1. Introdução.
A coisa julgada, garantia inserta no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988, é tema de constante debate no mundo jurídico, possuindo especial relevância o acompanhamento das decisões exaradas pelos Tribunais Superiores a respeito do assunto.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente ser cabível ação rescisória em face da coisa julgada que deixou de aplicar a jurisprudência pacificada daquela Corte.
O presente estudo visa explicitar o recente entendimento do STJ, trazendo importantes implicações dessa decisão na praxe forense, sem qualquer pretensão de esgotar a discussão.
2. DESENVOLVIMENTO.
Nas precisas lições de Enrico Tullio Liebman, a coisa julgada não é propriamente um efeito da sentença, mas uma especial qualidade que a lei agrega a esses efeitos, tornando-os imutáveis[1].
O art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República assim preceitua:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; (...).”
O instituto da coisa julgada revela-se como importante mecanismo no Estado Democrático de Direito, conferindo às partes segurança no que tange às relações jurídicas por elas estabelecidas.
Assim, esse fenômeno jurídico impede que, após o decurso do prazo recursal ou o não cabimento de outro recurso em face de determinada decisão, novas discussões sejam travadas no mesmo processo (trânsito em julgado formal), sendo que, após o prazo de dois anos previsto no artigo 495, do Código de Processo Civil[2], não se admitirá a rediscussão da matéria nem mesmo em outro processo, uma vez que não mais caberá ação rescisória (trânsito em julgado material).
Nos últimos anos, tem-se discutido bastante a respeito da possibilidade de flexibilização da coisa julgada ou relativização da coisa julgada, sobretudo em razão da constatação fática de que os meios tradicionais de impugnação de sentença se mostraram insuficientes para resolver determinados conflitos, o que levou à análise da questão sob dois ângulos: o da inconstitucionalidade e o da prevalência do valor justiça sobre o valor segurança jurídica.
Sob o primeiro enfoque, o que se objetiva é saber se determinada decisão transitada em julgado ofende ou não a Constituição da República; sob o segundo enfoque, é importante verificar se determinada injustiça merece ser corrigida mesmo em face da coisa julgada, hipótese na qual o valor justiça se sobreporia ao valor segurança jurídica.
A análise da relativização da coisa julgada merece estudo específico que refoge ao objeto do presente artigo, até mesmo porque o que se propõe neste caso é o estudo do cabimento da ação rescisória – por certo, dentro do prazo previsto no art. 495, do CPC – em face de decisão judicial transitada em julgado que tenha ofendido a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça.
A citação à possibilidade de flexibilização deu-se simplesmente para demonstrar que se tem admitido, em certos casos, rediscutir situações em relação às quais não caiba mais nem mesmo a ação rescisória, merecendo destaque o fato de que tal tema é bastante controvertido na doutrina e na jurisprudência.
Luiz Guilherme Marinoni[3] assim leciona a respeito do assunto:
“Trata-se precisamente da tensão existente entre a facticidade (Faktizität) e a validade (Geltung) do direito; a tensão entre a justiça e a segurança.
A posição que até hoje prevalece está ligada à idéia de que o Direito – e a norma do caso concreto produzida pelo Judiciário – é válido porque foi assim declarado pelo ‘soberano’, e não porque é justo. Tal noção de Direito tem claras raízes na concepção de validade do Direito de Thomas Hobbes, que por sua vez fundamenta a conhecida posição de Hans Kelsen. Tal noção manteve-se praticamente inalterada mesmo com bases teóricas tão diversas quanto as de Hobbes e Kelsen.
Por já se haver superado as bases do positivismo normativista de Kelsen e Hart, afirmar-se secamente que determinada decisão é definitiva simplesmente porque proferida pelo Estado-Juiz externa uma posição despreocupada com as novas realidades. Pode-se afirmar com convicção que o ordenamento jurídico brasileiro não é partidário absoluto da concepção hobbesiana de direito. Prova disto, no âmbito da legitimidade das decisões judiciais, é a própria existência de hipóteses legais de relativização da coisa julgada mediante a ação rescisória.
