Resumo: A aplicação de sanções decorrentes do regime disciplinar da previdência complementar além dos efeitos das penalidades em si, acarretam a perda da legitimidade de eventuais sancionados a comporem as instâncias de governança da entidade fechada de previdência complementar. Questão que surge para o debate diz respeito a eventuais irresignações no âmbito judicial a afastarem o cumprimento imediato dos efeitos administrativos das sanções administrativas, à luz do princípio da não culpabilidade.
Palavras-chave: Previdência Complementar Fechada. Processo Sancionador. Princípio da não culpabilidade. Princípio constitucional da supremacia do interesse público.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO; 2. DESENVOLVIMENTO; 2.1 Os Princípios e a sua aplicação no ordenamento jurídico; 2.2 Princípio da Presunção de Veracidade e Legitimidade do Ato Administrativo; 2.3 Do cotejo e aplicação de princípios jurídicos 3. CONCLUSÃO.
INTRODUÇÃO
O processo sancionador no âmbito do regime de previdência complementar operado por entidades fechadas de previdência complementar possui esteio legal no disposto no art. 65 da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001[1]. O regulamento previsto no dispositivo citado, bem como no art. 66 da mesma lei veio disciplinado no Decreto nº 4.942, de 30 de dezembro de 2003[2].
A par de trazer toda a sistemática disciplinar aplicável a pessoa física ou jurídica que venha infringir a legislação de previdência complementar, ainda possui efeitos que se irradiam para fora do âmbito disciplinar, alcançando assim a própria legitimidade legal de gestores que queiram habilitar-se a compor os órgãos de governança dos Fundos de Pensão, ou até mesmo a perda de tal legitimidade no decurso do exercício do cargo de governança na entidade fechada de previdência complementar.
Neste tema delimitado, o presente artigo pretende discutir a possibilidade da aplicação de princípios constitucionais e a aparente colisão entre estes quando da aplicação de sanções que tornem inelegíveis os gestores apenados, para fins de alcançar um posicionamento jurídico que a par de dar cumprimento às garantias individuais (princípio da não-culpabilidade ou inocência), também não descure da efetividade da lei e consequentemente a observância do princípio da supremacia do interesse público.
Especificamente, abordar-se-á a possibilidade de em havendo discussão judicial em curso, sem haver provimento cautelar ou antecipatório de tutela, ser suspenso os efeitos da ilegimidade dos sancionados para fazerem parte do órgão de governança das EFPC: conselho deliberativo, conselho fiscal e diretoria-executiva.
DESENVOLVIMENTO
Os Princípios e a sua aplicação no ordenamento jurídico
Antes de ingressar diretamente nos conceitos e aplicações dos princípios da não culpabilidade ou inocência no âmbito do processo sancionador da previdência complementar, que aparentemente apresentam antinomia em sua aplicação, salutar fazer-se uma digressão acerca do próprio conceito de princípio jurídico, bem como a seara de aplicação dos mesmos.
A aplicação dos princípios no âmbito do Direito é temática essencial e sobre esta já dissertaram grandes estudiosos. Referência no tema, Robert Alexy assim já havia ministrado:
“As regras são normas que, dadas determinadas condições, ordenam, proíbem, permitem ou outorgam um poder de maneira definitiva. Assim, podem caracterizar-se como “mandados definitivos”. Os direitos que se baseiam em regras são direitos definitivos. Os princípios são normas de um tipo completamente distinto. Eles ordenam otimizar. Como tais, são normas que ordenam que algo deve ser feito na maior medida fática e juridicamente possível. As possibilidades jurídicas, além de dependerem de regras, estão essencialmente determinadas por outros princípios opostos, fato que implica que os princípios podem e devem ser ponderados. Os direitos que se baseiam em princípios são direitos prima facie.” [itálico nosso. Utilizamos edição espanhola desta obra. As traduções dos trechos citados são de nossa responsabilidade.] ALEXY (1993, p. 27).
A doutrina nacional também vem se debruçando acerca do tema da aplicação dos princípios jurídicos na resolução de demandas, sejam estas administrativas ou judiciais. Nesta linha, Bandeira de Mello[3] assim leciona a conceituação de princípio:
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”
Portanto, depreende-se que o princípio jurídico serve de parâmetro válido e efetivo para interpretação da norma legal. Assim é que, nos casos em que a aplicação da norma legal carece de interpretação, preenchimento de lacunas ou mesmo venha a conflitar com conteúdos principiológicos vigentes, deve a primeira adequar-se ao conteúdo principiológico ou ceder para que se faça a leitura e efetivação desta à luz do princípio aplicável ao caso em exame.
