A Lei nº 9.636/98 disciplina, dentre outros assuntos, a venda de imóveis da União. No seu art. 27, inciso I, estabelece que a forma de garantia nessas alienações será a hipoteca do domínio pleno ou útil, quando couber. Sucede que, no âmbito das vendas da União, existem aquelas alienações feitas a outros órgãos públicos, o que se chama de transferência interadministrativa, que a diferencia da transferência extra-administrativa:
Se o bem for transferido para outra entidade estatal de direito público, ele persistirá no condição de bem público [...]. Aqui não se dá a despublicatio (a migração, do hemisfério público para o hemisfério privado, dos bens e fatores de produção), mas sim a mera transferência interadministrativa: a circulação de bens no interior da Administração Pública (direta ou indireta, desta ou daquela esfera política).
Já, para que o bem deixe de integrar o patrimônio público (independentemente da pessoa que o possui), faz-se necessário que dele seja retirado o adjetivo que o qualifica: uma vez que não é mais público, pode se integrar ao patrimônio de pessoas privadas e livremente circular entre elas. [...]. Aqui se está diante de uma despublicatio: a transferência extra-administrativa[1].
(destaques no original)
No que tange à exigência de garantia mediante hipoteca, a Lei nº 9.636/98 não fez qualquer distinção entre as vendas internas ou externas da Administração. A redação apenas previu a expressão “no que couber”, deixando para o caso concreto a avaliação acerca da exigibilidade ou não da garantia.
Por prudência, o gestor tende a exigir garantia hipotecária mesmo nos casos em que uma rápida reflexão acabe por revelar sua ineficácia. A proposta desse estudo é comprovar a fragilidade e inadequação jurídica em se exigir garantia mediante hipoteca nas alienações de imóveis da União a outros entes públicos, dada a natureza interadministrativa da transferência de patrimônio.
Por hipoteca entende-se o direito real de garantia que consiste em reservar o bem gravado para cumprimento de determinada obrigação pecuniária. “A hipoteca vincula um imóvel à execução de uma obrigação”[2]. Hipoteca é, por assim dizer, garantia.
Tanto é assim que, em se tratando de venda de imóveis da União, o art. 27, I, da Lei nº 9.636/98 diz que “as vendas a prazo serão formalizadas mediante contrato de compra e venda ou promessa de compra e venda em que estarão previstas, dentre outras” a “garantia, mediante hipoteca do domínio pleno ou útil, em primeiro grau e sem concorrência, quando for o caso” (sublinhamos). Merece destaque aqui a expressão “quando for o caso”, pois se que “quando for o caso” se afaste essa cláusula de garantia mediante hipoteca, seja por inadequação fática ou por inadequação jurídica.
Sobre esta última (inadequação jurídica) cabe relembrar, sem maiores delongas, a consabida característica de impenhorabilidade dos bens públicos, de onde decorre sua não onerabilidade.
José dos Santos Carvalho Filho explica o se entende por onerar um bem, lição a partir da qual se pode apreender a definição de não onerabilidade: “onerar um bem significa deixá-lo como garantia para o credor no caso de inadimplemento da obrigação. Exemplos de direitos reais sobre a coisa alheia são o penhor, a hipoteca e a anticrese, mencionados no art. 1419 do vigente Código Civil” [3]. Daí já se poderia afirmar que a não onerabilidade impede que a Administração dê seus bens em garantia de alguma obrigação.
Lucas Rocha Furtado faz ligação direta entre a não onerabilidade e a natureza impenhorável dos bens públicos, ao dizer que “a impossibilidade de oneração dos bens públicos é decorrência direta de duas outras características: a impenhorabilidade e a alienabilidade condicionada”[4].
Thiago Marrara afirma diretamente que a regra de impenhorabilidade impõe uma dupla vedação, sendo uma delas a de sujeitar os bens públicos a garantias reais, como a hipoteca e o penhor[5]. Sustenta ainda que a impenhorabilidade, para além do fundamento constitucional, sustentar-se-ia no próprio Código Civil, que estabelece a inalienabilidade dos bens de uso comum do povo e especial (art. 100) e, mais à frente, veda a hipoteca de bens inalienáveis (art. 1420).
A impenhorabilidade dos bens públicos não escusa a Administração do pagamento do que lhe for imputado judicialmente nem deixa os credores descobertos. Estipulou-se um procedimento específico de cobrança e pagamento dos débitos da Fazenda Pública, determinados o primeiro (procedimento de cobrança) por normas específicas do Código de Processo Civil (arts. 730 e 731) e o segundo (pagamento) pela própria Constituição Federal (art. 100).
Não se pode deixar de mencionar que a presunção de solvência da Fazenda Pública é um dos fundamentos para dispensar o garantir uma dívida com bens públicos, sem prejuízo de outros fatores:
[...] a existência desse procedimento baseia-se em dado mais profundo e que, historicamente, condicionou a própria fórmula constitucional. O elemento que se indicará revela-se bem mais expressivo do que a presunção de solvência da Administração (fiscus semper idoneus successor sit et solvendo).
A causa do procedimento especial repousa no regime especial dos bens do domínio nacional e do patrimônio administrativo. É disciplina usual em vários ordenamentos jurídicos. Em razão desse regime, a constrição imediata e incondicionada dos bens públicos se revela inadmissível, em princípio, e inoperante, por decorrência, a técnica expropriatória genérica prevista nos arts. 646 e 647 do CPC e aplicável aos particulares[6].
