A regularidade fiscal é a comprovação de que o licitante/contratado encontra-se regular com as Fazendas Públicas. Obrigatoriedade que deve ser observada na habilitação da licitação e durante a execução do contrato, conforme estabelecido nos arts. 27, 29, 55, XIII, da Lei n. 8.666/93. Senão vejamos:
“Art. 27 Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV - regularidade fiscal.
(...)
Art. 29 A documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso, consistirá em:
I - prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);
II - prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
III - prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da Lei;
IV - prova de regularidade relativa à Seguridade Social, demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei. (Grifamos.)
Art. 55 São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
(...)
XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação”. (Grifamos.)
Conforme se depreende dos dispositivos legais acima citados, a exigência de regularidade fiscal revela-se obrigatória para qualquer licitante habilitar-se em procedimentos licitatórios e para o contratado durante a execução dos contratos. Entretanto, embora se afigure como legítima a exigência de regularidade fiscal como condição sine qua non para a habilitação em licitações e durante a execução contratual[1], em decorrência de expressa previsão legal, o mesmo não pode ser aplicado, seja com que argumento for, à situação fiscal regular como pressuposto para a realização de pagamentos por serviços prestados. A retenção de pagamento da empresa que, comprovadamente, efetuou os serviços a que estava obrigada em decorrência de contrato administrativo revela-se como abuso de poder administrativo, sem qualquer amparo jurídico, podendo configurar enriquecimento ilícito por parte da Administração Pública.
É cediço que não há permissão legal para retenção de pagamento de serviço prestado e atestado pela Administração Pública. Não consta das penalidades previstas no art. 87 da Lei nº 8.666/93[2] a previsão de retenção de pagamento. Considerando o Estado Democrático de Direito e o princípio da legalidade estrita, não podemos coadunar com a possibilidade da retenção de pagamento de serviço prestado e atestado pela Administração Pública com fundamento na irregularidade fiscal da contratada.
A Lei n. 8.666/93 estabeleceu no art. 55, inc. XIII, a obrigação da contratada manter, durante toda a execução do contrato, as mesmas condições de habilitação exigidas na licitação. E as sanções previstas para o descumprimento dessa obrigação legal são as literalmente previstas no art. 87 da Lei n. 8.666/93, que não prevê em momento algum a retenção de pagamento.
De acordo a multicitada lei, a única hipótese legal de retenção de créditos é a prevista no seu art. 80, IV, onde a Administração Pública poderá reter os créditos decorrentes do contrato até o limite dos prejuízos causados pela rescisão contratual, motivada em uma das situações estabelecidas no inciso I do art. 79.
Na mesma linha da Lei de Licitações e Contratos sequem os Decretos nº 3.722/2001 e 4.485/2002, que regulamentam o art. 34 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos e dispõem sobre o SICAF. Eles não prevêem a possibilidade de retenção de pagamentos por situação fiscal irregular, mas apenas a obrigatoriedade da consulta ao SICAF antes de qualquer emissão de nota de empenho, habilitação e contratação. Senão vejamos:
Art. 1º O Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores - SICAF constitui o registro cadastral do Poder Executivo Federal, na forma definida neste Decreto, mantido pelos órgãos e entidades que compõem o Sistema de Serviços Gerais - SISG, nos termos do Decreto nº 1.094, de 13 de março de 1994.
§ 1º A habilitação dos fornecedores em licitação, dispensa, inexigibilidade e nos contratos administrativos pertinentes à aquisição de bens e serviços, inclusive de obras e publicidade, e a alienação e locação poderá ser comprovada por meio de prévia e regular inscrição cadastral no SICAF:
I - como condição necessária para emissão de nota de empenho, cada administração deverá realizar prévia consulta ao SICAF, para identificar possível proibição de contratar com o Poder Público; e
II - nos casos em que houver necessidade de assinatura do instrumento de contrato, e o proponente homologado não estiver inscrito no SICAF, o seu cadastramento deverá ser feito pela Administração, sem ônus para o proponente, antes da contratação, com base no reexame da documentação apresentada para habilitação, devidamente atualizada.
(...)
Art. 3º Os editais de licitação para as contratações referidas no § 1º do art. 1º deverão conter cláusula permitindo a comprovação da regularidade fiscal, da qualificação econômico-financeira e da habilitação jurídica por meio de cadastro no SICAF, definindo dia, hora e local para verificação on line, no Sistema.
Parágrafo único. Para a habilitação regulamentada neste Decreto, o interessado deverá atender às condições exigidas para cadastramento no SICAF, até o terceiro dia útil anterior à data prevista para recebimento das propostas. (Grifamos.)