A leitura atual do ordenamento jurídico destaca o entendimento de que os princípios servem de método hermenêutico, principalmente na seara constitucional, no que diz respeito a efetividade da norma fundamental, bem como aferição de compatibilidade das normas infraconstitucionais com o diploma democrático maior. Neste sentido, já lecionava Luís Roberto Barroso[4]:
"O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da constituição; b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional. A ascensão política e científica do direito constitucional brasileiro conduziram-no ao centro do sistema jurídico, onde desempenha uma função de filtragem constitucional de todo o direito infraconstitucional, significando a interpretação e leitura de seus instintos à luz da Constituição". (Destaquei)
No âmbito do regime de previdência complementar fechado, os princípios também possuem importância vital como eixo diretivo para construção de um regime que, inobstante seu viés privado, possui nítido caráter de proteção social. Assim é que os princípios constitucionais da complementariedade, autonomia do regime, contratualidade, paridade contributiva, tutela dos participantes e assistidos, dentre outros trazidos pelas Leis Complementares orgânicas (LC nº 108 e 109), são os vetores de orientação para adequada interpretação das normas infraconstitucionais e reguladoras do mencionado regime.
Princípio da Presunção de Veracidade e Legitimidade do Ato Administrativo
Feitas as considerações iniciais acerca da conceituação dos princípios e sua aplicação no ordenamento jurídico, segue-se então a abordagem específica dos dois princípios em exame.
O princípio da presunção de legitimidade ou veracidade do ato administrativo decorre da necessidade de se atribuir celeridade e efetividade aos atos produzidos pela Administração Pública. O ordenamento jurídico dotou o ato administrativo de um atributo ou mecanismo que lhe outorgue a segurança jurídica necessária para produção de seus efeitos. A doutrina de Maria Sylvia Di Pietro[5] assim tem conceituado o princípio:
“A presunção de legitimidade constitui um princípio do ato administrativo que encontra seu fundamento na presunção de validade que acompanha todos os atos estatais, princípio em que se baseia, por sua vez, o dever do administrado de cumprir o ato administrativo. Se não existisse esse princípio, toda a atividade administrativa seria diretamente questionável, obstaculizando o cumprimento dos fins públicos, ao antepor um interesse individual de natureza privada ao interesse coletivo ou social, em definitivo, o interesse público.”
Nas lições didáticas de Odete Medauar[6] à edição de atos administrativos entende-se como consectário lógico a pressuposição de que os mesmos guardam completa pertinência e subsunção com o arcabouço legal, legitimando desta maneira a Administração a expedir tais atos e dar-lhes efetividade na forma de auto-executoriedade do mesmo.
Afim de fixar ainda melhor o alcance do princípio ora em exame transcreve-se trecho da obra de Marcelo Alexandrino[7]:
“O fundamento da presunção de legitimidade dos atos administrativos é a necessidade que possui o Poder Público de exercer com agilidade suas atribuições, especialmente na defesa do interesse público. Esta agilidade inexistiria caso a Administração dependesse de manifestação prévia do Poder Judiciário quanto à validade de seus atos toda a vez que os editasse.
Portanto, regra geral, o ato administrativo obriga os administrados por ele atingidos, ou produz os efeitos que lhe são próprios, desde o momento de sua edição, ainda que apontada a existência de vícios em sua formação que possam acarretar a futura invalidação do ato. Esse requisito autoriza, portanto, a imediata execução de um ato administrativo, mesmo se eivado de vícios ou defeitos aparentes; enquanto não pronunciada sua nulidade, ou sustados temporariamente seus efeitos, deverá ser cumprido. Enquanto não decretada a invalidade do ato pela Administração ou pelo Poder Judiciário, o ato inválido produzirá normalmente seus efeitos, como se plenamente válido fosse, devendo ser fielmente cumprido.”
Insta destacar que no caso em tela o ato administrativo, materializado na decisão final da Câmara de Recursos da Previdência Complementar - CRPC[8], órgão de instância recursal administrativa, obedece todo um procedimento complexo de aprovação ou decisão, sendo abordado e validado em duas instâncias administrativas. Tal menção destaca que a presunção de legitimidade, ora em discussão, possui densidade argumentativa suficiente a afastar ilações contrárias desprovidas de base argumentativa/probatória.
