RESUMO: O presente artigo tem como premissa verificar qual o bem jurídico tutelado no crime de tráfico de órgãos. Para tanto partimos do pressuposto a compreensão do conceito de bem jurídico, sendo este basilar do direito penal democrático, sendo reflexo da analise dos valores sociais a serem protegidos pelo sistema penal brasileiro. Desta forma visto como um dos principais mecanismos de controle social, o direito penal é instituído a partir de bens-jurídicos penais que tutelarão os valores sociais elencados pelos através de analises compatíveis com o ordenamento jurídico constitucional. Sob a ótica multidisciplinar do direito penal, da bioética e do bio-direito, será realizado um breve relato sobre os conceitos básico de bem jurídico e dos possíveis “tipos penais” do crime de tráfico de órgãos.
Este presente texto é prova que o direito é uma ciência multidisciplinar que utiliza de vários ramos para validar seus estudos e afirmações. Assim o debate utiliza de diversas contribuições extraídas de outros ramos científicos para esclarecer o rol taxativo da lei 9.434/97 em seus artigos 14 e 15, contrapondo estes com os conceitos já cristalizados de bem jurídico-penal a serem tutelados pelo Estado democrático de Direito.
Na primeira parte do artigo é discutido o conceito de bem jurídico em sua multiplicidade de interpretações em debate com dignidade da pessoa humana e a formação da lei penal, levando em consideração que os bem jurídicos protegidos pela lei penal são os mais importantes e fundamentais, mantendo as relações e o convício social, que em um Estado Democrático de Direito são de extrema relevância para sua manutenção e harmonia, assim como determinam quais bens devem ser tutelados pelo Estado. Entretanto não se trata neste momento de delimitar historicamente o termo bem jurídico, mas sim compreendê-lo na análise do tráfico de órgãos.
Logo após uma leitura das leis, normas e demais preceitos legais que vedam o comércio de órgãos humanos, e por fim uma explanação sobre qual o bem jurídico tutelado ou que deve ser tutelado no crime de Tráfico de Órgãos.
2. Os conceitos
Bem jurídico é um conceito que deve ser analisado na ótica histórica a qual pertence, ou seja, devemos ter em mente o desenvolvimento social e os valores de cada momento, pois que serão estes que nortearão os valores sociais e, por conseguinte quais devem ser tutelados pela esfera estatal. Tomemos como citações o nossos juristas Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2002, p.462) “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”.
Entretanto esta proteção deve ser balizada pela dignidade da pessoa humana em favor e defesa das garantias fundamentais, isto em um Estado Democrático de Direito, no qual o sistema penal se valerá a proteger os mais importantes para a sociedade no momento. O que nas palavras de Roxin (2006, p. 18-19), pode ser definido os bens jurídicos
como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.
Desta forma o bem jurídico a ser tutelado pelo Estado é aquele que garanta a todos o pleno convívio social, seria um bem de vital importância e indispensável para o desenvolvimento da sociedade. Assim o legislador ao elaborar as normas e leis, que permitam a proteção ao cidadão tem em si valores e ideologias que permitem a escolha dos bem jurídicos essenciais ao jurisdicionado, pois que define Paulo Vinicius Sporleder de Souza[1], ser tutelado
tudo o que aos olhos do legislador tem valor como condição de uma vida saudável dos cidadãos; tudo o que não constitui em si um direito, mas apesar disso, tem, aos olhos do legislador, valor como condição de vida sã da comunidade jurídica, em cuja manutenção íntegra e sem perturbações ela (a comunidade jurídica) tem, segundo o seu juízo, interesse, e em cuja salvaguarda perante toda a lesão ou perigo indesejado, o legislador se empenha através da norma. (SOUZA, 2002, p. 36)
Não basta ser um bem relevante ao desenvolvimento em convívio social, para ter o “stutus” de bem jurídico o bem deve possuir elementos que indiquem esta relevância, nas palavras de Vinícius Barbosa Scolanzi o chamado substrato subjetivo do bem jurídico, que para o autor é se define como o interesse do (e para o) ser humano em relação a um determinado bem existencial. Desta forma exemplificando, Scolanzi diz
A vida é um bem existencial; o interesse do ser humano pela vida (pelo seu surgimento, preservação, evitabilidade da sua destruição arbitrária etc.) constitui o substrato subjetivo do conceito de bem jurídico; esse vínculo ou interesse nada mais significa que uma relação social, que acaba sendo valorada positivamente pelo legislador [...] (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 232).
