Resumo: Cuida o presente trabalho de examinar os reflexos da norma de transição estabelecida pelo legislador ordinário, que, ao editar a Lei nº 12.815/2013, determinou ao poder concedente o dever de adaptar as outorgas de autorização, para exploração de instalações portuárias privadas, preexistentes ao novo marco regulatório. Tratando-se, pois de aplicação de direito intertemporal, capaz de gerar relevantes e apaixonadas controvérsias no âmbito jurídico, pretende-se analisar o conflito que exsurge entre o princípio do “direito adquirido” e o poder-dever do Estado de promover a adequação dos instrumentos de outorga, com vistas ao atendimento do interesse público, em relação à atividade que foi inserida no plexo de atribuições da própria União, ex-vi art. 21, XII “f”, CF/88.
PALAVRAS-CHAVE: instalações portuárias – autorizadas – adaptação.
ABSTRACT: The present study refers to the examination of the effects of the transition rules determined by ordinary legislator, when editing the Law 12.815/2013 that has determined to the grantor the duty of adapting the granting authorizations already in operation to the new regulatory framework. Thus, considering the intertemporal law, which creates relevant and passionate controversies in the legal argument, we intend to analyze the conflict that comes from the both application of the "grandfathered" principle and the power and duty of the State to promote the adequacy of instruments granted, in order to meet the public interest in relation to the activity that was inserted into the plexus of assignments of the Union itself, considering the article 21, XII "f", CF/88.
KEY WORDS: Port facilities – Granting authorizations - adaptation.
Introdução
Publicada no dia 5 de junho de 2013, a Lei 12.815 veio disciplinar a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias, em observância ao comando constitucional, que lhe atribui tal encargo. A referida lei é resultado do Projeto de Lei de Conversão nº 9/2013, proveniente da Medida Provisória nº 595, de 6 de dezembro de 2012.
A necessidade de promover a atualização do marco regulatório funda-se na premissa de que, pelos portos brasileiros, passa nada menos de 95% (noventa e cinco por cento) do fluxo de comércio exterior do país, conforme reafirmado na Exposição de Motivos Interministerial nº 0012-A-SEP-PR/MF/MT/AGU, de 3 de dezembro de 2012.
Com efeito, a disciplina ditada pela Lei dos Portos (Lei nº 8.630/93) não foi suficiente para determinar a superação do estágio de obsoletismo em que se encontrava, e que de fato ainda encontra-se, o setor, notadamente pela falta de investimentos públicos. De 1993, a melhora significativa que se verificou no ambiente portuário foi, exclusivamente, aquela decorrente dos investimentos privados. Isto se deu por intermédio dos arrendatários de áreas dos portos organizados[1], além, é claro, dos empreendimentos dos titulares das instalações portuárias de uso privado, cuja finalidade encontrava-se vinculada à movimentação predominante de cargas próprias (do próprio titular do Terminal Portuário).
Mudança significativa ocorreu exatamente quanto à forma de exploração dessa modalidade de instalação portuária que, pela novel legislação, passou a ser classificada como instalações portuárias autorizadas, exploradas fora da área do porto público, passando a subdividir-se em: i) terminal de suo privado; ii) estação de transbordo de carga; iii) instalação portuária pública de pequeno porte; e iv) instalação portuária de turismo.
Agora, não será mais admitida a expedição de outorga para a exploração de tais instalações na área do porto público, ressalvada a permanência do funcionamento daquelas autorizadas antes da edição da nova Lei dos Portos.
Em relação aos novos empreendimentos, admitidos somente fora da área do porto organizado, repita-se, estes dependerão da celebração de contrato de adesão, cujo prazo contratual será de vinte e cinco anos, admitidas sucessivas prorrogações, caso mantido o objeto e investimentos capazes de garantir a atualidade do serviço. Como regra geral, e para garantir o respeito aos princípios constitucionais, notadamente da publicidade e transparência do setor, todas as autorizações serão precedidas de chamada ou anúncio públicos, cujo objetivo será divulgar a existência de interesse – quer por parte do poder concedente, quer por qualquer privado interessado na outorga – com vistas à expansão da oferta do serviço regulado. Na existência de mais de um interessado, e não havendo viabilidade locacional, o legislador ordinário estabeleceu a necessidade de processo seletivo, para a escolha do contratado, ou contratados, conforme o caso.
Pois bem. A proposta do presente trabalho é travar uma discussão sobre a aplicação do direito intertemporal, porquanto o legislador ordinário também estabeleceu um regime de transição, e de respeito a determinadas situações jurídicas pré-estabelecidas, homenageando, desse modo, o princípio da segurança jurídica e da confiança, conforme primado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Assim, será examinada a repercussão do disposto no art. 58, da Lei 12.815/2013, e a forma de adaptação das outorgas expedidas antes da vigência da novel legislação, que assegurou a manutenção da atividade por eles desenvolvidas, na forma outorgada, desde que promovida a sua adaptação, no que couber e no prazo de um ano, sem necessidade de submissão ao processo de chamada ou anúncio públicos e, bem assim, de processo seletivo.
E é exatamente pela controvérsia da aplicação da lei no tempo, objeto de tanto debate, é que se vislumbrou necessária a presente manifestação.
I – Instalações portuárias autorizadas – regime jurídico incidente
É certo que o art. 21, da Constituição Federal/1988, confere competência à União Federal para explorar diretamente, ou indiretamente (mediante autorização, permissão ou concessão), as atividades ali elencadas; entre elas, a exploração dos “portos”, Inciso XII “f”, assim entendidas as instalações voltadas para a movimentação, ou movimentação e armazenagem de cargas oriundas ou destinadas ao transporte aquaviário.