Ademais, conforme se verifica dos entendimentos doutrinários acima, compete ao administrado o ônus de provar que o ato administrativo padece de algum vício que acarrete sua nulidade. Neste sentido vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. REVALORIZAÇÃO JURÍDICA DOS FATOS. POSSIBILIDADE. ÔNUS DA PROVA. MANDADO DE SEGURANÇA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.
(...)
4. Ao entender que caberia ao ente público comprovar a legalidade da multa aplicada, o Tribunal a quo contrariou o princípio da presunção de legitimidade do ato administrativo, além da sistemática probatória da ação mandamental, que exige a comprovação do direito vindicado por meio de prova pré-constituída.
5. Recurso especial provido.
(REsp 1172088/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2010, DJe 21/10/2010)
Desta feita, verifica-se que o princípio ora em questão inverte o ônus da prova, no sentido de que cabe ao administrado provar que o ato administrativo padece de algum vício que importe a nulidade deste. Até que eventualmente o judiciário entenda haver algum vício que macule o ato administrativo praticado, este produz todos seus efeitos jurídicos.
Princípio da Presunção de Inocência ou Não Culpabilidade
Como segundo princípio jurídico a ser examinado no presente artigo acadêmico diz respeito ao princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade. O referido princípio possui sede constitucional, assim determinando a Carta Magna:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
O princípio ora em análise possui relevância no âmbito do direito processual penal, sendo vetor de interpretação hermenêutica de várias normas e julgados no que se refere a disciplina penal. Neste diapasão, salutar trazer a contexto a manifestação da doutrina processual penal acerca do princípio em exame:
“Afirma-se frequentemente em doutrina que o princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de inocência, impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada.
No que se refere às regras de tratamento, o estado de inocência encontra efetiva aplicabilidade, sobretudo, no campo da prisão provisória, isto é, na custódia anterior ao trânsito em julgado, e no do instituto a que se convencionou chamar de “liberdade provisória””[9].
“Princípio da presunção de inocência: também conhecido como princípio do estado de inocência ou não-culpabilidade, significa que todo acusado é presumido inocente, até que seja declarado culpado por sentença condenatória, com trânsito em julgado. Encontra-se previsto no art. 5º, LVII, da Constituição. O princípio tem por objetivo garantir que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu. Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a necessariedade das medidas cautelares de prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere quando realmente for útil à instrução e à ordem pública.”[10]
Portanto, conforme se depreende dos ensinamentos doutrinários acima, o princípio da não-culpabilidade é diretriz hermenêutica na condução do processo penal e seus respectivos institutos e procedimentos jurídicos.
Todavia, há de se destacar que o princípio em tela, em que pese sua origem constitucional, não possui aplicação inafastável ou inabalável. A Suprema Corte Brasileira[11] já vem sedimentando sua jurisprudência constitucional no sentido da necessidade de se avaliar tal princípio à luz de outros valores jurídicos igualmente aplicáveis ao caso em concreto.
Do cotejo e aplicação de princípios jurídicos ao caso concreto
Feitas as remissões conceituais necessárias à introdução da questão a ser tratada no presente artigo, passa-se a avaliar o tratamento adequado ao caso hipotético, à luz do cotejo necessário entre os princípios aventados e a mais adequada posição a ser tomada pelo intérprete das normas.
Antes de mais nada, apresenta-se o caso hipotético a ser testada a tese desenvolvida neste trabalho: ex-dirigente de entidade fechada de previdência complementar que sofre penalidade administrativa no âmbito do processo sancionador do regime de previdência complementar, restando assim impedido de assumir cargo em órgãos estatutários de EFPC por força de disposição legal e estatutária, mas que ingressou judicialmente para rediscutir a sanção que lhe foi imputada.
Da situação hipotética acima chega-se ao seguinte embate jurídico a ser sanado: qual dos princípios deve prevalecer neste caso, a presunção de legitimidade e veracidade do ato administrativo ou o princípio da inocência em decorrência da discussão judicial provocada pelo sancionado?
Pois bem, neste contexto algumas considerações de ordem doutrinária e jurisprudencial serão necessárias para ao final conseguir chegar-se a um entendimento adequado ao tema.