Por conseguinte vemos que é fundamental ao direito o interesse por meio do ser humano a determinados valores em sociedade que permitam a ele reconhecer como um bem jurídico, ou seja, é o próprio direito que transforma estes valores em consonância com o interesse humano em bem jurídico tutelado pelo Estado. Da mesma forma que para merecer a tutela penal, precisa possuir uma determinada dignidade penal, o que Souza (2008, p. 48) afirma ser “o atributo que reveste direitos e bens jurídicos, os quais, por serem relevantes e fundamentais para o indivíduo e a sociedade, são, em razão disso, merecedores da tutela penal".
Entretanto, estes bens jurídicos não possuem caráter eterno, com uma validade infinita e natural, são mutáveis e estarão sempre submetidos aos fundamentos jurídicos e as relações sociais de determinada época e sociedade. Para a proteção pelo direito penal, podemos fazer uma relação entre a constituição e a seleção dos bens-jurídicos tutelados pelo Direito Penal, mas não está somente ligados a escolha dos legisladores de quais seriam os tipos incriminadores, tem uma relação muito próxima do que a ciência jurídica afirma serem os valores tutelados, não estão totalmente limitados pela carta constitucional, pois que nas palavras de Roxin
A questão sobre qual a qualidade que deve ter um comportamento para que seja objeto da punição estatal será sempre um problema central não somente para o legislador, mas, também, para a Ciência do Direito Penal. Há muitos argumentos a favor para que o legislador moderno, mesmo que esteja legitimado democraticamente, não penalize algo simplesmente porque não gosta. […] a penalização de um comportamento necessita, em todo caso, de uma legitimação diferente da simples discricionariedade do legislador.(ROXIN (2006, p. 11).
Para Sporleder de Souza em seu texto sobre o assunto, somente a Carta Magna é capaz de legitimar e concretizar os bens a serem tutelados. Sendo que um dos princípios basilares de nossa carta é a dignidade da pessoa humana conforme presente no artigo 199, § 4°da Constituição Federal, por exemplo, quando veda qualquer forma de comercialização do corpo e suas partes.
Segundo Giovana Palmieri Buonicore, parafraseando Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade esta ligada a posição que a pessoa ocupa em relação ao reconhecimento que obtêm perante ao seu convívio, nas palavras de Sarlet
“há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, indissociável -embora altamente complexa e diversificada - vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constituiu, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa Humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009 IN: Buonicore, 2011, p.05)
A regulação destes princípios é respeitada pelos direitos e garantias fundamentais, sendo a dignidade o principal destes direitos respeitados em primeira ratio. Assim sendo, a criação dos bens jurídico-penais não podem afastar a análise da constituição na criação dos tipos penais incriminadores, mas também não pode ser a única forma de balizamento, e a perquirição ora proposta no texto, é de que apenas os bens apontados pela Constituição como socialmente relevantes podem ser tutelados pelo Direito Penal, ou poderíamos ter outros que não expressos são passíveis de tutela estatal.
Em nosso estudo fica claro que a não comercialização de órgão resguarda a dignidade da pessoa humana, sendo que esta é única, não passível de substituição, é a essência da condição humana superior a qualquer valor. Assim, por trás de uma política criminal adequada estará a dignidade como pedra angular na qual se apoiariam os tipos penais e sanções cominadas. Em nossa análise, mais precisamente no artigo 15 da lei 9.434/97, veremos a seguir quais bens são tutelados a afirmamos que merece uma atenção por nossos legisladores e juristas.
