1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo trazer a baila o novo entendimento do Tribunal de Contas da União relativo a impossibilidade de se exigir nos editais de licitação que os bens sejam de fabricação exclusivamente brasileira.
A celeuma envolve basicamente a discussão entre dois princípios licitatórios, quais sejam: a isonomia e a promoção do desenvolvimento nacional, ambos previstos no art. 3º da Lei 8.888/93.
Desse embate, que, embora recente, levou a grandes discussões no âmbito da Corte de Contas foi recentemente solucionado, servindo o presente estudo de reflexão sobre o tema, sem intenção alguma de esgotar o tema.
2. Do princípio da isonomia
A Constituição prevê, em seu artigo 37, XXI, in verbis, que as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes:
Art. 37 - (...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações
No âmbito da legislação, também prevê o art. 3º, da Lei 8.666/93 que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, devendo ser processada em estrita conformidade com o princípio da igualdade.
Além disso, o §1º do mesmo artigo especifica ainda mais, vedando aos agentes públicos a inclusão de qualquer cláusula ou condição que comprometa o caráter competitivo do certame. Ademais, é vedado qualquer tratamento diferenciado entre empresas brasileiras e estrangeiras. Vejamos:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Redação dada pela Lei nº 12.349, de 2010) (Regulamento) (Regulamento) (Regulamento)
§ 1o É vedado aos agentes públicos:
I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991; (Redação dada pela Lei nº 12.349, de 2010)
II - estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991.
§ 2o Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:
III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
IV - produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País. (Incluído pela Lei nº 11.196, de 2005)
Logo, pela análise dos dispositivos acima, verifica-se que o princípio da isonomia é levado a sério no âmbito das licitações, pois se tem por intenção vedar qualquer caráter restritivo aos certames.
Com efeito, nas palavras de Marçal Justen Filho, a isonomia representa o livre acesso de todo e qualquer interessado à disputa pela contratação com a Administração.
Ainda segundo o pensamento do brilhante autor, em uma primeira fase (elaboração do ato convocatório), há um ato administrativo em que são fixados os critérios de diferenciação que a administração adotará para escolher o contratante.[1]
Todavia, as diferenciações no ato convocatório deve estar em consonância com o princípio da isonomia, sob pena de serem consideradas inválidas.
Para tanto, serão inválidas todas as situações em que a discriminação for incompatível com os fins e valores consagrados no ordenamento jurídico.
No presente caso, verifica-se que a Constituição, em seu art. 37, XXI prevê que ressalvados os casos especificados na legislação, as compras serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegurem igualdade de condições a todos os concorrentes.
Além do mais, o art. 3º, da Lei 8.666/93 estabelece que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia. Se não bastasse, os seus §§ 1º e 2º também esclarecem que é proibido cláusulas que restrinjam o caráter competitivo do certame, além de se vedar qualquer tratamento diferenciador entre empresas brasileiras e estrangeiras.
Dessa sorte, tem-se que o inciso II, do §1º, do art. 3º, da Lei 8.666/93 impõe um tratamento uniforme entre os licitantes nacionais e estrangeiros, de maneira que qualquer exigência ou requisito limitador deve ser aplicada de modo genérico.
De mais a mais, assegura o art. 5º, caput, da Constituição, a isonomia entre brasileiros e estrangeiros. Cumpre salientar ainda que a Constituição, em sua redação original, permitia tratamento diferenciado em favor de pessoas jurídicas nacionais. Porém, por força da Emenda Constitucional nº 06/95, houve revogação do o art. 171, não mais subsistindo o referido tratamento diferenciado.
Ainda nos socorrendo a Marçal Justen Filho, o ilustre escritor assim consigna:
“São vedadas discriminações diretamente fundadas na nacionalidade ou no domicilio do licitante. Mas também é proibida a discriminação indireta, envolvendo, por exemplo, a moeda, o local ou as condições de pagamento. Não se admite que o edital estabeleça uma exigência que somente possa ser atendida por um nacional ou que imponha regras que onerem de tal modo o estrangeiro que equivalham a inviabilizar a vitória de sua proposta.”[2]
Dessa sorte, os fins e valores consagrados pelo ordenamento jurídico não autorizam, regra geral, a diferenciação entre brasileiros e estrangeiros, de maneira que exigências não justificadas trazem para si o vício da ilegalidade.