No atual cenário jurídico constitucional do ocidente, há plena convicção da relativização da Teoria de Kelsen[12] que enxergava o ordenamento jurídico de maneira hermética para influência dos princípios, calcado unicamente na legitimidade do procedimento legislativo que deu origem à norma jurídica ou ao próprio arcabouço jurídico, à luz da Constituição. A norma positivada até poderia ser interpretada à luz de valores morais, éticos e políticos, todavia tal interpretação não pode ser entendida como Direito positivado, ou seja, aquele emanado do Poder competente para prolação das leis. Aqui a discussão deriva para a diferenciação das bases de fundamentação e aplicação das normas jurídicas, o que foge aos fins deste artigo acadêmico.
Assim é que surgem, no final do século XX, teorias como da proporcionalidade de Robert Alexy[13] e da integridade de Ronald Dworkin[14], que, guardadas as diferenças ontológicas entre as mesmas, propugnam a ampla interpretação do arcabouço normativo à luz de princípios outros (morais, políticos, éticos), que não circunscritos à lógica jurídica, mas que devem necessariamente influenciar o intérprete do Direito na busca do necessário e adequado tratamento jurídico a ser dado ao caso em concreto.
À vista disso, o panorama hipotético posto à análise diz respeito a elaborar a leitura consentânea da regra legal à luz dos princípios até aqui comentados. Assim preceitua o dispositivo normativo da Lei Complementar nº 109/2001:
Art. 35. As entidades fechadas deverão manter estrutura mínima composta por conselho deliberativo, conselho fiscal e diretoria-executiva.
(...)
§ 3o Os membros do conselho deliberativo ou do conselho fiscal deverão atender aos seguintes requisitos mínimos:
I - comprovada experiência no exercício de atividades nas áreas financeira, administrativa, contábil, jurídica, de fiscalização ou de auditoria;
II - não ter sofrido condenação criminal transitada em julgado; e
III - não ter sofrido penalidade administrativa por infração da legislação da seguridade social ou como servidor público.
§ 4o Os membros da diretoria-executiva deverão ter formação de nível superior e atender aos requisitos do parágrafo anterior.
O artigo legal acima foi objeto de análise pela Procuradoria Federal junto à Previc[15], restando assentado o entendimento quanto à interpretação jurídica do mesmo:
Da leitura do dispositivo acima se depreende que a lei estabelece requisitos mínimos que possam garantir, ao menos objetivamente, que os dirigentes das EFPCs possuam conhecimento e reputação condizentes com a relevante missão a este atribuídas. Assim é que se espera de um dirigente ou conselheiro de uma EFPC o pleno atendimento de tais requisitos mínimos essenciais, durante o curso do prazo de mandato ou gestão a estes outorgados.
A exigência de requisitos, como previsto na lei, justifica-se não apenas para acesso aos cargos, mas sim para o próprio exercício destes no decorrer do período a que o gestor estiver a frente do órgão estatutário da EFPC. Entender de forma contrária é retirar a efetividade da norma, tornando-a letra morta, esvaziando seu principal intuito: a proteção dos interesses dos participantes e assistidos, bem como zelar pelo funcionamento adequado das EFPC.
Ora, não se pode deslembrar que se está diante de requisitos exigíveis das pessoas que irão compor a alta gerência das EFPC, ou seja, das instâncias responsáveis pela condução como um todo dos rumos da entidade e que, em razão do dever de fidúcia que é atribuído a estes profissionais na administração de recursos de terceiros, impõe-se que sua conduta seja pautada pelos mais elevados padrões éticos e legais.
Retornando novamente ao caso hipotético, a questão de saber qual princípio deve ser aplicado, tendo em vista que a depender do posicionamento, resultará em eventual ilegitimidade do sancionado para compor um dos órgão de governança indicados no dispositivo legal acima. O cerne da questão residiria no entendimento de que a rediscussão, feita em sede judicial, dos fatos que ensejaram a sanção administrativa ao dirigente, poderia afastar o princípio da legitimidade e veracidade do ato administrativo em decorrência de eventual primazia do princípio do estado de inocência ou não culpabilidade.
