voto (sendo o dinheiro uma espécie de cédula eletiva) mais seguro democraticamente do que o ato de votar em uma eleição(Ibid.:23). Podemos interpretar o seu raciocínio da seguinte maneira: se numa eleição os votos têm, em tese, o mesmo peso; no mercado os pesos são diferentes e proporcionais: quem tem mais riqueza, tem mais votos (mais cédulas de dinheiro), isto é, mais poder aquisitivo.
Para Friedman, a “cooperação espontânea”, o “intercâmbio voluntário”, portanto o mercado livre, é por si só suficiente para assegurar o pleno desenvolvimento da vida social. Os valores de uma sociedade, sua cultura, suas convenções sociais, todos eles se desenvolvem de idêntica maneira, através do intercâmbio voluntário, da cooperação espontânea, através de tentativas e erros, de aceitação e rejeição (Friedman & Friedman, 1978:39).
5. Conclusão
Vimos nestes três teóricos neoliberais que acabamos de apresentar a contradição de que a democracia pode ser legitimada por um regime autoritário e que o Estado, que segundo eles e o liberalismo conservador em geral, não deve intervir na economia, pode e deve ser utilizado como instrumento decisivo para a imposição do laissez faire, o que contraria a tese fundamental de raiz smithiana, segundo a qual o livre mercado se sustenta por si mesmo como se fosse um ente ontológico, não necessitando de apoio estatal, sendo este visto como algo maléfico. Assim, a questão liberal é bem mais complexa do que ela geralmente aparece em discursos de seus seguidores e nas informações midiáticas. Trata-se de uma questão debatida por grande número de ideólogos e comentadores dos mesmos desde pelo menos o século XVII, quando Locke lançou seu texto fundador dessa questão. Entre esses ideólogos se destacam o próprio Locke, Montesquieu, Rousseau, Hume, Kant, Hegel, Voltaire, Diderot, De Maistre, Robespierre, Benjamin Constant, Adam Smith, Ricardo, Tocqueville, os federalistas, Stuart Mill, Benthan, Weber, Berlin, Hayek, Ralws, Nozic e Friedman. Cada um destes teóricos, além de vários outros, apresentam contribuições teóricas que geralmente convergem no todo ou em partes, às vezes não (caso dos iluministas franceses que serviram de referência para o eclodir da Revolução Francesa), com as bases liberais lançadas por Locke em seu Segundo tratado sobre o governo civil. Este livro corresponde a uma sistematização dos fundamentos do liberalismo, baseados no direito à propriedade privada (da expressão do pensamento, integridade do corpo e de sua extensão, isto é, os bens materiais, sobretudo os imobiliários). Sistematização essa que alcançou o seu estágio mais desenvolvido com o livro A riqueza das nações, de Adam Smith. Entre Locke e Smith, houve um grande desvio liberal representado pelo que Hayek, não sem razão, denomina false individualism, isto é, os liberais libertários iluministas capitaneados por Rousseau, Voltaire e Diderot.
Não obstante esse desvio, o liberalismo conservador, o true individualism, tornou-se hegemônico, inclusive dentro da Revolução Francesa, em sua fase termidoriana e,sobretudo,sob a ditadura napoleônica. A segunda contestação - não propriamente um desvio - sofrida pelo liberalismo conservador se deu no período de entreguerras, já no século XX, quando Keynes tornou-se um liberal proeminente por conta de apresentar propostas contrárias ao ideário laissez faire para a crise global capitalista provocada sobretudo pelo crash da bolsa de valores de New York em 1929. O keynesianismo, opondo-se ao liberalismo conservador, que nas décadas de 1980 e 1990 ganharia a alcunha de neoliberalismo, tornou-se hegemônico entre o fim da Segunda Guerra e começo dos anos 1970, quando o fim do Sistema Financeiro de Bretton Woods, a grande alta do preço internacional do petróleo e o endividamento externo de grande parte dos países em desenvolvimento levaram o mundo capitalista a uma nova crise global. Esse momento foi oportuno para que o neoliberalismo apresentasse saídas efetivas para a crise, baseadas na redução do Estado, através sobretudo de cortes de investimentos na área social e privatizações em grande escala, que em pouquíssimo tempo foi decisiva para a redução drástica da inflação, que era o grande problema a fazer a crise avolumar-se. Com isso, o neoliberalismo tornou-se hegemônico durante os anos 1980 e 1990, e ainda continua com muita força, malgrado quase ninguém queira se intitular como seu seguidor ou mesmo simpatizante. Até governantes que aplicam propostas dessa corrente econômica, política e filosófica, inclusive alguns que se dizem de esquerda, fazem grande esforço para se esquivar de serem identificados com algum traço neoliberal. Essa importância atual do neoliberalismo faz com que seu estudo seja ainda importante, daí a nossa contribuição com este texto que destaca alguns dos pontos principais dos mais influentes teóricos neoliberais.
Referências Bibliográficas
FRIEDMAN, Milton (1977).Capitalismo e liberdade. Rio de Janeiro: Artenova.
FRIEDMAN, Milton & Friedman, Rose. FRIEDMAN, Milton (1978). Liberdade de escolher. Rio de Janeiro: Record.
HAYEK, Friedrich von. .“El ideal democrático y la contención del poder”. Santiago de Chile. Estudios Públicos, n.1, diciembre de 1981.
______. Fundamentos da liberdade (1983). Brasília: Ed. UnB.
______. New studies in philosophy, politics, economics and history of ideas (1990). London: Routleadge and Kegan Paul.
PREBISCH, Raúl. “Dialogo acerca de Friedman y Hayek”, Santiago de Chile, Revista de la CEPAL, diciembre de 1981.
NOZIC, Robert (1991). Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar.
Pós-doutorando em História Social (USP). Doutorado em Sociologia (USP). Mestrado em Ciência Política (UNICAMP). Autor do livro Liberalismo e cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na virada do século XIX para o XX (Ed.UFRJ, no prelo).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BANDERA, Vinicius. Hayek, Nozic e Friedman: uma aversão à justiça distributiva e à participação política Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35414/hayek-nozic-e-friedman-uma-aversao-a-justica-distributiva-e-a-participacao-politica. Acesso em: 22 nov 2024.
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