Nesse ponto, observa-se que a lei trouxe a permissão de tratamento diferenciado em algumas hipóteses. Senão vejamos:
A) Tratamento privilegiado às Microempresas e empresas de Pequeno Porte, consoante art. 146, III, ‘d’ da Constituição;
B) Normas especiais relativas às contratações no setor de defesa nacional, consoante prevê a Lei 12.598;
C) A Lei 10.176/01 trouxe a possibilidade de se utilizar margem de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras;
D) O art. 3º, da Lei 8.248/91, também previu a possibilidade de tratamento diferenciado entre brasileiros e estrangeiros, dentre outras, na aquisição de bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país e na aquisição de bens de informática e automação.
Verifica-se, nessa senda, que há possibilidade de criar diferenciação entre brasileiros e estrangeiros. Contudo, deve a diferença constar na lei, de modo que sua constitucionalidade estará atrelada a justificativa de que a discriminação tenha relação com os fins e valores que se pretende alcançar com o certame.
3. Da promoção do desenvolvimento nacional
A medida provisória nº 495/10, ratificada pela Lei 12.349/10, acrescentou ao art. 3º da Lei 8.666/93, um novo princípio a ser observado no âmbito das licitações e contratos. Com isso, foi previsto uma nova destinação ao dever de licitar, que passou não apenas a observar o princípio da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa, mas também a promoção do desenvolvimento nacional.
Lucas Rocha Furtado deixa assente que o citado se trata verdadeiramente de um princípio licitatório, possuindo “potencial para influenciar diferentes aspectos e diversos procedimentos da licitação e do contrato”.[3]
Assim, como forma de trazer concretude ao referido princípio foram acrescidos os parágrafos 5º ao 12 no art. 3º, da Lei 8.666/93, senão vejamos:
(...)
§ 5o Nos processos de licitação previstos no caput, poderá ser estabelecido margem de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 6o A margem de preferência de que trata o § 5o será estabelecida com base em estudos revistos periodicamente, em prazo não superior a 5 (cinco) anos, que levem em consideração: (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
I - geração de emprego e renda; (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
II - efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais; (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
III - desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País; (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
IV - custo adicional dos produtos e serviços; e (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
V - em suas revisões, análise retrospectiva de resultados. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 7o Para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, poderá ser estabelecido margem de preferência adicional àquela prevista no § 5o. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 8o As margens de preferência por produto, serviço, grupo de produtos ou grupo de serviços, a que se referem os §§ 5o e 7o, serão definidas pelo Poder Executivo federal, não podendo a soma delas ultrapassar o montante de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 9o As disposições contidas nos §§ 5o e 7o deste artigo não se aplicam aos bens e aos serviços cuja capacidade de produção ou prestação no País seja inferior: (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
I - à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
II - ao quantitativo fixado com fundamento no § 7o do art. 23 desta Lei, quando for o caso. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 10. A margem de preferência a que se refere o § 5o poderá ser estendida, total ou parcialmente, aos bens e serviços originários dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul - Mercosul. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 11. Os editais de licitação para a contratação de bens, serviços e obras poderão, mediante prévia justificativa da autoridade competente, exigir que o contratado promova, em favor de órgão ou entidade integrante da administração pública ou daqueles por ela indicados a partir de processo isonômico, medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica ou acesso a condições vantajosas de financiamento, cumulativamente ou não, na forma estabelecida pelo Poder Executivo federal. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
§ 12. Nas contratações destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder Executivo federal, a licitação poderá ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos de acordo com o processo produtivo básico de que trata a Lei no 10.176, de 11 de janeiro de 2001. (Incluído pela Lei nº 12.349, de 2010)
Veja que os indigitados acabaram por instituir a chamada margem de preferência, tendo em vista que para sua utilização levará em consideração aspectos relativos a geração de emprego, arrecadação de tributos e desenvolvimento tecnológico, ou seja, tudo intimamente ligado a promoção do desenvolvimento nacional.