Nestas análises, vimos que a Constituição é o alicerce de todo o sistema penal, sendo os valores sociais mais importantes para a comunidade, os quais são dotados de dignidade penal. Verificamos que o legislador daria indicações constitucionais à tutela penal, mas o legislador teria apenas a função de transportar os valores indicados pelo texto constitucional e nas ciência jurídica como bens jurídico-penais para os tipos penais incriminadores.
Entretanto verifica-se que a dignidade trás consigo outras conceituações, como os direitos de personalidade. O direito de personalidade esta previsto no artigo 2º do Código Civil onde “A personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro[2]”. Segundo Silvio Sávio Venosa (2006,p.155) a personalidade jurídica “a projeção da personalidade íntima, psíquica de cada um, é a conseqüência jurídica, sendo todo homem dotado de direitos e obrigações”.
No entanto o que estamos à verificar não é o início da personalidade jurídica, mas sim o fim desta e sua correlação ao crime de tráfico de órgãos. No artigo 6º encontramos a definição que afirma que “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”, o que é importante para conhecer os efeitos jurídicos do desaparecimento da personalidade, sendo necessário conhecer o momento da morte.
Esclarecendo melhor o conceito, temos que a personalidade não é um direito em si, como define Venosa[3], mas que “há direitos que afetam diretamente a personalidade, os quais não possuem conteúdo econômico imediato. A personalidade não é exatamente um direito; é um conceito básico sobre o qual se apóiam todos os outros”, na mesma linha de pensamento Pontes de Miranda (2000, p.421), define a personalidade como uma qualidade jurídica e não possui caráter subjetivo, e ainda podemos dizer que são extrapatrimoniais, irrenunciáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, além de vitalícios e necessários, como descreveu o brilhante Orlando Gomes (2002, p.152).
Desta forma a partir de uma leitura dão direito de personalidade, nos chama atenção o direito a vida, a integridade física, a honra e a liberdade, em nosso caso de analise tomaram como base a integridade física a qual é tolhida pelo crime em questão na sua modalidade intervivos, quando lhe é retirado um órgão seja por vontade do ofendido ou contra a sua vontade, e a comercialização deste órgãos em diversos nichos.
Neste aspecto Adriano de Cupis (2004, p.24), destaca que a integridade física pode e é diminuída pela separação de parte do corpo, sendo que esta ação esta relacionado ao direito pelo cadáver. Estamos a pensar como esta separação deve ser criminalizada pelo legislador, sendo possível como dito anteriormente, haver a vontade por parte do ofendido nesta separação. O próprio Código Civil demonstra em seu artigo 13º as limitações na disposição do corpo quando diz que
Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costume. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Além desta vedação pelo nosso Código Civil, temos uma lei especial que rege o transplante de órgãos no Brasil e que em seu conteúdo proíbe a comercialização de órgãos, trata-se a lei nº 9.434/97, nem o órgão de vivos nem mesmo órgãos de cadáver deve ser fonte de lucros. O mesmo disciplina a Constituição Federal em seu artigo 199, § 4º40, veda qualquer forma do uso do corpo humano e suas partes com o fim de comércio.
3. Transplantes e o tráfico de órgãos
Para entender o tráfico de órgãos e o bem jurídico tutelado na Lei nº 9.434/97, é necessário compreender este procedimento específico no “qual se implanta um tecido ou órgão proveniente de um cadáver ou doador vivo, com o fim de que sejam desempenhadas funções semelhantes às que cumpria antes de ser o tecido ou órgão retirado”.[4]
Nas palavras de Giovana Palmieri Buonicore, citando Carlos Maria Romeo Casabona, transplantes de órgãos:
Tratam-se de uma técnica cirúrgica denominada cirurgia substitutiva, que se caracteriza em essência porque introduz no corpo do paciente um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecido, com o fim de subtrair a outros da mesma entidade pertencente ao receptor, porém que tenham perdido total ou sensivelmente sua função. A natureza deste tipo de intervenção, do ponto de vista do receptor, posto que em relação ao doador a situação é diversa, é de estimá-la, em conseqüência, como uma intervenção curativa, sempre que exista a indicação terapêutica e se aplique a técnica adequada ao caso[5].