A doutrina jurídica tem ensinado que, ao contrário das antinomias normativas ou de regras legais em que a interpretação impõe a regra do “tudo ou nada”, no caso de aparente antinomia de princípios, o mecanismo apropriado para resolução do caso reside na ponderação destes, não havendo exclusão de um em detrimento de outro. Alexy[16] assim leciona:
“[...] um tem que ceder ante o outro. Porém isto não significa declarar inválido o princípio afastado nem que no princípio afastado tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para além da dimensão da validade, na dimensão do peso”.
De maneira que ao tratar dos princípios trazidos para resolução da eventual antinomia, nenhum destes resta prejudicado para que sua aplicação possa se dar em outros casos, tendo em vista que a concretude dos eventos, ou seja, a realidade fática não pode ser descartada, assumindo papel preponderante quando da ponderação de princípios.
Sem prejuízo da continuidade da análise, há que se antecipar o posicionamento no sentido de que, muito mais que o princípio da legitimidade ou veracidade do ato administrativo, o caso em exame põe em risco a própria supremacia do interesse público. O processo sancionador é instrumento usual da Administração Pública, para exercer a tutela do regime de previdência complementar, sendo um dos princípios/objetivos[17] do Poder Público neste campo de atuação estatal. Deste modo, afastar a efetividade das decisões colegiadas, tanto de primeira como de segunda instância administrativa, é fazer menoscabo da função estatal de punir dirigentes que faltam com o dever de diligência, probidade e lealdade com a função de gerir a poupança de uma coletividade.
Por conseguinte, acatar a tese de que toda a sanção imposta no processo sancionador, cujo procedimento pressupõe a observância do devido processo legal, contraditório e da ampla defesa, apenas pode efetivamente ser aplicada quando tão-somente findar eventual processo judicial rediscutindo o tema, é negar, ainda que por vias indiretas, o próprio princípio da supremacia do interesse público.
Pois bem, no caso hipotético conclui-se para a constatação que não há que se falar em eventual antinomia de princípios. O princípio da inocência ou não culpabilidade não se aplica ao caso de regras de legitimidade para compor órgão estatutário de EFPC. Conforme visto anteriormente, a doutrina é uníssona em reconhecer que tal princípio orbita na esfera do direito processual penal, garantindo que os estão sob o crivo do processo penal não venham sofrer cerceamento indevido da liberdade em face de procedimentos cautelares não plenamente justificáveis.
Demais disso, constata-se que o caso em tela possui similitude com a discussão travada no Supremo Tribunal Federal no bojo do julgamento conjunto das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e nº 30/DF e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4578, que questionava a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, amplamente conhecida como “Lei da Ficha Limpa”. Neste caso jurisdicional, digno de constar neste opinativo trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa que analisava a questão do princípio da inocência em face da legislação eleitoral:
“Assim, se durante quase duas décadas essa Corte considerou possível o afastamento do princípio da presunção da não-culpabilidade mesmo em seu campo próprio de incidência que é o Direito Penal, é incompreensível que se queira, nesse momento de consternação com os rumos que vem tomando a política nacional, fazer o caminho inverso, isto é, subtrair esse princípio do seu campo próprio de aplicação e trazê-lo de empréstimo para o domínio eleitoral, onde prevalecem outros valores, onde a ótica primordial a ser adotada pelo intérprete é aquela que confira maior proteção à sociedade, e não ao indivíduo, ou aos grupos e igrejinhas a que ele eventualmente pertença. Aqui, a primazia é de quem elege, isto é, da sociedade, do eleitor, que não quer e não se vê representado por pessoas que ostentam em seu currículo nódoas tão repugnantes como as que são elencadas na Lei da Ficha Limpa.” (destaquei)
Convertendo o exemplo acima para os moldes da governança das EFPC, a exigência pelo Estado de requisitos negativos mínimos de probidade e eficiência é em última consequência a própria proteção da poupança previdenciária de uma coletividade que, calcada no princípio da confiança e boa-fé, entregou seus recursos financeiros para que fossem geridos de forma proba e competente, para ao fim possuir a cobertura necessária para os riscos sociais decorrentes do labor destes trabalhadores e indivíduos.
Insta ainda lembrar que o processo sancionador é composto por duas fases ou instâncias de julgamento administrativo, com decisão colegiada em ambas. Portanto, sendo assegurado ao autuado o devido processo legal e a plena revisão de entendimento em segunda instância julgadora administrativa, caracterizando assim o duplo grau de jurisdição administrativa.