Nessa senda, são as seguintes as palavras de Lucas Rocha Furtado:
“A nova finalidade fixada para a licitação e refletida na mencionada margem de preferência autoriza, então, também nova finalidade para o contrato administrativo. Frise-se que esta é a maior e principal alteração introduzida pela MP nº 495/10: um proposito adicional para o contrato administrativo. Além de servir de instrumento para o atendimento de necessidade da Administração que motiva a realização da licitação, passa, a partir da MP nº 495/10, a constituir também instrumento da atividade de fomento, voltado, dessa forma, não só para os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado.” [4]
Com efeito, com a instituição da margem de preferência foi admitido verdadeira exceção ao princípio da isonomia, pois, consoante § 8º do dispositivo acima citado, se tornou possível adquirir bem ou serviço com margem adicional de até 25%, desde que cumpra os demais requisitos.
Em outras palavras, se o certame admitir a margem de preferência, se torna possível ser vencedor de um certame cujo preço é maior que os demais licitantes. Se a empresa cumprir os requisitos previsto no edital para fazer jus a margem adicional poderá ter preço 25 % superior aos demais que se sagrará vencedor.
A ideia, com isso, é que esse licitante tenha custos adicionais, os quais em decorrência de seu investimento no desenvolvimento nacional teria essa preferência em relação aos demais, sobretudo estrangeiros.
Dessa forma, conforme atesta Marçal Justen Filho, “o legislador pretendia era determinar que a contratação pública fosse concebida com um instrumento interventivo estatal para produzir resultados mais amplos do que o simples aprovisionamento de bens e serviços necessários à satisfação das necessidades dos entes estatais.”[5]
Por esta razão, parte dos gestores passaram a entender que a norma era auto aplicável, sendo a margem de preferencia uma das formas de se promover o desenvolvimento nacional.
Com esse pensamento, alguns órgãos administrativos passaram a realizar licitações exigindo que os produtos fossem exclusivamente de produção nacional.
Nessa senda, entenderam que os produtos de fabricação exclusiva brasileira teria o condão de elevar e promover o desenvolvimento nacional, através da geração de emprego e renda, maior arrecadação tributária, além de promover o desenvolvimento do país, pois o dinheiro se manteria em circulação no país.
Veja que todos os critérios utilizados para realizar a referida exigência se encontram previstas no próprio art. 3º, § 6º, da Lei 8.666/93.
Instalou-se, portanto, uma celeuma, entre o princípio da isonomia e o princípio do desenvolvimento nacional sustentável.
4. Da vedação a se exigir fabricação exclusivamente brasileira nos editais de licitação
A celeuma principiológica foi grave. O próprio Tribunal de Contas da União não encontrou solução durante muito tempo. Inclusive, enquanto não se decidia, a Corte autorizava a realização de licitações que exigissem fabricação exclusivamente nacional, desde que o órgão não realizasse mais tal restrição.
Em outras palavras, o TCU autorizava excepcionalmente a contratação, alertando ao ente para a não repetição da cláusula limitativa. Vejamos alguns exemplos:
Acórdão :
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de representação sobre possíveis irregularidades no Pregão Presencial nº 44/2012, realizado pela Prefeitura Municipal de Conquista/MG.
