A coloquialmente denominada nova Lei do CADE (Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011), que já passa de um ano desde seu nascimento, inserida em um cenário internacional de maior intervenção estatal economia e controle do mercado,trouxe maiores poderes àquela corte administrativa, reinaugurando debates sobre o sistema de defesa da concorrência pátrio, sua eficácia e perspectivas.
Da hodierna complexidade dessa seara jurídica e sua crescente relevância social – cada vez mais presente na vida do cidadão, vide repercussão da compra Garoto/Nestlé e da fusão LAN/TAM – nos salta aos olhos um fulcral questionamento no bojoda discussão sobre a disciplina jurídica em debate: qual o objetivo do Direito da Concorrência?
Isto porque, como se sabe, o Direito traz em sua essência uma característica deontológica marcada pela prescrição coercitiva – porquanto lastreada no poder de império estatal, diferindo-lhe das normas morais, por exemplo – de condutas sociais (comissivas ou omissivas) a fim de tutelar determinados bens jurídicos que no entender de determinada comunidade organizada (ou de seus mandatários, no sistema político representativo) possuem elevado valor.
O estudioso dessa seara jurídica logo percebe que inexiste univocidade nas decisões das cortes que apreciam a matéria concorrencial (alocado em diferentes âmbitos nos diversos ordenamentos jurídicos mundo a fora: administrativo, judicial, etc.) no respeitante ao desígnio do legislador em respeito à política de defesa da concorrência. Orase afirmater por objeto a defesa do consumidor, ora a defesa dos concorrentes, havendo ainda decisõesque elegem a existência de determinada estrutura de mercado e, desse modo, bem jurídico seria a concorrência em si. Nesse sentido, a decisão da EuropeanCourtof Justice nos casos C 501/06 P, C-513/06 P, C-515/06 P e C 519/06 P, envolvendo a GlaxoSmithKline Services Unlimited, de 6 de outubro de 2009[1]:
“ (…) it must be borne in mind that the Court has held that, like other competition rules laid down in the Treaty, Article 81 EC aims to protect not only the interests of competitors or of consumers, but also the structure of the market and, in so doing, competition as such. Consequently, for a finding that an agreement has an anti-competitive object, it is not necessary that final consumers be deprived of the advantages of effective competition in terms of supply or price (see, by analogy, T-Mobile Netherlands and Others, cited above, paragraphs 38 and 39).”
Nesse caso, diz ainda a Corte Européia que um dos objetivos da política de defesa da concorrência em sede da União Européia étambém a defesa de um singlemarketeuropeu (vide parágrafo 63 da decisão). A Corte o afirmouaoreformara decisãoda Court of First Instance, para a qual“while it is accepted that an agreement intended to limit parallel trade must in principle be considered to have as its object the restriction of competition, that applies in so far as it may be presumed to deprive final consumers of the advantages of effective competition in terms of supply or price”.Para outras considerações sobre esse caso vide Bruce Lyons[2] e Pinar Akman[3].
Em terras brasileiras, diferente não tem sido o entendimentoadotado pelo CADE. No caso SDE vs. Microsoft & TBA(Processo Administrativo nº08012.008024/1998-49)[4], entendeu a Corte que a limitação ao acesso de outras empresas ao mercado de softwares, por meio de credenciamento exclusivo da TBA pela Microsoft como revendedora de seus produtos junto ao governo federal consubstanciaria ilícito. A Corte Administrativa rechaçou, sem maiores considerações, um aspecto relevantíssimo na conduta da Microsoft, sua razão econômica. Porque a empresa preferiu um revendedor único, porque não abriu espaço para outros? Afigura-nos ser um simples e único motivo, havendo um único fornecedor há inexigibilidade de licitação (Art. 25 da Lei 8.666/93), considerando-se o “aprisionamento” decorrente da adoção pelo governo federal da plataforma Windows, incompatível com os programas da concorrência (peculiaridade que inevitavelmente restringe o mercado relevante na perspectiva do produto).
Nesse cenário, a licitaçãoseria um grande empecilho para ambos os lados, para a Microsoft e para o Governo, burocratizando e encarecendo a contratação (redução da eficiência econômica).Para aquela, evidente, porque deixa de vender, ou melhor, tem a venda de seus produtos postergada. Para o Governo porque com maior número de concorrentes há maiores formalidades no processo de contratação, abrindo ensejo ainda a impugnação ao edital – tanto administrativa comojudicial – enfim procrastinações de todos os tipos por parte dos licitantes. O custo acaba sendo bem superiorem função da licitação. Suprimindo-se essa a eficiência da cadeia produtiva sofreria uma melhora bastante significativa.
