Constitui o habeas corpus espécie de remédio constitucional, destinado à proteção da liberdade de locomoção contra toda a sorte de ilegalidade ou abuso de poder.
Procuraremos com o presente artigo abordar, de forma sucinta, a restrição sumular do Supremo Tribunal Federal – comumente aplicada pelos Tribunais Superiores - que veda o conhecimento, pela Corte, de habeas corpus impetrado contra decisão de Relator que indefere a liminar.
Tal entendimento está representado na súmula 691, do Supremo Tribunal Federal, que assim desfia: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.
Nesse passo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme(1) no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus, nas causas de sua competência originária, contra decisão denegatória de liminar em ação de idêntica natureza emanada por Tribunal Superior, antes do julgamento definitivo do writ.
Contudo, o rigor de tal súmula tem sido abrandado(2), e com razão, em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF – HC 119349 MC / SP Min. Gilmar Mendes, DJ 26.09.2013).
Assim, não é o caso de revogação da súmula (overruling), mas de afastá-la no caso concreto em razão de patente constrangimento ilegal, ou para evitar a manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em hipóteses concretamente distintas dos demais casos que deram origem ao entendimento sumular (distinguishing).
Confira-se, nesse palmilhar, recente decisão de caso levado à Corte pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo:
Na hipótese dos autos, à primeira vista, entendo caracterizada situação a ensejar o afastamento da Súmula 691/STF. De um modo geral, presentes o ‘fumus comissi delicti’ e o ‘periculum libertatis’, a prisão preventiva deve indicar, de forma expressa, os seguintes fundamentos para a sua decretação, nos termos do art. 312 do CPP: I) garantia da ordem pública; II) garantia da ordem econômica; III) garantia da aplicação da lei penal; e IV) conveniência da instrução criminal. Na linha da jurisprudência do Tribunal, porém, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos, sendo necessário que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e firme de que tais condições realizam-se na espécie. Dessarte, a tarefa de interpretação constitucional para a análise de uma excepcional situação jurídica de constrição da liberdade dos cidadãos exige que a alusão a esses aspectos esteja lastreada em elementos concretos, devidamente explicitados. Pois bem, na hipótese, o decreto de prisão preventiva baseou-se, quanto à segregação do paciente, na necessidade de se resguardar a ordem pública. No ponto, evidencio que a decisão a qual decreta a prisão do agente no intuito de resguardar a ordem pública deve demonstrar sólidas evidências do real perigo que causaria à sociedade a liberdade do indivíduo. Bem analisados os argumentos expendidos pelo Juízo de origem, constato que não há, em nenhum momento, a indicação de fatos concretos que justificam o alegado risco do paciente para a ordem pública, para a tranquilidade e a paz no seio social. Nesse sentido, a decisão de prisão diverge do firmado por esta Corte: HC 86.758/PR (DJ 1.9.2006), HC 84.997/SP (DJ 8.6.2007) e HC 83.806/SP (DJ 18.6.2004). É que a constrição provisória deve estar embasada em elementos concretos, e não abstratamente, como vazio argumento de retórica. (STF – HC 119349 MC / SP Min. Gilmar Mendes, DJ 26.09.2013).
E não poderia ser diferente, uma vez que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXVIII, não alberga nenhum tipo de restrição ao uso do habeas corpus, sendo clara ao estabelecer que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder”.
Referido posicionamento tem ganhado força(3) no Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência tem evoluído para afirmar que a liberdade do cidadão suspeito da prática de infração penal somente pode sofrer reservas se houver decisão judicial devidamente fundamentada, amparada em fatos concretos e não apenas em presunções ou conjecturas, na gravidade do crime ou em razão de sua hediondez.
Sobre o tema, oportuna a crítica de Alberto Zacharias Toron(4):
A Súmula 691 nessa matéria, ao impedir indistintamente o exame dos casos na sua singularidade, jogando-os, todos, numa vala comum, sem a verificação da urgência e pertinência do pedido liminar, presta um grande desserviço à causa da justiça: amesquinha a grandeza da garantia constitucional do habeas corpus e, de outro lado, diminui a importância da própria autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal, que fica privado de fazer valer a sua orientação por meio do único remédio que o cidadão comum tem a esperança de ver respeitadas as garantias inscritas na Constituição.
Tal interpretação, como se vê, encontra-se em consonância com o Estado Democrático de Direito, com o princípio da não-culpabilidade e com o devido processo legal, resguardando, assim, o sagrado direito à liberdade.
NOTAS:
1 - Nesse sentido: HC n. 76.347/MS, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ 8.5.1998; HC n. 79.238/RS, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ 6.8.1999; HC n. 79.776/RS, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ 3.3.2000; HC n. 79.775/AP, Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, maioria, DJ 17.3.2000; HC n. 79.748/RJ, Min. Celso de Mello, 2ª Turma, maioria, DJ 23.6.2000; HC n. 101.275/SP, Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, DJe 5.3.2010; e HC n. 103.195, Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, unânime, DJe 23.4.2010).
2 – Nesse sentido: HC n. 84.014/MG, Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, unânime, DJ 25.6.2004; HC n. 85.185/SP, Min. Cezar Peluso, Pleno, por maioria, DJ 1º.9.2006; e HC n. 90.387, Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJ 28.9.2007).
3 - Nesse sentido: HC 84.662/BA, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ 22.10.2004; HC 86.175/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJ 10.11.2006; HC 88.448/RJ, Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, por empate na votação, DJ 9.3.2007; HC 101244/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, unânime, DJe 8.4.2010.
4 – TORON, Alberto Zacharias, A Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal e o amesquinhamento da garantia do habeas corpus. In: http://www.processocriminalpslf.com.br/site/?page_id=827 - Acesso em 08/10/2013.
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