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante as razões expostas pelo Relator, com fundamento no art. 237, inciso VII, do Regimento Interno/TCU, em:
9.1. conhecer da presente representação;
9.2. considerar prejudicado o pedido de medida cautelar;
9.3. autorizar, excepcionalmente, a Prefeitura Municipal de Conquista/MG a concluir a contratação decorrente do Pregão Presencial nº 44/2012, abstendo-se de promover novas licitações, que sejam custeadas com recursos federais, cujo objeto seja equipamento exclusivamente de fabricação nacional, até que este Tribunal delibere sobre a questão;
(TCU, Acórdão 1.246/2012, Plenário)
Em exame a representação formulada pela Makbrazil Importação de Máquinas e Equipamentos Ltda. sobre possíveis irregularidades no Pregão Presencial nº 24/2012, realizado pela Prefeitura Municipal de Cachoeira de Minas/MG, tendo como objeto a aquisição de uma máquina patrol motoniveladora, de fabricação nacional, para manutenção das estradas vicinais e serviços correlatos no município, com recursos provenientes do Contrato de Repasse nº 2691.0370.941-96/2011, firmado com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
2. Em síntese, a representante alega que a exigência de fabricação nacional para a máquina patrol motoniveladora a ser adquirida restringe a competitividade do certame e contraria o art. 3º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.666/1993.
(...)
6. Tendo em vista que, até o momento, não se tem o resultado da atuação do grupo de trabalho, aprovo a proposta de conhecer da presente representação, considerar prejudicado o pedido de cautelar e autorizar, excepcionalmente, a Prefeitura Municipal de Cachoeira de Minas/MG a concluir a contratação, abstendo-se de promover novas licitações da mesma natureza, até a decisão definitiva desta Corte de Contas sobre o assunto.
(TCU, 1.554/2012, Plenário)
O mesmo ocorreu com outros julgados como é o caso dos acórdãos 1.555/2012, 1.556/2012 e 1.983/2012 do Plenário e 3.878/2012, 3.879/2012, 3.880/2012 e 3.881/2012 da 2ª Câmara.
A situação foi tão complexa que o Tribunal criou um grupo de trabalho para solucionar a questão.
Para tanto, consoante posicionamento exarado no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, verifica-se que a prevalência da contratação de bens de fabricação brasileira, sem qualquer justificativa aparente pode, de fato, legitimar a restrição aos produtos estrangeiros, sendo contrária a legislação pátria, por ser uma exigência restritiva que frustra o caráter competitivo da licitação. Não há fundamento legal para estabelecer preferência em favor de bens nacionais.[6]
Nesse sentido, em razão do Princípio da Isonomia, não é possível haver discriminação entre produtos estrangeiros e produtos nacionais, notadamente quanto à naturalidade geográfica da fabricação dos produtos, salvo no caso de desempate, nos termos do §2º, do art. 3º, da Lei nº 8.666/93[7]:
§ 2º Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:
I – Revogado pela Lei nº 12.349, de 2010;
II – produzidos no País;
III – produzidos ou prestados por empresas brasileiras;
IV – produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País.
Veja-se, neste intento, que se os bens produzidos no Brasil possuem preferência para desempate. Dessa sorte, em intelecção do dispositivo, se entende que não se pode vedar, salvo justificativa técnica, a participação de empresas que não fabriquem os bens no Brasil. Portanto, se o bem fabricado no Brasil é um critério de desempate, é lógico que os bens de produção estrangeira podem e devem participar dos certames.
Assim, quaisquer cláusulas inseridas no instrumento convocatório que, indiretamente, limitem o caráter competitivo devem ser consideradas inválidas.
Esse, inclusive, é o posicionamento de Marçal Justen Filho, senão vejamos:
Não se afigura como constitucional a mera invocação do interesse nacional como fundamento para se exigir na aquisição de bens a produção exclusivamente nacional. Uma é situação em que a Administração privilegia fornecedores estabelecidos no Brasil como instrumento da obtenção de benefícios para o Brasil. Outra é a situação em que a Administração simplesmente desembolsa valores superiores aos que seriam necessários para obter bens e serviços cujo fornecimento não se traduz em benefício para a Nação, mas apenas para algum sujeito específico.
Ou seja, não se vislumbra como cabível produzir discriminação entre brasileiros e estrangeiros, pura e simplesmente. A diferenciação de tratamento apenas pode justificar-se como forma de realização do bem comum.
Portanto, não se pode aceder com a ideia de que os cofres públicos arquem com pagamentos mais elevados do que os necessários apenas porque o beneficiário do pagamento seria uma empresa estabelecida no Brasil.[8]
Em mesmo espeque, encontra-se o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerai, no qual considerou ilegal a exigência indevida no edital de pneus de procedência nacional, excluindo os pneus de origem estrangeira, sem qualquer justificativa plausível.