Considerou o CADE, nesse caso, que a concorrência é um bem em si, ou melhor, o bem jurídico a que visa tutelar o Direito da Concorrência. A supressão do certame implicaria na supressão da concorrência, algo por si só suficiente para se considerar a conduta da Microsoft como anticompetitiva. Desconsiderou-se, por completo ou efeitos pro-competitivos dessa prática comercial, ou melhor, sequer os investigou.
Esses entendimentos têm por pano de fundo determinada compreensão da ciência jurídica, que confere ao acoplamento sistêmico entreo Direito e a Economia, uma prevalência desta. Nesse sentido, Cristiane de Oliveira Coelho:[5]
“Diante desse panorama é compreensível que o direito tenha se voltado para a economia não com o objetivo principal de alargar seus horizontes depois de séculos de formalismo e reclusão, mas sim coma intenção de resgatar (ou instaurar, dependendo do ponto de vista) os conceitos de objetividade e certeza que os seus críticos faziam questão de sepultar. O predomínio da microeconomia neoclássica como fundamento da escola da Analise Econômica do Direito, que fica evidente por seu nascimento na escola de Chicago bem como por seus pressupostos teóricos, apenas reforça a tese.”
Contudo, assim, Deixa-se de se considerar, que a Law andEconomics não possui forças ou fundamentos suficientes para resistir à complexidade das relações sócias na contemporaneidade, falha na descrição e analise do fato social, na medida em que, como aponta com invulgar propriedade o professor da Universidade de Brasília (UnB)Marcus Faro de Castro:
“Por ser tributaria da visão de sociedade implícita na teoria microeconômica, ínsita `a Escola Neo-Clássica ou `a Ciência Econômica, a chamada ‘AnáliseEconômica do Direito’ é extremamente questionável, pois confunde ‘direito subjetivo’ com maximização de utilidade. Além disso, não tem fundamentos doutrinários para desenvolver a abordagem alternativa, acima indicada, que requer elementos apropriados ao desenvolvimento de analises capazes de focalizar inclusive aspectos fiduciários, e não apenas coercitivos, da economia (...)”[6]
Eis o ponto nodal, confundir direitos com utilidades. A perspectiva adotada pelas decisões das cortes dos diversos sistemas anti-trust, calcadas em um paradigma (VideThomas Kuhn,A Estrutura das Revoluções Científicas, 7ª Edição, Ed. Perspectiva, 2003) essencialmente preocupado com a objetividade do direito, sua forma (mundo das idéias) em detrimento do concreto (mundo dos fatos), torna inócuos os direitos humanos sagrados em âmbito internacional e constitucional, na medida em que eles dependem de políticas públicas para sua materialização. Ou pior, pode-se dizer que corriqueiramente sequer são tratados como direitos, mas apenas como serviços/produtos quaisquer.
Nesse sentido, o ilustre professorMarcus Faro de Castro:
“Sob essa perspectiva, é possível entender que, dependendo do conteúdo de uma dada politica, ela pode promover ou limitar a fruição de um direito. Acresce, ainda, o fatode vários indivíduos, grupos e organizações do mundo dos negócios, ou ligados a ele, caracterizam como ‘riscos’ o que os juristas descreveriam como ‘direito’. E, é óbvio, a visão do ‘risco’, corrente no mundo dos negócios, conecta-se com praticas de ‘gerenciamento de riscos’ nas instituições financeiras, que, por sua vez, tem se tornado objeto da regulação internacional de regulação bancaria, sob a forma de soft law: os acordos chamados ‘Basiléia I’ e ‘Basileia II’.
Tratar como ‘risco’o que muitos entendem ser ‘direito’, por si só, parece estranho, mas pode ter conseqüências jurídicas importantes. Assim, as definições sobre a metodologia de avaliação de riscos do acordo ‘Basileia II’, por exemplo, podem traduzir em limitações `a capacidade de fruição de direitos – neste caso, em decorrência de restrições na oferta de credito. De qualquer modo, o que parece claro é que a produção de políticas publicas pelo Estado em tese necessitaria ser compatibilizada com a efetividade dos direitos fundamentais.”[7]
Há de se considerar que a compreensão não poderia ser outra ao partimos de uma hermenêutica constitucional da política da defesa da concorrência. A livre iniciativa e a propriedade privada são direitosque se situam na base da ordem econômica da sociedade brasileira e do próprio Estado nacional (Arts. 1º, IV, 5º, XXII e XXIII e 170, II e IV, CF), encontrado limitação em seus exercício apenas em função de bens jurídicos outros, mais robustos frente a esses:a função social da propriedade, a defesa consumidor, em suma, a dignidade da pessoa humana (Igualmente Arts. 1º, 5º e 170, CF).
