Inicialmente, importa estabelecer a natureza jurídica dos bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito privado afetados à realização de prestação de serviço público. Não há consenso na doutrina sobre o assunto, entendendo Celso Antônio Bandeira de Mello que os bens que não pertencem às pessoas jurídicas de direito público, mas caso estejam afetados à prestação de serviço público são bens públicos. Entretanto, parece-nos mais acertado o entendimento esposado por José dos Santos Carvalho Filho[1], in verbis:
“O vigente Código Civil resolveu definitivamente a questão. Com efeito, dispõe claramente o art. 98 do novo diploma, conforme destacado supra, que bens públicos são apenas os que pertencem a pessoas jurídicas de direito público interno e que todos os demais são apenas particulares, “seja qual for a pessoa a que pertencerem”. Consequentemente, não há mais dúvidas de que os bens de sociedade de economia mista e de empresas públicas, como entidades administrativas de direito privado que são, devem qualificar-se como bens privados.
Exatamente esse, diga-se de passagem, foi o entendimento do STF, a nosso ver irreparável, em mandados de segurança impetrados pelo Banco do Brasil contra decisões do Tribunal de Contas da União, que determinaram fosse instaurado procedimento de tomada de contas especial visando à apuração de danos a seus próprios cofres. Entendeu o Tribunal que os bens e direitos das sociedades de economia mista não são bens públicos, mas bens privados inconfundíveis com os bens do Estado, não incidindo, desse modo, o art. 71, II, da CF, que fixa a competência do TCU para julgar as contas dos responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos.”
Assim, com esteio na doutrina de Carvalho Filho e no disposto no art. 98 do Código Civil, entendemos que bem público é aquele pertencente às pessoas jurídicas de direito público. Por conseguinte, os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito privado são bens privados, ainda que afetados à realização de interesse público, podendo, regra geral, ser alienados sem a necessidade de procedimento licitatório.
Cabe aqui a observação de que os bens pertencentes às empresas estatais e sociedades de economia mista, por serem pessoas jurídicas de direito privado, qualificam-se como bens privados. Entretanto, como são entidades da Administração Pública e estão sob o controle do Estado se vinculam a algumas regras de direito público. O fato de terem personalidade jurídica de direito privado não as colocam no nível de exata igualdade com as pessoas nascidas da iniciativa privada, devendo realizar licitação para alienação de seus bens, respeitando os princípios da Administração Pública, art. 173, § 1º, III, da CF/88. Vejamos:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse da segurança nacional de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção e comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
(...);
III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;
(...).”
Tratando-se de bem de domínio privado, com exceção dos de propriedade das empresas estatais e sociedades de economia mista, aprioristicamente não haveria necessidade de qualquer procedimento licitatório para sua alienação. Entretanto, se estivermos tratando de bens privados afetados à realização do interesse público, constituindo-se em instrumento indispensável para prestação do serviço, e de bens reversíveis, nessa situação serão regidos pelo regime jurídico dos bens públicos.
Os bens públicos ingressam no patrimônio da Administração Pública e se alojam em uma das mencionadas espécies do art. 99 do Código Civil, por força da sua própria natureza ou em razão de lei ou ato administrativo. É a afetação. Afetar, portanto, é atribuir ao bem público destituído de qualquer consagração, como é o caso dos bens dominicais, uma destinação de uso comum do povo ou de uso especial, como se passa quando a Administração Pública proprietária de bem público dominical o utiliza para a construção de um hospital. Uma vez afetados, assim permanecem até que em função do interesse público e atendidas algumas exigências sejam retirados da categoria em que estão alocados. Quando isso acontece, tem-se a desafetação. A desafetação significa a desconsagração de um bem público e sua integração à categoria dos bens públicos dominicais. O bem tinha, agora não tem qualquer destinação podendo ser alienado de acordo com as regras de direito público.
No direito privado, os instrumentos jurídicos mais utilizados para transferência de domínio são a compra e venda e a doação. A alienação de bens públicos pela Administração também ocorre por meio desses institutos de direito privado, mas nunca são utilizados de forma integral, respeitando, sob vários aspectos, os princípios que regem os contratos de direito público.
A alienação onerosa de bens da Administração faz-se através de uma compra e venda; a gratuita através de uma doação. A alienação de bem da Administração, ainda que através de institutos de direito privado, está sempre vinculada às regras de direito público. Isso significa que nenhuma cláusula ou regra peculiar a esses contratos privados será aplicável quando contrariar os princípios de direito público.