EMENTA: DENÚNCIA – PREFEITURA MUNICIPAL – VEDAÇÃO AO FORNECIMENTO DE PRODUTOS DE ORIGEM ESTRANGEIRA – RESTRITIVIDADE INJUSTIFICADA – PROCEDÊNCIA DA DENÚNCIA
AUSÊNCIA DE DANO EFETIVO AO ERÁRIO – DEMONSTRADA BOA-FÉ – NÃO APLICADA MULTA AOS RESPONSÁVEIS – IMPOSIÇÕES E RECOMENDAÇÕES AOS GESTORES – INTIMAÇÃO DOS INTERESSADOS – ARQUIVAMENTO DOS AUTOS.
Julga-se procedente a Denúncia, posto que apresenta injustificada restritividade ao certame, por indiscriminada vedação ao fornecimento de produtos de origem estrangeira, deixando-se, no entanto, de aplicar multa aos responsáveis diante das circunstâncias deste caso, levando-se em consideração que as argumentações apresentadas pela defesa, embora juridicamente inconsistentes, são hábeis a demonstrar boa-fé na inclusão da cláusula restritiva, e, ainda, que não se demonstra dano efetivo ao Erário.
Determina-se que os responsáveis pela Administração Municipal se abstenham de prorrogar ou alterar o quantitativo do contrato decorrente do Pregão em análise, dando-se recomendações quanto aos futuros procedimentos de licitação.
(TCE/MG, Denúncia nº 812.454, Relator: Conselheiro Sebastião Helvécio – sessão de julgamento em 20/10/2011)
O mesmo se repete nas Denúncias nº 839.040, 862.583, 863.005, 862.847, 862.744, 862.787, 851.885 e 862.974, todas do TCE/MG.
No âmbito do Tribunal de Contas da União, o tema foi recentemente pacificado pelo Grupo de Trabalho – GT instituído pela Portaria-Segecex 32/2011, de 28/9/2011, em cumprimento ao item 9.5 do Acórdão 2.241/2011-TCU-Plenário, com o objetivo de verificar as repercussões geradas pela Lei 12.349/2010 no regime licitatório, em especial, da discussão travada nos autos do TC 002.481/2011-1, tendo considerado ilegal o estabelecimento de vedação a produtos e serviços estrangeiros em edital de licitação. Senão vejamos:
ADMINISTRATIVO. RELATÓRIO DE GRUPO DE TRABALHO CONSTITUÍDO POR DETERMINAÇÃO DO ACÓRDÃO 2241/2011-TCU-PLENÁRIO ESTUDOS DESENVOLVIDOS COM A FINALIDADE DE ANALISAR AS REPERCUSSÕES GERADAS PELA LEI 12.349/2010 NO REGIME LICITATÓRIO. É ILEGAL O ESTABELECIMENTO DE VEDAÇÃO. É ILEGAL ESTABELECER VEDAÇÃO A PRODUTOS E SERVIÇOS ESTRANGEIROS EM EDITAL DE LICITAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ESTABELECIMENTO DE POSSIBILIDADE DE VEDAÇÃO À OFERTA DE PRODUTOS ESTRANGEIROS VIA DECRETO DO PODER EXECUTIVO. É ILEGAL O ESTABELECIMENTO DE MARGEM DE PREFERÊNCIA NOS EDITAIS LICITATÓRIOS PARA CONTRATAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS SEM A DEVIDA REGULAMENTAÇÃO VIA DECRETO DO PODER EXECUTIVO. COMENTÁRIOS A RESPEITO DA POSSIBILIDADE DE ESTABELECIMENTO DE MARGEM DE PREFERÊNCIA, NA FORMA E NOS LIMITES ESTABELECIDOS NOS DISPOSITIVOS ACRESCIDOS PELA LEI 12.349/2010 AO ART. 3º, § 8º, DA LEI 8666/1993. DETERMINAÇÕES.