Entretanto, apesar de se reconhecer o primado do princípio da dignidade da pessoa humana como vetor do sistema do direito, é certo que o atual desenvolvimento das teorias pelas quais sempre seria obtenível uma decisão justa ainda não possibilitam sua execução fática.
Em outras palavras, ainda não existem condições de disciplinar um processo que sempre conduza a um resultado justo.”
Não é raro verificar na praxe forense decisões judiciais que explicitam entendimento contrário ao esposado pelo Superior Tribunal de Justiça e que transitam em julgado.
Em tese, isso não pode ser enxergado como algo alarmante. Ora, as partes podem estar convencidas de que aquela foi a melhor decisão para o caso concreto, concordando com os termos do pronunciamento judicial; podem também simplesmente ter deixado transcorrer o prazo para impugnação judicial; é possível também que, naquele momento, simplesmente desconheçam a jurisprudência daquela Corte. Situações outras podem ocorrer que levem à ausência de impugnação judicial oportuna. E nisso não há qualquer problema.
Ocorre, porém, que o Superior Tribunal de Justiça se viu diante de um caso concreto no qual uma das partes questionava a possibilidade de rescisão da coisa julgada em razão do fato de a decisão rescindenda ter contrariado jurisprudência pacificada daquela Corte.
In casu, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia julgado improcedente a ação rescisória sob o fundamento de que não se admite aquela ação por ofensa literal a dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos Tribunais, nos termos da súmula nº 343, do Supremo Tribunal Federal.
A Quarta Turma do STJ entendeu, nos autos do Recurso Especial nº 1.163.267/RS, julgado em 19/09/2013[4], pelo cabimento da ação rescisória nessas hipóteses, sob o argumento de que a recalcitrância judiciária não pode ser referendada em detrimento da segurança jurídica, da isonomia e da efetividade da jurisdição, determinando o prosseguimento daquela ação no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
O Ministro relator, Luis Felipe Salomão, pontuou que “a solução oposta, a pretexto de não eternizar litígios, perpetuaria injustiças”, entendendo, ainda, que “definitivamente, não constitui propósito da Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal (STF) a chancela da rebeldia judiciária”.
O relator ainda advertiu que a segurança jurídica deve guardar relação com leis que tragam efeitos jurídicos previsíveis e calculáveis pelos jurisdicionados, de modo que o valor segurança jurídica não pode ser adstrito aos fenômenos do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido, alcançando a própria atividade jurisdicional.
O Ministro ainda consignou que “de fato, a dispersão jurisprudencial deve ser preocupação de todos e, exatamente por isso, tenho afirmado que, se a divergência de índole doutrinária é saudável e constitui importante combustível ao aprimoramento da ciência jurídica, o dissídio jurisprudencial é absolutamente indesejável”.
Não se desconsidera que o grande leque de entendimentos jurisprudenciais divergentes acarreta, além da demora na solução dos casos concretos – a partir de quase infindáveis recursos –, o indesejado sentimento de injustiça na sociedade, além do dispêndio incalculável de verbas públicas, sobretudo no âmbito dos Tribunais Superiores, que têm de se aparelhar cada vez mais para julgar questões que simplesmente não levam em consideração entendimentos pacificados há anos.
Todavia, essa decisão causa espécie no mundo jurídico!
Conforme delineado acima, conquanto o movimento de relativização da coisa julgada tenha ganhado certa força na doutrina e na própria jurisprudência, isso não é suficiente para se propor, de forma indiscriminada, a superação do valor da segurança jurídica a qualquer custo.
Há de se pontuar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não é vinculante. E, de fato, não o é! Por certo, a autonomia funcional do magistrado lhe garante a prerrogativa de julgar as demandas à luz do caso concreto e segundo sua convicção pessoal, a partir das provas produzidas nos autos.