A título de curiosidade, podemos dizer que alguns órgãos são mais comumente transplantados como o coração, pulmão, o fígado e os rins. Segundo Rita de Cássia Curvo Leite (2000) “o tempo de espera por um doador varia de acordo com o tipo sangüíneo e o tamanho do órgão. Pode ser de alguns dias a alguns anos. Somente cerca de 20-30% dos candidatos a transplantes em lista de espera consegue sobreviver até a chegada do doador”. E continua dizendo que ao se tratar de doenças relativas ao coração este paciente deverá ser avaliado de acordo com sua saúde quando as terapias convencionais já não atenderem ao caso.
Existem duas modalidades de transplantes, na primeira é feita a transposição dos órgãos entre sujeitos de direitos que estão vivos, esta modalidade é denominada intervivos, nestes termos o transplante deve ser realizado de maneira não onerosa tanto para o sujeito ativo (doador), quanto para o sujeito passivo (receptor) sendo vedado a venda de qualquer forma e maneira.
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, para a realização desta modalidade transplante, deve haver quatro requisitos, sendo eles: a capacidade do doador, autorização judicial, justificativa médica e vínculo familiar específico entre doador e receptor. No que tange a capacidade do doador é “a aptidão para ser sujeito de direitos e obrigações e exercer, por si ou por outrem, os atos da vida civil”[6]. Analisar a autorização judicial Coelho (2003) ressalta que
o potencial doador deve, através de seu advogado, requerer ao juiz que o autorize a praticar o ato. O requisito da autorização judicial só é legalmente dispensado na hipótese de transplante de medula óssea, quando capaz o doador. Nos demais casos, porém, a autorização judicial não pode ser negada, a não ser que reste comprovado o desatendimento a algum requisito legal. Em outros termos, se demonstrada a capacidade do doador, a justificativa médica e o vínculo familiar específico - inexistindo qualquer particularidade que a lei trate por exceção, como, por exemplo, a gravidez da mulher doadora -, o juiz não pode deixar de autorizar a doação de órgãos, tecidos ou partes do corpo para retirada em vida. ( COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva 2003. v. 1. p. 199.)
O mesmo autor continua discorrendo sobre a justificativa médica, em primeiro lugar só pode ser feita doação de órgãos duplos ou de parte de órgãos, tecidos, ou partes do corpo cuja retirada não cause a morte ou qualquer prejuízo à saúde do doador. Ao mesmo tempo torna-se necessário a declaração de um médico e um comprovante de vinculo família ou outro, que possa assim evitar a comercialização de órgãos, cabe aqui informar que o procedimento mais comum intervivos é o transplante de rins.
Segundo Buonicore, buscando esclarecimentos na Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos
O transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na transferência de um órgão (coração, pulmão, rim, pâncreas, fígado) ou tecido (medula óssea, ossos, córneas) de um indivíduo para outro, a fim de compensar ou substituir uma função perdida. Sendo assim, no transplante de rim implanta-se um rim sadio em um indivíduo portador de insuficiência renal terminal. Esse novo rim passará a desempenhar as funções que os rins doentes não conseguem mais manter[7].
Mesmo com a permissão judiciária, uma lei que ordena e organiza os transplantes, é ainda existem obstáculos na doação e retirada destes órgãos, e também uma fiscalização muitas das vezes falha o que abre caminho para que o tráfico de órgãos aconteça.