9. Acórdão:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de processo administrativo relativo a estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho – GT instituído pela Portaria-Segecex 32/2011, de 28/9/2011, em cumprimento ao item 9.5 do Acórdão 2241/2011-TCU-Plenário, com o objetivo de avaliar as repercussões geradas pela Lei 12.349/2010 no regime licitatório, em especial, da discussão travada nos autos do TC 002.481/2011-1.
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, em acolhimento ao Parecer do Relator, em:
9.1. determinar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), para que, no papel órgão central do Sistema de Planejamento e de Orçamento Federal, informe aos demais órgãos e entidades da Administração Pública Federal que:
9.1.1. é ilegal o estabelecimento de vedação a produtos e serviços estrangeiros em edital de licitação, uma vez que a Lei 12.349/2010 não previu tal situação; e
9.1.2. é ilegal o estabelecimento, por parte de gestor público, de margem de preferência nos editais licitatórios para contratação de bens e serviços sem a devida regulamentação via decreto do Poder Executivo Federal, estabelecendo os percentuais para as margens de preferência normais e adicionais, conforme o caso e discriminando a abrangência de sua aplicação;
9.2. com fundamento nos arts. 241 e 242 do Regimento Interno-TCU, determinar à Segecex que acompanhe o desenvolvimento dos estudos de que tratam os §§ 5º e 6º da Lei 12.349/2010, na forma estabelecida no art. 8º, § 2º, do Decreto 7546/2011, na revalidação e/ou no estabelecimento de margens de preferência para novos produtos manufaturados e para novos serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras, observando os parâmetros estabelecidos nos normativos, bem como os aspectos que, efetivamente, contribuam para o desenvolvimento nacional sustentável;
9.3. encaminhar cópia do presente deliberação acompanhada do Relatório e Voto que a fundamentam ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) e ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC);
9.4 arquivar o presente processo.
(TCU, AC 1317/2013, Plenário, Grupo de Trabalho – GT instituído pela Portaria-Segecex 32/2011, de 28/9/2011, em cumprimento ao item 9.5 do Acórdão 2.241/2011-TCU-Plenário, com o objetivo de verificar as repercussões geradas pela Lei 12.349/2010 no regime licitatório, em especial, da discussão travada nos autos do TC 002.481/2011-1.)
O mesmo posicionamento voltou a se repetir nos julgados em seguida:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de representação da empresa Tractorbel Tratores e Peças Belo Horizonte Ltda. acerca de possíveis irregularidades na tomada de preços 003/2013, realizada pelo município de Santa Bárbara do Tugúrio/MG para aquisição de uma retroescavadeira, com recursos do contrato de repasse 778850/2012/MAPA/CAIXA.
ACORDAM os ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pela relatora e com base no art. 237, inciso VII, do Regimento Interno, c/c o art. 113, § 1º, da Lei 8.666/1993, em:
(...):
9.4.1. abstenha-se de promover licitações cujo objeto seja exclusivamente de fabricação nacional;
(TCU, AC 1469/2013, Plenário)
A exigência de que motoniveladora a ser adquirida por meio de pregão presencial tenha fabricação nacional configura, em juízo preliminar, restrição indevida ao caráter competitivo do certame
Representação acusou possíveis irregularidades na condução do Pregão Presencial 9/2011, promovido pela Prefeitura Municipal de Iguaba Grande/RJ, que tem por objeto a aquisição, entre outros itens, de uma motoniveladora. A autora da representação alegou que o edital da licitação teria violado o princípio da isonomia, ao exigir que a motoniveladora tivesse fabricação nacional e que, por isso, teria restringido sua participação, uma vez que o equipamento que fornece é de origem chinesa. Anotou que as especificações de seu equipamento são melhores que as especificadas pelo edital. E, também, que oferece as garantias necessárias e assistência técnica em todo o Estado do Rio de Janeiro. Acrescentou que a citada restrição estaria vedada pela Lei 8.666/93, art. 3º, § 1º, inciso II. Apontou, ainda, possível dano ao erário que se configuraria com a aquisição de um bem nacional por preço superior ao que poderia ofertar. Requereu, ao final, a concessão de “medida liminar” para suspensão do certame até julgamento do mérito. A Relatora do feito, em