Segundo ensinamentos do Prof. Hely Lopes Meirelles[2]:
“Alienação – Alienação é toda transferência de propriedade, remunerada ou gratuita, sob a forma de venda, permuta, doação, dação em pagamento, investidura, legitimação de posse ou concessão de domínio. Qualquer dessas formas de alienação pode ser utilizada pela Administração, desde que satisfaça as exigências administrativas para o contrato alienador e atenda aos requisitos do instituto específico. Em princípio, toda alienação de bem público depende de lei autorizadora, de licitação e de avaliação da coisa a ser alienada, mas casos há de inexigibilidade dessas formalidades, por incompatíveis com a própria natureza do contrato. Há, ainda, uma forma excepcional de alienação de bem público, restrita a terras devolutas, que é a denominada legitimação de posse, que conceituamos adiante.” (grifo nosso)
Com fulcro no art. 481 do Código Civil pode-se definir a compra e venda de bem da Administração como o contrato pelo qual esta, chamada vendedora, transfere o domínio de certo bem que lhe pertence a outrem, chamado comprador, mediante o recebimento em dinheiro de determinado preço. Esse contrato, na sua essência, é regulado pelas leis civis, embora celebrado com o atendimento prévio de formalidades administrativas, a exemplo da licitação. Restará perfeito e válido esse contrato se forem atendidas as exigências civis (bem, preço, consentimento, forma) que lhe são próprias e as administrativas (processo administrativo, indicação do bem objeto da alienação, interesse público devidamente justificado, avaliação, desafetação) que lhe são incidentes.
O art. 538 do Código Civil permite que se defina a doação de bem público como o contrato em que a Administração Pública, sem qualquer ônus para o donatário que o aceita, transfere-lhe certo bem do seu patrimônio. Sua legalidade depende do atendimento das exigências civis e administrativas. Esse contrato, via de regra, por instrumento público, pode consubstanciar uma doação simples ou com encargos.
Devemos esclarecer, conforme já mencionado, que não é todo e qualquer bem da Administração passível de alienação. A leitura conjugada dos arts. 100 e 101 do Código Civil deixa claro que só os bens públicos dominicais podem ser alienados e, ainda assim, se forem atendidas as exigências civis e administrativas. Portanto, os bens de uso comum do povo e de uso especial, enquanto guardarem essa afetação, não podem ser alienados, qualquer que seja a modalidade de alienação. A transferência dominial desses bens exige, portanto, sua prévia desafetação e integração à espécie dos bens dominicais, pois somente estes podem ser vendidos, permutados, doados e dados em pagamento, observadas, sempre, as exigências civis e administrativas.
Outra exigência legal para a alienação de bem da Administração é a presença de interesse público em transferir o domínio do bem. A Lei de Licitações, conforme consignado no seu art. 17, caput, exige que haja interesse público para que a alienação de bem da Administração possa acontecer.
A realização de procedimento licitatório também é exigência, em princípio, inafastável para aquisição ou alienação de bens pela Administração pública, por força dos princípios da igualdade, da moralidade administrativa e da competitividade e, se isso não bastasse, por determinação expressa da Lei federal das Licitações e Contratos da Administração Pública. A licitação, no entanto, é dispensada nos casos de doação, permuta, venda de ações, venda de títulos, venda de bens produzidos ou comercializados por órgãos ou entidades da Administração Pública e venda de matérias e equipamentos para outros órgãos ou entidades da Administração Pública e inexigível quando houver inviabilidade de competição.
Dispõem os arts. 17 e 25 da Lei n. 8.666/93 que:
“Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:
(...)
II – quando móveis, dependerá de avaliação prévia e de licitação, dispensa esta nos seguintes casos:
(...)
f) venda de materiais e equipamentos para outros órgãos ou entidades da Administração Pública, sem utilização previsível por quem deles dispõe.”
“Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(...)”.(grifo nosso)
Regra geral faz-se necessário a realização de licitação para a transferência ou aquisição de bem pela Administração Pública, sendo essa dispensada quando ocorrer alienação para outra entidade da Administração ou inexigível quando houver inviabilidade de competição. Sendo assim, a compra ou venda de bens móveis pela Administração Pública está sujeita à licitação, salvo nas hipóteses dos arts. 17 e 25 da Lei n. 8.666/93.
Ante o exposto, entendemos que a alienação de bens móveis pertencentes às pessoas de direito privado, com exceção das empresas estatais e sociedades de economia mista, aprioristicamente não estão sujeitos à qualquer procedimento licitatório. Todavia, se estivermos tratando de bens móveis privados afetados à realização do interesse público, constituindo-se em instrumento indispensável para prestação do serviço e de bens reversíveis, nessa situação serão regidos pelo regime jurídico dos bens públicos e estarão sujeitos à licitação.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28 ed. São Paulo: 2003.
Procurador Federal. Especialista em Direito Sanitário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Maxiliano D'avila Cândido de. Alienação de bens móveis privados afetados à realização do interesse público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36950/alienacao-de-bens-moveis-privados-afetados-a-realizacao-do-interesse-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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