Segundo José Roberto Goldim (2005), estas dificuldades se acentuam, pois
A obtenção de órgãos de doador vivo tem sido muito utilizada, ainda é útil, porém é igualmente questionável desde o ponto de vista ético. Este tipo de doação somente tem sido aceita quando existe relação de parentesco entre doador e receptor. A doação de órgãos por parte de amigos ou até mesmo de desconhecidos tem sido fortemente evitada. As questões envolvidas são a autonomia e a liberdade do doador ao dar seu consentimento e a avaliação de risco/benefício associada ao procedimento, especialmente com relação à não-maleficência (mutilação) do doador[8] (GOLDIM, José Roberto. Aspectos Éticos dos Transplantes de Órgãos. Disciplina de Bioética I - Aspectos Fundamentais/UFRGS. Página de Abertura - Bioética. 2005)
A partir das estatísticas da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, houve uma redução nos transplantes de órgãos e tecidos em relação ao ano anterior, fazendo com que medidas sejam tomadas para retomar o crescimento. Estes dados permitem indagar o quanto é necessário estimular a política de incentivo aos transplantes, assim como afirmar o controle sobre a comercialização de órgãos.
Também cabe citar o caso de transplante no qual o doador é um cadáver (sujeito ativo) e o receptor (sujeito passivo) é um ser vivo, esta relação é denominada homotransplantes de cadáver. Neste caso, do ponto de vista jurídico constitucional, devemos ter em vista o direito que assiste à vontade dos familiares que substituirá a do de cujus. È o que nos assevera João Carlos Simões Gonçalves Loureiro, onde os transplantes de
morto para vivo implicam que se examine, de um ponto de vista jurídico-constitucional, sucessivamente, o status do cadáver, a relevância do consentimento do falecido sobre a utilização a dar aos seus órgãos, o eventual direito que assista aos familiares em caso do silêncio do de cujus, os procedimentos para tornar efectiva essa vontade. (LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Transplantações: um olhar constitucional. p. 30. In. : Buonicore, 2011, p.17)
Nos transplantes pós morte, temos que ater a requisitos básicos para a sua realização, o consentimento para a prática do ato e a incontestabilidade da morte. Além destes Madalena Lima[9] (2006), afirma que é necessário tomar algumas decisões como a finalidade terapêutica e a gratuidade da doação, o que só vem a corroborar com a necessidade de cercear este bem jurídico ainda em discussão neste teto.
Discutindo a doação pelo cadáver (sujeito ativo), temos que pensar o momento desta morte, e resguardar ainda a sua dignidade. Nos pensamentos citados por Buonicore (2011, p.16), “até 1960, morte era a parada do coração e dos movimentos respiratórios espontâneos, sendo a partir daí definida como morte cerebral e mais adiante e especificamente como morte encefálica”.
Em nossos tetos normativos a partir de 1997, em âmbito nacional o Conselho Federal de Medicina com a resolução CFM N° 1480/97 de 8/8/97, que declarou que a morte a ser declarada para estes termos é a morte encefálica. Da mesma forma define a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos e completa ser morte encefálica é definido como morte baseada na ausência de todas as funções neurológicas, sendo a definição legal de morte, sendo que esta morte encefálica seria a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro.
Após esta breve descrição sobre a morte em seu momento, partimos para esclarecer o consentimento que segundo a Lei de transplante de órgãos, 9.434/97, requisitos para retirada de órgãos, tecidos e partes do cadáver:
(...) a autorização do cônjuge ou parente de maior idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau inclusive (art. 4º); presença de suas testemunhas à verificação do óbito, que deverão subscrever o documento da permissão (art. 4º, última parte); a manifestação de vontade permitindo a extirpação em tais documentos poderá ser reformulada a qualquer momento antes da sua realização (art, 9º, § 5º); é vedada a remoção de tecidos, órgãos ou partes do cadáver de pessoa não identificada (art. 6º); na expressão tecido, não estão compreendidos o sangue, o esperma e o óvulo (art. 1º, § único). (Buonicore, 2011, p.17)
A partir da leitura de Buonicore, vimos o apoio em Parizi e Silva que “defendem que a doação é, sobretudo, um ato de solidariedade e como tal pressupões informação e conscientização, com a conseqüente sensibilização para ser efetivada verdadeiramente.
