1. OBSERVAÇOES INTRODUTORIAS SOBRE O INSTITUTO DA REPERCUSSAO GERAL.
A Emenda Constitucional n. 45/2004 trouxe mais um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, acrescentando um terceiro parágrafo ao art. 102 da Constituição Federal, que assim passou a dispor:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(...)
§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
Com efeito, o requisito da repercussão geral ou da transcendência, não foi criado pela EC em referência, pois a Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977, previu o instituto da argüição de relevância, estabelecendo no parágrafo 1º do art. 119, que:
“Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal:
(...)
§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal.”
Coube ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disciplinar com maiores detalhes o instituto, entretanto, o que se viu foi um rol com várias hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e ao final a seguinte possibilidade: “em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal”.
O intuito criador desse requisito foi conter a quantidade de recursos que chegavam ao Supremo e em sessões administrativas fechadas ao público se escolhiam as causas que deveriam ser consideradas relevantes, sem qualquer fundamentação.
Pois bem, previsto no art. 102 da Carta Magna, o requisito da repercussão geral está atualmente regulamentado pela Lei n. 11.418/2006, que acrescentou os arts. 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil.
Nos termos do art. 543-A, temos que:
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§ 2o O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§ 4o Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§ 5o Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 6o O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 7o A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.”
É sabido ainda que com a criação do instituto da repercussão geral, se estabeleceu no Supremo Tribunal Federal um procedimento para o julgamento do recurso extraordinário, este que repercute nos Tribunais Regionais e Tribunais de Justiça. Tal regime está previsto no art. 543-B, e parágrafos, do CPC.
“Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§1o. Caberá ao tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da corte.
§2o. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§3o. Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4o. Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§5o. O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobe as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.”
Não explicaremos o procedimento previsto nos parágrafos transcritos, entretanto, é de fácil observância que o julgamento da existência ou não da repercussão geral, num determinado recurso extraordinário, atualmente forma precedentes aplicáveis às causas semelhantes e embora o dispositivo do julgado tenha eficácia apenas entre as partes do processo, a sua fundamentação transcende esse aspecto subjetivo, projetando-se sobre as demais disputas envolvendo a mesma matéria.
Isso quer dizer que a decisão prolatada no julgamento de um recurso extraordinário não se restringe às partes diretamente envolvidas no feito, mas estende-se sobre terceiros, já que a própria Corte, ou os Tribunais locais, aplicarão àquela decisão aos processos sobrestados que possuírem idêntica questão.
Em outros termos, a Lei n. 11.418 introduziu verdadeiro efeito erga omnes como consequência do recurso extraordinário e esse foi o entendimento do STF ao resolver a questão de ordem no Recurso Extraordinário n.° 556.664, sendo determinado que o Tribunal de origem aplicasse o art. 543-B do CPC.
Portanto, não obstante as decisões proferidas em sede de recurso extraordinário pertencerem ao campo do controle difuso, a tendência atual é pela objetivação do controle difuso de constitucionalidade, assemelhando-se tais provimentos aos emanados no exercício do controle concentrado. Vejamos com mais profundidade tal questão.
2. O NOVO RECURSO EXTRAORDINÁRIO: CONTROLE DIFUSO X CONTROLE CONCENTRADO.
O recurso extraordinário consiste no instrumento processual-constitucional destinado a assegurar a verificação de eventual afronta à Constituição em decorrência de decisão judicial proferida em última ou única instância. As hipóteses de cabimento estão hoje previstas no art. 102, III, alíneas “a” a “d”, da CF/88.
Antes, porém, da promulgação da Constituinte de 1988, os recursos extraordinários destinavam-se a proteger tanto a ordem constitucional quanto o direito federal e esse foi um dos fatores que contribui para o abarrotamento do Supremo Tribunal Federal. Dentre outros fatores, temos a massificação de demandas nas relações homogêneas.