Tendo em vista os dispositivos legais supracitados e considerando que a Administração Pública, ao contrário dos particulares, só pode agir quando expressamente autorizada pela lei, não há que se falar na possibilidade legal da suspensão de pagamento em virtude de situação fiscal irregular por parte da Administração Pública. Sobre como a legalidade deve ser entendida quando aplicada à atividade administrativa, o entendimento do professor Celso Antônio Bandeira de Mello é esclarecedor:
“O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições.[3]
Em que pese o acima exposto, ressaltamos que o Tribunal de Contas da União entendia que a suspensão do pagamento do contratado em virtude de situação fiscal irregular era perfeitamente legal[4]. Entretanto, em decisão mais recente a referida corte de contas se pronunciou no sentido de que “é vedada a retenção de pagamento por serviço já executado, ou fornecimento já entregue, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração”, acompanhando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, e da doutrina do eminente Profº Marçal Justen Filho. Vejamos:
“ADMINISTRATIVO. CONTRATO. ECT. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE. DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE MANTER A REGULARIDADE FISCAL. RETENÇÃO DO PAGAMENTO DAS FATURAS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A exigência de regularidade fiscal para a participação no procedimento licitatório funda-se na Constituição Federal, que dispõe no § 3º do art. 195 que "a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios", e deve ser mantida durante toda a execução do contrato, consoante o art. 55 da Lei 8.666/93.
2. O ato administrativo, no Estado Democrático de Direito, está subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV), o que equivale assentar que a Administração poderá atuar tão-somente de acordo com o que a lei determina.
3. Deveras, não constando do rol do art. 87 da Lei 8.666/93 a retenção do pagamento pelos serviços prestados, não poderia a ECT aplicar a referida sanção à empresa contratada, sob pena de violação ao princípio constitucional da legalidade. Destarte, o descumprimento de cláusula contratual pode até ensejar, eventualmente, a rescisão do contrato (art. 78 da Lei de Licitações), mas não autoriza a recorrente a suspender o pagamento das faturas e, ao mesmo tempo, exigir da empresa contratada a prestação dos serviços. (REsp n. 633.432/MG, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, j. em 22.02.2005, DJ de 20.06.2005)
TRF da 1ª Região:
MANDADO DE SEGURANÇA. INSCRIÇÃO NO SICAF. LIBERAÇÃO DE VERBA POR SERVIÇOS JÁ PRESTADOS.
1. A inscrição em cadastro de inadimplentes é motivo que impede a participação na licitação e a assinatura de contrato, mas não o pagamento por serviço já executado a contento, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração.
2. Nega-se provimento ao agravo de instrumento (TRF 1ª Região, AG nº 2003.01.00.012293-9/DF, Rel. Des. Federal Maria Isabel Galloti Rodrigues, 15.09.2003.)
ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DEVIDAMENTE CUMPRIDO. BLOQUEIO DO PAGAMENTO POR IRREGULARIDADE DA CONTRATADA JUNTO AO SICAF. IMPOSSIBILIDADE.
1. Embora se conceda à Administração o poder de consultar cadastros de empresas que pretendam participar de procedimentos licitatórios, não pode bloquear o pagamento de quem se encontrava em situação regular, quando foi contratada, e que executou regularmente o serviço, a pretexto de supostas irregularidades, verificadas posteriormente, junto ao SICAF.
2. Segurança concedida.
3. Sentença que se confirma.
4. Apelação e remessa oficial desprovidas (AMS nº 2001.34.00.033848-5/DF, Rel. Des. Daniel Paes Ribeiro, 02.02.2004.)
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RETENÇÃO DE PAGAMENTO. SERVIÇOS REGULARMENTE CONTRATADOS E EFETIVAMENTE PRESTADOS. IRREGULARIDADE PERANTE O SICAF. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. ENRIQUECIMENTO INDEVIDO DA ADMINISTRAÇÃO.
1. É ilegal a retenção de pagamento devido em função de serviços regularmente contratados e efetivamente prestados ao argumento de que a contratada está em situação irregular perante o SICAF, por ausência de previsão legal e por configurar enriquecimento ilícito da Administração Pública.
2. O artigo 1º, § 1º, inc. I do Decreto 3.722/01 impõe a consulta prévia ao SICAF tão-somente para identificar eventual proibição de contratar com o Poder Público, nada dispondo acerca da suspensão do pagamento de serviços contratados e prestados.
3. Agravo de instrumento improvido. (AG nº 2003.01.00.035327-7/DF, Rel. Des. Federal Selene Maria de Almeida, 08.03.2004.)
CONTRATO ADMINISTRATIVO. SERVIÇOS DEVIDAMENTE PRESTADOS. IRREGULARIDADE DA CONTRATADA JUNTO AO SICAF. FALTA DE PAGAMENTO. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO.
1. Improcedência da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, porquanto esta somente se caracteriza se houver, no ordenamento jurídico, norma que proíba, expressamente, a pretensão do autor, o que não é o caso, pois o pedido de pagamento de quantia referente a serviços efetivamente prestados à União é admissível.
2. A situação irregular da empresa perante o SICAF impede a sua participação em licitação e a assinatura de contrato administrativo, mas não o pagamento relativo a serviço por ela efetivamente prestado, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração. Precedentes desta Corte.