Estes requisitos, não são foco da discussão, mesmo assim necessários para investigar qual o bem jurídico tutelado na lei de transplantes. Ao mesmo tempo o requisito essencial para a doação é o consentimento, isto em ambas as modalidades, visto a proteção a dignidade da pessoa humana, a do cadáver assim como assegurar proteção aos doentes, o que permite afirmar ser necessário um maior cerceamento e fiscalização nos transplantes que possibilitem o sucesso do procedimento.
4. Sujeitos, tentativa consumação e o Tráfico de Órgãos
Para definir o sujeito ativo e passivo no crime em questão, tráfico de órgãos, e logo após o bem jurídico tutelado, tomemos como palavras basilares Zaffaroni e Pierangeli onde
os sujeitos podem ser ativo e passivo. Sujeito ativo é o autor da conduta típica. Sujeito passivo é o titular do bem jurídico tutelado. O sujeito passivo da conduta pode não ser o sujeito passivo do delito; aquele que sofre os efeitos do ardil ou engano no estelionato pode não ser necessariamente o que sofre os efeitos lesivos do patrimônio. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p. 475)
Desta forma no crime em questão o sujeito ativo seria qualquer pessoa, e se diferenciaria quanto ao sujeito passivo que poderia ser dois, no caso trafico de órgãos intervivos é própria pessoa que teve seu órgão retirado, o que muda ao analisar o do tráfico de órgão post mortem, onde o sujeito passivo é a família do morto.
Ao falarmos de tentativa e consumação, nos apoiamos nos ensinamentos de Luiz Flávio Gomes que define a
tentativa constitui o que a doutrina chama de delito in completo (há a intenção de consumar o crime de acordo com um determinado plano mas o agente não consegue por circunstâncias alheias a sua vontade), que só se torna punível em razão (em regra) da norma da extensão da tipicidade (e da punibilidade) contida no artigo 14, II, do CP. Na tentativa a ofensa ao bem jurídico se dá por meio de perigo (a lesão ao bem jurídico não chega a consumar). A tentativa, por isso mesmo, é forma de antecipação da tutela penal (o legislador não pune só a efetiva lesão ao bem jurídico, sanciona também a sua colocação em perigo). (GOMES, 2004, p. 247-248)
Desta maneira são perfeitamente possível as duas modalidades em plena consonância com os artigos do Código Penal. Assim temos na lei 9.434/97, o tráfico de órgãos possui como pena a reclusão, de três a oito anos, e multa, de duzentos a trezentos e sessenta dias-multa, na mesma pena incorre quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação, o que irá variar de acordo com o caso.
Após os debates iniciais, é perceptível o quão é necessário o estudo em questão, visto a dificuldade de orientações e escritos que possibilitem delimitar o bem tutelado, bem como uma tentativa de mapear esta situação que tende a aumentar devido a impunidade que assola o país.
O tráfico de órgãos ocorre em sua maioria em meio ao crime organizado, o que dificulta a fiscalização, pois que muitas das vezes envolve outros crimes e atividades ilícitas. O que mais assusta é que segundo dados da Câmara dos Deputados é uma das atividade mais lucrativas do mundo e que assola mais de 20 milhões de pessoas, alem de movimentar um montante de até 13 bilhões em todo o mundo[10].
Esta triste estatística, aliada a falta de definição e rigorosidade na fiscalização tende a aumentar a cada ano, mesmo sendo vedada a comercialização em todas as modalidades anteriormente descritas.
5. Considerações finais
O texto em debate analisou conceitos básicos do direito e do direito penal, na tentativa de encontrar o bem jurídico tutelado no crime de tráfico de órgãos, mesmo sendo hoje algo já refutado em debates acadêmicos. Verificou-se após os tópicos em estudo que a bibliografia sobre o tema e a jurisprudência sobre o mesmo são escassos. Desta forma uma definição que contribuiria ao viés jurídico nada de novo veio a trazer.