O elevado número de processos e a falta de celeridade na prestação jurisdicional marcaram então a “crise do extraordinário”, cabendo à Corte Suprema encontrar alternativas para tentar resolver o problema.
Uma delas foi a criação do recurso especial, o qual trataria de matérias de direito meramente infraconstitucional e seria julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, criado com a constituinte de 1988. Ademais, foram criados requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário, v.g., o prequestionamento, e mais tarde, como já dito, com a Emenda Constitucional n. 45/2004, criou-se o instituto da repercussão geral (na verdade, reformulou-se o instituto da argüição de relevância).
O recurso extraordinário faz parte do sistema de controle de constitucionalidade considerado concreto, difuso ou incidental, já que a questão da inconstitucionalidade surge como argüição incidente em um processo judicial ou como questão prejudicial que deve ser decidida pelo Judiciário.
Tal sistema contrapõe-se ao controle abstrato, concentrado ou autônomo, onde o ataque à inconstitucionalidade é feito por meio da propositura das denominadas ações de controle, elencadas no art. 102 da Constituição Federal, são elas: ação declaratória de constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, a ação direta de inconstitucionalidade, dentre outras.
Com efeito, existem dois modelos de controle atualmente no sistema judiciário brasileiro – caracterizando-o como um sistema misto ou eclético. Esses modelos coexistem como sistemas próprios, por possuírem características distintas, entretanto, o que se tem visto é que esses sistemas têm constantemente se confundido, já que observa-se, atualmente, a existência de um controle difuso, subjetivo quanto ao meio de provocação, mas objetivo quanto aos resultados e efeitos de suas decisões.
E o instituto da repercussão - aplicado a todos os recursos extraordinários independentemente da matéria nele versada - claramente tem sido um dos principais fatores na promoção da objetivação do controle incidental ou difuso, já que tem se destacado como um “filtro recursal”, possibilitando ao Supremo Tribunal Federal julgar somente uma vez causas de extrema relevância constitucional, repercutindo sua decisão sobre todos os casos idênticos existentes nos demais tribunais e órgãos judiciários.
Em outras palavras, a repercussão geral inaugura no sistema do controle difuso a eficácia erga omnes, pois as decisões proferidas no âmbito desse instituto, tem servido como paradigmas e, por conseguinte, se irradiam em todo o sistema judiciário nacional, cabendo aos juízes e tribunais aplicarem o entendimento do STF, a todos os casos idênticos, conforme art. 543-B, do CPC.
Ademais, a objetivação do recurso extraordinário, no plano processual, produz efeito vinculante, que se observa em dois momentos diversos: quando da admissão ou inadmissão da existência da repercussão geral da questão constitucional e quando da decisão de mérito do RE admitido pelo STF.
Assim sendo, e conforme já dito pelos arts. 543 – A e 543 – B, o STF deixará de julgar processos e objetivamente julgará questões constitucionais com repercussão econômica, social, político e jurídica.
A doutrina já percebeu as transformações pelas quais vem passando o direito processual brasileiro, conforme asseveram Fredie Didier Junior e Leonardo Carneiro da Cunha, transcritos na obra do prof. Ulisses Viana:
“O sistema de controle de constitucionalidade das leis no direito brasileiro tem passado, nos últimos tempos, por algumas mudanças bastante significativas (...).
Um dos aspectos dessa mudança é a transformação do recurso extraordinário, que, embora, instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem servido, também, ao controle abstrato. Normalmente, relaciona-se o controle difuso ao controle concreto da constitucionalidade. São, no entanto, coisas diversas. O controle é difuso porque pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional; ao controle difuso contrapõe-se o concentrado. (...) Normalmente, o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, por intermédio da ADIN, ADC ou ADPF, e o controle concreto, de forma difusa. O controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente, que será resolvida na fundamentação da decisão judicial; assim, a decisão a respeito da questão somente tem eficácia inter partes. O controle concentrado, no Brasil, é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei compõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela coisa julgada material, com eficácia erga omnes.