Logo, incidiria a aplicação do princípio da inocência, por exemplo, se houvesse execução da sanção administrativa antes do julgamento revisor na Câmara de Recursos da Previdência Complementar. Nesta linha de entendimento, em reforço aos argumentos salutar trazer a contexto o fragmento da decisão do STF da lavra do Ministro Celso de Mello da decisão do STF no julgamento da ADPF nº 144:
“O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente.
Há, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o transito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se -, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.”
Portanto, assentada a opinião de que, ao se importar indiscriminadamente o princípio da inocência para seara do processo administrativo sancionador, estar-se-ia esvaziando o próprio objetivo da norma ou procedimento legal, o que efetivamente não se harmoniza com outros princípios tão caros como legalidade e moralidade.
Ademais, não se pode esquecer que há mecanismos processuais civis como a tutela antecipada e a medida cautelar que estão à disposição do juízo cível, preenchidos os requisitos legais para concessão, para que se assim entender, suspender os efeitos da condenação em âmbito administrativo.
Também nesta linha, ao transpor irrestritamente o princípio da inocência, como se dá no caso em tela em que existe discussão judicial dos fatos tratados no processo sancionador, estar-se-ia criando uma terceira instância de julgamento, o que a meu ver fere o princípio do devido processo legal. Não estou aqui a negar o princípio constitucional da inafastabilidade do poder Judiciário, mas como dito acima, princípios constitucionais outros de igual envergadura devem ser levados em consideração no sopesamento de valores axiológicos igualmente válidos.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como objetivo primordial verificar, a partir de um caso hipotético, a eventual colisão de princípios constitucionais no âmbito do processo sancionador da previdência complementar.
Após todas as considerações doutrinárias e jurisprudências chega-se a conclusão que não se aplica o princípio da inocência ao casos em que há trânsito em julgado administrativo do processo sancionador, o que afasta a presunção de não-culpabilidade.
Na mesma linha, a eventual aplicação irrestrita deste princípio, pode vir a esvaziar o conteúdo efetivo do processo disciplinar afrontando o próprio princípio da supremacia do interesse público.
BIBLIOGRAFIA
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ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
[1] Art. 65. A infração de qualquer disposição desta Lei Complementar ou de seu regulamento, para a qual não haja penalidade expressamente cominada, sujeita a pessoa física ou jurídica responsável, conforme o caso e a gravidade da infração, às seguintes penalidades administrativas, observado o disposto em regulamento:
I - advertência;
II - suspensão do exercício de atividades em entidades de previdência complementar pelo prazo de até cento e oitenta dias;
III - inabilitação, pelo prazo de dois a dez anos, para o exercício de cargo ou função em entidades de previdência complementar, sociedades seguradoras, instituições financeiras e no serviço público; e
IV - multa de dois mil reais a um milhão de reais, devendo esses valores, a partir da publicação desta Lei Complementar, ser reajustados de forma a preservar, em caráter permanente, seus valores reais.
§ 1o A penalidade prevista no inciso IV será imputada ao agente responsável, respondendo solidariamente a entidade de previdência complementar, assegurado o direito de regresso, e poderá ser aplicada cumulativamente com as constantes dos incisos I, II ou III deste artigo.
§ 2o Das decisões do órgão fiscalizador caberá recurso, no prazo de quinze dias, com efeito suspensivo, ao órgão competente.
§ 3o O recurso a que se refere o parágrafo anterior, na hipótese do inciso IV deste artigo, somente será conhecido se for comprovado pelo requerente o pagamento antecipado, em favor do órgão fiscalizador, de trinta por cento do valor da multa aplicada. (Vide Súmula Vinculante nº 21)
§ 4o Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
Art. 66. As infrações serão apuradas mediante processo administrativo, na forma do regulamento, aplicando-se, no que couber, o disposto na Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999. (Regulamento)
[2] Regulamenta o processo administrativo para apuração de responsabilidade por infração à legislação no âmbito do regime da previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar, de que trata o art. 66 da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, a aplicação das penalidades administrativas, e dá outras providências.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 12 edição, 2000, p.200.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. In Revista de Direito Administrativo. v. 225, jul/set 2001. Rio de Janeiro: Renovar, p. 36.
[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 12ª edição, 2000, p.183.
[6] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, 143.
[7] ALEXANDRINO, Marcelo & Vicente Paulo. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Impetus, 9ª ed., 2005, p.281.