3. Apelação e remessa oficial, considerada interposta, não providas (AC nº 1999.34.00.017130-6/DF, Rel. Des. Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues, 11.04.2005.)
TRF da 5ª Região:
ADMINISTRATIVO. SERVIÇO PRESTADO À ADMINISTRAÇÃO. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL COMO CONDIÇÃO PARA O PAGAMENTO AO CONTRATADO. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR PARTE DO PODER PÚBLICO.
1. Uma vez firmado o contrato, e tendo o impetrante cumprido a prestação contratual, não pode a administração esquivar-se, sob nenhuma justificativa, de efetuar a remuneração correspondente, haja vista que, se assim o fizer, estará praticando um enriquecimento ilícito.
2. O contrato administrativo deve ser executado fielmente, exercendo cada parte seus direitos e cumprindo suas obrigações.
3. Se o impetrante foi habilitado para a realização do serviço, é porque, demonstrou possuir os requisitos mínimos de capacidade jurídica, capacidade técnica, idoneidade econômico-financeira e regularidade fiscal exigidos pela administração.
4. Remessa oficial improvida. (TRF 5ª Região, Remessa Ex Officio 63346-CE, Rel. Juiz Federal Geraldo Apoliano, 19.11.1998.)
Já na doutrina, existe entendimento no mesmo sentido. Um dos maiores especialistas em licitações e contratos administrativos,
Marçal Justen Filho:
Além das hipóteses do art. 78, existem outras, implicitamente previstas na Lei. Assim, deve-se dar aplicação ao disposto no art. 55, inc. XIII. Verificando-se, após a contratação, que o contratante não preenchia ou não preenche mais os requisitos para ser habilitado, deverá promover-se a rescisão do contrato. A rescisão tanto pode fundar-se na descoberta de que o particular não detinha as condições necessárias como em que, após a contratação, deixou de preencher as exigências legais. Os requisitos de idoneidade devem estar presentes não apenas no momento anterior à contratação, mas têm de permanecer durante todo o período de execução do contrato. Rigorosamente, poderia ser caso de nulidade da licitação, vício que se estenderia ao contrato. Porém, podem supor-se situações em que teriam de ser aplicadas as regras da resolução, mormente quando existisse uma situação de fato consolidada. Imagine-se, assim, que a situação se configurasse relativamente a concessionário de serviço público. Aplicação rigorosa da teoria da nulidade produziria efeitos insuportáveis.
Isso se passa, também e especialmente, no tocante à regularidade fiscal. Isso não significa que a Administração esteja autorizada a reter pagamentos ou opor-se ao cumprimento de seus deveres contratuais sob alegação de que o particular encontra-se em dívida com a Fazenda Nacional ou outras instituições. A administração poderá comunicar ao órgão competente a existência de crédito em favor do particular para serem adotadas as providências adequadas. A retenção de pagamentos, pura e simplesmente, caracterizará ato abusivo, passível de ataque inclusive através de mandado de segurança.[5]
TCU - Acórdão n. 964/2012 – Plenário
9.2. no mérito, responder à consulente que:
9.2.1. os órgãos e entidades da Administração Pública Federal devem exigir, nos contratos de execução continuada ou parcelada, a comprovação, por parte da contratada, da regularidade fiscal, incluindo a seguridade social, sob pena de violação do disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal;
9.2.2. os órgãos e entidades da Administração Pública Federal devem incluir, nos editais e contratos de execução continuada ou parcelada, cláusula que estabeleça a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação, prevendo, como sanções para o inadimplemento a essa cláusula, a rescisão do contrato e a execução da garantia para ressarcimento dos valores e indenizações devidos à Administração, além das penalidades já previstas em lei (arts. 55, inciso XIII, 78, inciso I, 80, inciso III, e 87, da Lei n. 8.666/93);
9.2.3. Verificada a irregular situação fiscal da contratada, incluindo a seguridade social, é vedada a retenção de pagamento por serviço já executado, ou fornecimento já entregue, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração;” (grifamos)
Assim, entendemos que a retenção de pagamento do serviço, devidamente prestado e atestado, por ausência de regularidade fiscal do contratado, revela-se como abuso de poder administrativo, sem qualquer amparo jurídico, podendo configurar enriquecimento ilícito por parte da Administração Pública.
[1] Art. 27, IV, e 55, XIII, da Lei nº 8.666/93.
[2] Art. 87 Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes de punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contrato ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior. (Grifamos.)
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 87-88.
[4] Decisão Plenária nº 705/94, Decisão nº 377/97 e o Acórdão nº 597/2003.
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 9. Ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 549.
Procurador Federal. Especialista em Direito Sanitário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Maxiliano D'avila Cândido de. Contrato administrativo - irregularidade fiscal e retenção do pagamento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2013, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36942/contrato-administrativo-irregularidade-fiscal-e-retencao-do-pagamento. Acesso em: 22 nov 2024.
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