Nada impede, porém, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas abstrato: (...).”
Por fim, essa natureza “tropicalizada” do nosso sistema de controle de constitucionalidade, vem sendo construída especialmente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como pode ser visto na Medida Cautelar no RE n. 376.852/SC, relatada pelo Min. Gilmar Mendes, in verbis:
Ante o exposto, a repercussão geral criou uma nova modelagem constitucional do controle difuso, colocando tal modelo de controle numa perspectiva evolutiva e com vistas a dar racionalidade e efetividade a prestação jurisdicional de natureza constitucional.
3. O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DIANTE DESSE NOVO PARADIGMA.
Atualmente, a maior preocupação do Supremo Tribunal Federal, como bem retratado pelo Ministro Gilmar é de se reduzir, quantitativamente, o número de recursos submetidos à Corte, especialmente de recursos extraordinários e agravos, envolvendo controvérsias constitucionais surgidas incidentalmente em relações processuais intersubjetivas. Deseja ainda aquela Corte, vez por todas, se debruçar somente em questões relevantes e constitucionais, assumindo, segundo também o Ministro Gilmar, a função de Corte Constitucional e não Corte de Revisão.
E este é, especificamente, o principal objetivo do instituto da repercussão geral, que inserido no contexto do recurso extraordinário, não deve buscar somente a tutela do direito da parte, mas sim e precipuamente, a unidade do direito brasileiro mediante a compreensão da Constituição.
O instituto em estudo se justifica por ser capaz de gerar jurisdição de melhor qualidade e fazer valer o decidido pelo Supremo, já que as decisões proferidas tenderão a ser paradigmáticas e, por conseguinte, se irradiarão atingindo todo o sistema judiciário nacional, devendo ser aplicadas por todos os juízes e tribunais, de maneira mais célere e efetiva.
Ademais, e como bem assinalado por Pedro Lenza, a criação do instituto da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário é um instrumento que confirma o Supremo Tribunal Federal como uma verdadeira Corte Constitucional, em suas palavras:
“De fato, trata-se de importante instituto seguindo a tendência de se erigir o STF a verdadeira Corte Constitucional e, também, mais uma das técnicas trazidas pela Reforma do Judiciário na tentativa de solucionar a denominada “Crise do STF e da Justiça”. (grifos do autor).
Também Tereza Arruda Wambier afirma que:
“esta figura impede que o STF se transforme numa 4ª instância e deve diminuir consideravelmente, a carga de trabalho daquele Tribunal, resultado este que também acaba, de forma indireta, por beneficiar os jurisdicionados, que terão talvez uma jurisdição prestada com mais vagar, e haverá acórdãos, já que em menor número, que serão fruto de reflexões mais demoradas por parte dos julgadores.”
Dessa forma, o cenário que se construiu e que vem se aperfeiçoando com a adoção integral da sistemática da repercussão geral por todos os órgãos do judiciário brasileiro proporcionará uma maior efetividade e celeridade da prestação jurisdicional, e colocará o STF desempenhando sua real função constitucional que é a de resolver questões que de modo direto e grave atingem a estabilidade e a efetividade da ordem constitucional, com repercussão para toda a sociedade.
A nova sistemática instaurada com a repercussão geral representa assim uma via que produzirá um maior grau de segurança ao uniformizar a jurisprudência constitucional, impedindo a exponencial reprodução de recursos sobre a mesma questão constitucional.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ª edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
MENDES Gilmar Ferreira e COELHO Inocêncio Mártires e GONET BRANCO Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. Ed. rev. E atuali. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
VIANA, Ulisses Schwarz. Repercussão geral sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2010.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB e em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Helena Dias Leão. A repercussão geral como mudança de paradigma ante a objetivaçao do recurso extraordinário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35608/a-repercussao-geral-como-mudanca-de-paradigma-ante-a-objetivacao-do-recurso-extraordinario. Acesso em: 22 nov 2024.
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