Por outro lado, o juiz pode valer-se das técnicas do distinguishing – que propõe o afastamento do precedente jurisprudencial em razão de uma circunstância fundamental que o diferencia do caso anterior[5] – e do overruling – que intenta a superação de determinado entendimento jurisprudencial anteriormente firmado em razão de novas bases jurídicas aptas a fundamentar a mudança de posicionamento nos Tribunais.
Esses argumentos são suficientes para a conclusão de que a ofensa à jurisprudência do STJ não é bastante para se admitir a rescisão de decisão judicial transitada em julgado. Conforme aduzido acima, as partes poderiam, dentre outras opções possíveis, ter aceitado tranquilamente referida decisão por entender que aquela foi a melhor para o caso concreto, concordando com os termos do pronunciamento judicial, ou simplesmente ter perdido o prazo para interposição do recurso cabível.
O simples fato de haver entendimento pacificado do STJ em sentido contrário não deveria ser argumento suficiente para a rescisão do julgado, sob pena de se desconsiderar, de forma indevida, as decisões exaradas em primeira e segunda instância. Além disso, criaria uma nova possibilidade para a parte rediscutir aquela demanda dentro do prazo da rescisória, quando, muitas vezes, a coisa julgada ocorreu em virtude da inércia da parte sucumbente.
Por outro lado, a admissão de rescisória nesses casos pode representar o fim da segurança jurídica, de fundamental importância no Estado Democrático de Direito. De maneira transversa, o Superior Tribunal de Justiça, ao firmar tal entendimento, estaria editando, de certo modo, “súmulas vinculantes” sem qualquer previsão legal, o que não deve ser admitido. É de bom alvitre mencionar que, até o presente momento, só há previsão, no ordenamento jurídico pátrio, para a edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal, a teor do disposto no art. 103-A, da Constituição da República, c/c lei º 11.417/2006.
Diz-se que com esse entendimento o STJ estaria, em certa medida, editando súmulas vinculantes justamente porque, mesmo em relação àquelas demandas sobre as quais pairam o manto da coisa julgada, admitir-se-ia a rescisão do decisum sob o simples fundamento de que houve ofensa à jurisprudência pacificada daquela Corte, o que deve ser prontamente rechaçado.
Há quem entenda que, diante de uma situação de injustiça, dever-se-ia encontrar mecanismos para afastar aquela distorção a fim de que a tutela jurisdicional seja justa. Contudo, tal argumento pode ser pernicioso, até mesmo porque tal análise levaria inevitavelmente a exames casuístas, que comprometeriam aquela relevante garantia de índole constitucional. Ademais, desconsideraria completamente o sistema recursal vigente no direito processual civil brasileiro.
3. CONCLUSÃO.
Desse modo, há de se ver com reservas o recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça que admitiu o cabimento da ação rescisória quando a decisão rescindenda tiver desconsiderado o entendimento pacificado no âmbito daquele Tribunal.
De fato, conforme demonstrado acima, razões jurídicas não faltam para se criticar aquele ativismo judicial, o que só vem contribuir para um incremento da insegurança jurídica para os jurisdicionados, além de trazer verdadeira ofensa ao próprio ordenamento jurídico pátrio.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
- MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br.
- MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 29ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
- NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 10ª edição. São Paulo: RT, 2008.
- NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 3ª edição. São Paulo: Editora Método, 2011.
- NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª edição. Editora Malheiros, 2012.
[1] LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
[2] Art. 495, do CPC. “O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão”.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br.
[4] O acórdão encontra-se pendente de publicação.
[5] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª edição. Editora Malheiros, 2012.
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. Uma visão crítica do recente entendimento do Superior Tribunal De Justiça que admitiu o cabimento de ação rescisória em face da coisa julgada que não aplica a sua jurisprudência pacificada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36859/uma-visao-critica-do-recente-entendimento-do-superior-tribunal-de-justica-que-admitiu-o-cabimento-de-acao-rescisoria-em-face-da-coisa-julgada-que-nao-aplica-a-sua-jurisprudencia-pacificada. Acesso em: 22 nov 2024.
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