Mesmo criando hipóteses tanto no caso intervivos, como no caso pós mortem, não temos até o presente momento embasamento teórico consistente para afirmar qual deveria ser o bem jurídico a ser tutelado.
Entretanto cabe salientar que tal debate, assim como outros de cunho teórico são intermináveis dentro das ciências sociais. Entre as jurisprudências observadas não houve relevância no mencionado trabalho uma vez que o bem jurídico mencionado nos julgados eram gerais e colacionados em nossa constituição, como o da dignidade da pessoa humana. É mister observar que o delito em análise merece maior atenção pelo legislador, no entanto através de uma breve leitura do Projeto de Lei PLS - PROJETO DE LEI DO SENADO, Nº 236 de 2012, não verificou-se uma preocupação do legislador em tratar deste novo tema em termos jurisprudenciais.
Assim sendo, não se preocupou no texto em adaptar um bem jurídico já elencado em nossas jurisprudências, nem mesmo destoar dos debates já consolidados, procurou-se um início a discussão sobre o tráfico de órgãos que sem julgados e doutrinas em condições e quantidade necessária impossibilitou este mapeamento e uma elaboração teórica sobre a tutela pretendida na Lei de Transplantes.
Ademais o presente artigo contribui para futuros debates para que estes estejam alicerçados em um estudo qualitativo e quantitativo sobre o tráfico de drogas, da mesma forma que possibilita aos interessados uma discussão sobre a lei de transplantes que possibilite um maior sucesso do procedimento, assim como um maior cerceamento das ilicitudes ligadas ao tema em questão.
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[1] SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico Penal e engenharia genética humana. Coimbra, 2002.
[2] BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 03 abril. 2013d.
[3] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil - Parte geral. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 155-171
[4] PATITÓ, José A.; LOSETTI, Oscar A.; GUZMÁN, Celminia; TREZZA, Fernando C.; STINGO, Nestor R. Tratado de Medicina Legal y Elementos de Patologia Forense. Buenos Aires: Editorial Quórum, 2002. p. 1015 apud ÁVILA, Gustavo Noronha de. Da esperança aos dilemas: doação e comércio de órgãos humanos. Porto Alegre, 2006. p. 34.
[5] CASABONA, Carlos Maria Romeo, em el medico y el derecho penal: i - la atividad curativa (licitud y responsabilidad penal), BOCH, Barcelona, 1979, p. 200 apud LEITE, 2000, p. 110-111.
[6] BARROS. Washington Monteiro de. Curso de Direito Civil - Parte Geral. 39.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 66.
[7] ABTO - Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de transplantes. Ano XVI, n. 4, jan./dez.2010, p. 7. Disponível em: <http://www.abto.org.br/abtov02/portugues/ populacao/transplantes/manuaisDeTransplantes.aspx?idCategoria=5>. Acesso em: 14 abr. 2013
[8] GOLDIM, José Roberto. Aspectos Éticos dos Transplantes de Órgãos. Disciplina de Bioética I - Aspectos Fundamentais/UFRGS. Página de Abertura - Bioética. 2005. IN: IN: Buonicore, 2011, p.15.
[9] LIMA, Madalena. Transplantes - Relevância jurídico-penal (legislação actual). Coimbra: Livraria Almedina, 1996. p. 107. In: ÁVILA, Gustavo Noronha de. Da esperança aos dilemas: doação e comércio de órgãos humanos. Porto Alegre, 2006.
[10] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Tráfico de órgãos pode movimentar US$ 13 bilhões/ano. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/41199. html>. Acesso em: 8 abr. 2013.
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Acadêmico do Centro Univesitário Metodista Izabela Hendrix.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPOS, Wellington José. O tráfico de órgãos: breve análise da tutela ao bem jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36040/o-trafico-de-orgaos-breve-analise-da-tutela-ao-bem-juridico. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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