Em resumo, além de decorrer da presunção de solvência, a constrição judicial de bens públicos seria inadmissível e, ainda que prevista formalmente no instrumento contratual, quedar-se-ia inoperante.
É questão pacífica, portanto, a impossibilidade de oneração e penhora dos bens públicos, dada a fórmula específica de execução movida contra a Fazenda Pública, que salda seus débitos judiciais por meio de precatório (ou requisição de pequeno valor), sendo impossível a excussão e alienação em hasta de bens públicos para adimplemento da dívida com o produto desta venda judicial.
Nessa quadra, resta sem qualquer eficácia a hipoteca que porventura conste do contrato de compra e venda de imóvel a órgão público, aqui considerados os conceitos de bens e órgãos públicos fornecidos pelo Código Civil (art. 41 e art. 98 e seguintes).
Não cabem no presente estudo, mas vale mencionar a existência de discussão sobre o regime jurídico dos bens das empresas públicas ou das sociedades de economia mista[7], bem como sobre a extensão da impenhorabilidade e não onerabilidade aos bens enquadrados como dominicais[8]. Esses assuntos seriam objeto de estudo específico, não cabíveis no caso em apreço, que se limita a refletir sobre a ineficácia da instituição de garantia hipotecária na venda de imóveis da União a outros órgãos públicos, os quais, em regra, gozam do direito de impenhorabilidade de seus bens.
Mais importa nesta assentada destacar a posição da doutrina quanto à impossibilidade e ineficácia da cobrança de dívidas do Poder Público por meio da excussão de seus bens, baseando-se dentre outros motivos, na presumida solvência das pessoas estatais.
A alienação direta de bens imóveis a outros órgãos públicos não retira desses bens a qualificação de públicos, por isso continuam dotados das características até então destacadas (impenhorabilidade e não onerabilidade). Apesar das discussões doutrinárias[9], o critério adotado pelo Código Civil para qualificar um bem de público é o da titularidade (art. 98). Assim, saindo da titularidade (propriedade) da União e passando à de outro órgão público, não perde o bem as características antes mencionadas.
Não é porque um órgão da administração federal figura como credor que a sistemática desenhada em sede constitucional será afastada, abrindo-se margem para a penhora e alienação judicial do bem vendido a outra pessoa jurídica de direito público. Por isso, entende-se que a garantia hipotecária prevista no art. 27, I, da Lei nº 9.636/98 não se mostra aplicável ao caso de venda de bens imóveis federais para outra pessoa jurídica de direito público, porque as características inerentes a todo e qualquer bem público ficam preservadas.
Nem se diga que o alienante quedar-se-á sem garantia de pagamento, pois a Constituição Federal é garantia maior, quando prevê a sistemática de precatório, com as graves consequências decorrentes do descumprimento dessa obrigação constitucional. A presunção de solvência milita com igual eficácia e, em caso de inadimplemento e impossibilidade de composição administrativa, decerto uma execução judicial não restará frustrada.
Do ponto de vista jurídico, no aspecto da efetividade de recuperação do crédito, afigura-se talvez até mais eficaz um procedimento diretamente destinado à inclusão do débito em precatório do que a tentativa de primeiro alienar os bens penhorados para então saldar a dívida com o crédito respectivo e possivelmente incluir o remanescente em precatório.
Em sede de conclusão, pode-se sustentar a ilegalidade de cláusula que estabeleça garantia hipotecária quando um órgão público figure como adquirente. Desta feita, nas vendas de imóveis da União a outros entes públicos não poderá ser estabelecida garantia hipotecária, afastando-se o inciso I do art. 27 da Lei nº 9.636/98.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
MARRARA, Thiago. Bens públicos: domínio urbano: infra-estruturas. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MOREIRA, Egon Bockman, e GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. São Paulo: Malheiros, 2012.
NERY JUNIOR, Nelson. Código civil comentado. 8 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[1] MOREIRA, Egon Bockman, e GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 363.
[2] NERY JUNIOR, Nelson. Código civil comentado. 8 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1110.
[3] Manual de Direito Administrativo. 16. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 1088.
[4] Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 831.
[5] Bens públicos: domínio urbano: infra-estruturas. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 118-119.
[6] ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 1087.
[7] Cf. MARRARA, Thiago. Op. cit., pp. 76-83.
[8] Sobre a extensão da impenhorabilidade e da não onerabilidade aos bens dominicais, são expressamente favoráveis Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 518), Araken de Assis (Op. cit., pp. 1087-1088) e José dos Santos Carvalho Filho (Op. cit., p. 1088), este último inclusive destacando o caráter minoritário do entendimento contrário.
[9] Cf. MARRARA, Thiago. Op. cit., pp. 45-58.
Procurador Federal. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DINIZ, Braulio Gomes Mendes. A ineficácia da garantia hipotecária na venda de imóveis da União a outros entes públicos (art. 27, i, da Lei nº 9.636/98) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 out 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37017/a-ineficacia-da-garantia-hipotecaria-na-venda-de-imoveis-da-uniao-a-outros-entes-publicos-art-27-i-da-lei-no-9-636-98. Acesso em: 22 nov 2024.
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