É este o bem jurídico e os direitos fundamentais que dele irradiam, que justificam e orientam a intervenção estatal na atividade privada, pelo que, sem sombra de duvidas, a Política de Defesa Econômica tem por objeto não a defesa da concorrência em si, enquanto estrutura de mercado, tampouco dos concorrentes, mas a defesa de uma conformação do mercado que assegure a fruição de direitos fundamentais. Ou seja, a defesa do ambiente comercial competitivo e dos concorrentes é apenas um meio para o atingimento da plena fruição dos direitos fundamentais pelos cidadãos.
Assim, podemos concluir que apesar de maculadas a concorrência e os concorrentes, em hipóteses nas quais forbeneficiada ou garantida a higidez dos direitos fundamentais (efeitos pro-competitivos), não há de se considerar a conduta como ilícito anticoncorrencial. Termos em que não nos afigura ultrapassada adicotomia entre ilícito per se e regra da razão amplamente difundida pelos manuais de Direito da Concorrência; não há de se falar em ilícito per se nessa seara, o melhor critérioésemprea regra da razão.
Ou seja, há de se averiguar caso a caso, nunca aprioristicamente ou de maneira generalizadora, se o arranjo econômico empreendido por um agente econômico (ou grupo deles) em determinado mercado relevante trouxe consequências negativas positivas para o consumidor final, seja direta ou indiretamente, como requisito necessário para ilações sobre a existência de um ilícito concorrencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CASTRO, Marcus Faro de; “Direitos Sociais, Economicos e Culturais: Uma Abordagem Pos-Necoclassica”, in Revista Jurídica da Presidência da República, vol. 7, n. 74, agosto/setembro de 2005. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_74/artigos/Marcus-rev_74.htm
CASTRO, Marcus Faro de; “Análise Jurídica da Política Econômica”, in Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, vol. 3, n. 1, junho de 2009.
COELHO, Cristiane de Oliveira. O Caráter Científico da Análise Econômica do Direito: Uma Explicação de Sua Influência como Doutrina Jurídica. Dissertação de Mestrado em Direito na Faculdade de Direito da UnB, 2008. Disponível em <http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4629>. Acesso em 10.6.2013.
COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro: Comentários a Lei nº 8.884/94. São Paulo: Saraiva, 1995.
SALGADO, Lúcia Helena. O conceito de mercado relevante. Revista de Direito Econômico, n. 26. 1997.
SAMPAIO DE FERRAZ, Tércio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2008.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e concorrência (estudos e pareceres). São Paulo: Malheiros, 2002.
[1]http://curia.europa.eu/jurisp/cgi-bin/form.pl?lang=en&jurcdj=jurcdj&numaff=C-501/06&nomusuel=&docnodecision=docnodecision&allcommjo=allcommjo&affint=affint&affclose=affclose&alldocrec=alldocrec&docor=docor&docav=docav&docsom=docsom&docinf=docinf&alldocnorec=alldocnorec&docnoor=docnoor&radtypeord=on&newform=newform&docj=docj&docop=docop&docnoj=docnoj&typeord=ALL&domaine=&mots=&resmax=100&Submit=Rechercher
[2]http://competitionpolicy.wordpress.com/2009/11/20/what-economics-effects-approach-how-europe%E2%80%99s-highest-court-has-thrown-a-spanner-in-the-works/
[3]http://competitionpolicy.wordpress.com/2009/11/25/the-%E2%80%98consumer-welfare%E2%80%99-delusion-in-glaxo-%E2%80%93-a-response-to-bruce-lyons/#respond#respond
[6] Castro, Marcus Faro de; “Direitos Sociais, Economicos e Culturais: Uma Abordagem Pos-Necoclassica”, in Revista Jurídica da Presidência da República, vol. 7, n. 74, agosto/setembro de 2005. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_74/artigos/Marcus-rev_74.htm
[7] Castro, Marcus Faro de; “Análise Jurídica da Política Econômica”, in Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, vol. 3, n. 1, junho de 2009.
Advogado da União, em exercício na Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Integração Nacional. Foi Analista Judiciário - Área Judiciária (1º lugar no certame), sempre lotado em Assessoria Jurídica de Ministros da 2ª Seção. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WASHINGTON CARDOSO ALKMIM JúNIOR, . O bem jurídico tutelado pelo Direito da Concorrência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jun 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35539/o-bem-juridico-tutelado-pelo-direito-da-concorrencia. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Luis Carlos Donizeti Esprita Junior
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Roberto Carlyle Gonçalves Lopes
Por: LARISSA DO NASCIMENTO COSTA
Precisa estar logado para fazer comentários.