linha de consonância com a proposta da unidade técnica, considerou pertinentes as ponderações da autora da representação e presente o requisito do fumus boni juris, “uma vez que a regra legal é no sentido de permitir a maior competitividade possível entre os licitantes”. Anotou, na oportunidade, que o Tribunal, por meio do Acórdão 2.241/2011-Plenário, quando apreciou representação contra a exigência de fabricação nacional para retroescavadeiras a serem adquiridas por pregão eletrônico do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), decidiu determinar “àquela Pasta que ‘abstenha-se de promover licitações, cujo objeto seja exclusivamente de fabricação nacional, até que este Tribunal delibere sobre a questão”. Anotou, também, que a iminência de realização da sessão pública de abertura das propostas e realização de lances configura o periculum in mora. Por esses motivos, determinou, em caráter cautelar, “a suspensão imediata do Pregão Presencial 9/2011 – PMIG ou da execução do contrato dele decorrente, caso já tenha sido firmado, até que este Tribunal delibere sobre o mérito da matéria”. O Plenário do Tribunal endossou essa providência. Comunicação ao Plenário, TC 037.779/2011-7, rel. Ministra Ana Arraes, 18.1.2011.
(TCU, Informativo nº 90, de 18 de janeiro de 2012)
Logo, se verifica que o posicionamento pacífico e atual da Corte de Contas é considerar ilegal qualquer cláusula que exija que os bens sejam de produção exclusivamente nacional, tendo em vista o caráter limitativo, violando o princípio da isonomia.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, o presente trabalho teve por bem analisar a batalha principioógica entre a isonomia e a promoção do desenvolvimento nacional. O caso, para tanto, tratou das hipóteses em que os editais de licitação estavam exigindo que os produtos fossem de fabricação exclusiva nacional.
Nessa senda, após inúmeras discussões no âmbito da Corte de Contas da União, o tema foi recentemente solucionado, tendo decidido que é ilegal exigir que os bens sejam de produção exclusivamente brasileira, sob pena de realizar uma restrição ao caráter competitivo do certame, em razão da violação do princípio da isonomia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHARLES, Ronny. Leis de Licitações Públicas Comentadas. Salvador: Ed. Podivm, 2011.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos. 4. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012
GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2010
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos. 15ª ed. Ed. Dialética, 2012.
Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Irregularidades frequentemente encontradas em instrumento convocatório para a aquisição de pneus destinados a veículos da frota municipal. In: Manual do TCE/MG: Principais irregularidade encontradas em editais de licitação, Belo Horizonte- MG, maio de 2012
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos. 15ª ed. Ed. Dialética, 2012, p.60
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos. 15ª ed. Ed. Dialética, 2012, p.87
[3] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos. 4. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 30
[4] Op.Cit, p. 31
[5] Op.Cit. p. 62
[6] Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Irregularidades frequentemente encontradas em instrumento convocatório para a aquisição de pneus destinados a veículos da frota municipal. In: Manual do TCE/MG: Principais irregularidade encontradas em editais de licitação, Belo Horizonte- MG, maio de 2012, p.09.
[7] Ibidem.
[8] Marçal Justen Filho. Comentários à lei de Licitações e contratos administrativos, Ed. Dialética, fls. 86
Advogado da União. Graduado, desde 2010, pela Universidade Federal da Bahia. Pós Graduado em Direito Público (2010). Pós Graduado em Direito Tributário (2012). Autor do livro: A Licença ao Uso da Imagem e suas implicações no Contrato de Trabalho do Atleta Profissional de Futebol, Curitiba, Editora Protexto, 2011, ISBN 97885782660. Email: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BAHIA, Bruno Gomes. Da vedação a exigência de bens exclusivamente de fabricação nacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jul 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36072/da-vedacao-a-exigencia-de-bens-exclusivamente-de-fabricacao-nacional. Acesso em: 22 nov 2024.
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