[8] Art. 3º À CRPC, órgão recursal colegiado no âmbito do Ministério da Previdência Social, compete apreciar e julgar, encerrando a instância administrativa, os recursos interpostos contra decisão da Diretoria Colegiada da Superintendência Nacional de Previdência Complementar - Previc:
I - sobre a conclusão dos relatórios finais dos processos administrativos iniciados por lavratura de auto de infração ou instauração de inquérito, com a finalidade de apurar responsabilidade de pessoa física ou jurídica, e sobre a aplicação das penalidades cabíveis; e
II - sobre as impugnações referentes aos lançamentos tributários da Taxa de Fiscalização e Controle da Previdência Complementar - Tafic. (Decreto nº 7123, de 3 de março de 2010).
[9] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p.31.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal – Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.53/54.
[11] “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de reconhecer que a prisão decorrente de sentença condenatória meramente recorrível não transgride a presunção constitucional de inocência, desde que a privação da liberdade do sentenciado - satisfeitos os requisitos de cautelaridade que lhe são inerentes - encontre fundamento em situação evidenciadora da real necessidade de sua adoção” (Habeas Corpus n. 99.914, Relatora a Ministra Ellen Gracie, p. 30.4.2010).
[12] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, p.393/394.
[13] No es difícil reconocer que la presencia de principios, por tanto, de mandatos de optimización, en el sistema jurídico tiene consecuencias en cuanto al carácter de éste y al concepto de Derecho, que sobrepasan con mucho el aspecto metodológico. Donde esto es más claro es en los principios constitucionales, como los de dignidad humana, libertad, igualdad, democracia, Estado de Derecho y Estado social. Si una constitución contiene estos seis principios, ello significa que se han incorporado a ella las formas principales del Derecho racional de la modernidad. El carácter de los principios significa que no se trata simplemente de normas vagas, sino que con ellas se plantea una tarea de optimización. Dicha tarea es, en cuanto a la forma, jurídica; en cuanto al fondo, sin embargo, es siempre también moral, a causa de su contenido moral. Puesto que algo análogo vale para muchos otros principios, la teoría de los principios ofrece un punto de partida adecuado para atacar la tesis positivista de la separación entre Derecho y moral. ALEXY. Robert. SISTEMA JURÍDICO, PRINCIPIOS JURÍDICOS Y RAZÓN PRÁCTICA. Este texto integra la ponencia presentada por el autor en las IV Jornadas Internacionales de Lógica e Informática Jurídicas, celebradas en San Sebastián en septiembre de 1988. Texto complementar da Disciplina Direito Constitucional da Pós Graduação em Direito Público CEAD/UnB.
[14] O modelo distingue entre o direito positivo – o direito nos livros, o direito apresentado nas declarações evidentes das leis e das decisões passadas das cortes – e o direito como um todo, que aceita a estrutura dos princípios da moralidade política, tomados em conjunto como a melhor interpretação do direito positivo. O modelo insiste numa certa compreensão da ideia de interpretação: um conjunto de princípios possibilita a melhor interpretação do direito positivo se ele provê a melhor justificação disponível para as decisões políticas que o direito positivo anuncia. Em outras palavras, o modelo possibilita a melhor interpretação caso mostre o direito positivo na melhor luz possível. DWORKIN, Ronald. A Conferência Mccorkle de 1984 – As ambições do Direito para si próprio. Trad. Emílio Peluso Neder Meyer e Alonso Reis Siqueira Freire. Texto complementar da Disciplina Direito Constitucional da Pós Graduação em Direito Público CEAD/UnB. (destaquei)
[15] Parecer nº 52/2013 PF-PREVIC/PGF/AGU.
[16] ALEXY, Robert apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 33.
[17] Art. 3o A ação do Estado será exercida com o objetivo de:
(...)
V - fiscalizar as entidades de previdência complementar, suas operações e aplicar penalidades; e (LC nº 109/2001)
Procurador Federal, Coordenador-Geral de Estudos e Normas da Procuradoria Federal junto à PREVIC, Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, Membro da Câmara de Recursos da Previdência Complementar - CRPC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HENRIQUE, Adriano Cardoso. Aplicação de sanção no regime disciplinar da previdência complementar fechada e os princípios da não culpabilidade e supremacia do interesses público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36988/aplicacao-de-sancao-no-regime-disciplinar-da-previdencia-complementar-fechada-e-os-principios-da-nao-culpabilidade-e-supremacia-do-interesses-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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