Por sua vez, a Lei 12.815/2013, que dispõe sobre a exploração de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários, estabelece, in verbis:
Art. 1o Esta Lei regula a exploração pela União, direta ou indiretamente, dos portos e instalações portuárias e as atividades desempenhadas pelos operadores portuários.
§ 1o A exploração indireta do porto organizado e das instalações portuárias nele localizadas ocorrerá mediante concessão e arrendamento de bem público.
§ 2o A exploração indireta das instalações portuárias localizadas fora da área do porto organizado ocorrerá mediante autorização, nos termos desta Lei.
§ 3o As concessões, os arrendamentos e as autorizações de que trata esta Lei serão outorgados a pessoa jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.
Art. 2o Para os fins desta Lei, consideram-se:
I - porto organizado: bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária;
II - área do porto organizado: área delimitada por ato do Poder Executivo que compreende as instalações portuárias e a infraestrutura de proteção e de acesso ao porto organizado;
III - instalação portuária: instalação localizada dentro ou fora da área do porto organizado e utilizada em movimentação de passageiros, em movimentação ou armazenagem de mercadorias, destinadas ou provenientes de transporte aquaviário;
IV - terminal de uso privado: instalação portuária explorada mediante autorização e localizada fora da área do porto organizado;
(…)
Observados os limites constitucionais, a lei disciplinou a matéria, indicando um regime jurídico específico, de forma a vincular tanto o Poder Concedente quanto ao particular interessado na exploração do serviço, dependendo para tanto da investidura em título jurídico a materializar a relação jurídica estabelecida entre um e outro, e entre estes e o usuário do serviço. Ou seja, versando sobre os direitos e obrigações relacionadas com a exploração das instalações portuárias, e os limites de atuação de cada um dos intervenientes[2].
Vê-se, pois, a constituição de regime jurídico de sujeição especial, ao qual acaba por vincular o poder público e o particular, na medida em que um confere o direito de exploração; o outro, aceita os encargos decorrentes, mediante sua espontânea adesão, nos termos fixados em lei.
Ainda, no âmbito dos poderes políticos inerentes ao legislador ordinário, estabeleceu-se a inexistência de direito adquirido em face do regime jurídico a que se aludiu no item anterior, uma vez determinada a obrigação de plena adequação do particular às novas obrigações estabelecidas em lei, deferindo, para tanto, prazo razoável para a adoção de medidas concretas para a sua implementação. Bem por isso, ao tratar das outorgas estabelecidas nos arts. 13 e 14, da Lei 10.233, em especial das outorgas de autorização, o legislador consignou expressamente:
Art. 47. A empresa autorizada não terá direito adquirido à permanência das condições vigentes quando da outorga da autorização ou do início das atividades, devendo observar as novas condições impostas por lei e pela regulamentação, que lhe fixará prazo suficiente para adaptação.
Diversamente do que ocorre com os contratos (atos) celebrados sob o regime de direito privado, cujas relações jurídicas são regidas basicamente pela legislação vigente no momento de sua pactuação, nas autorizações há o compromisso das partes subjetivas de se submeterem aos efeitos da norma futura, que vier a regular o exercício da atividade autorizada. No caso, embora possam ser qualificados como atos jurídicos perfeitos, porquanto aperfeiçoados segundo as normas vigentes ao tempo de sua edição, não se encontram protegidos em relação aos atos normativos futuros que vier a incidir sobre o serviço, em face da existência de regime jurídico próprio, insuscetível de gerar situações jurídicas constituídas de modo definitivo.
No caso em tablado, em vez de um ato puramente negocial, o que se verifica no instituto do contrato de adesão, instrumento legal de investidura do particular no direito de exploração do serviço, é a imposição de condições e requisitos pelo titular do serviço para o seu trespasse ao particular. Este adere às condições impostas, caso queira titular o direito. Ocorre, portanto, uma transmutação do relacionamento entre as partes, com uma definindo o modo e o conteúdo da outorga. A relação é, desse modo, estatutária definida pelo próprio legislador, ficando a mercê do privado aderir, ou não, à conduta necessária para se inserir no setor.
Como se vê, a partir do estabelecimento de um regime jurídico de sujeição especial, ao qual o administrado adere por sua espontânea vontade, há a determinação do comportamento esperado das partes subjetivas da relação jurídica, sendo obrigatória a adequação dos termos da outorga, caso sobrevenham novas condições impostas de modo regular. Não há, desse modo, falar-se em direito adquirido, pelo menos não na forma tradicional. Ou seja, não direito adquirido pois as partes se vincularam a determinado feixe de normas consubstanciado em regime jurídico específico, pois ao aderir ao instituto, o interessado se vincula ao regramento como um todo, sendo insuscetível de arguir a manutenção das condições originais em face da sobreposição do interesse coletivo superveniente.
A propósito do tema, Manuel Gonçalves Ferreira Filho sustenta “que o respeito aos direitos adquiridos não veda a sua restrição, nem mesmo sua eliminação por lei posterior à sua aquisição. Apenas significa que essa restrição ou supressão só tem efeitos para o futuro. Do contrário o legislador seria praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas, atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos. Destarte, não há direito adquirido à permanência de um estatuto legal”[3].
É da essência do regime jurídico, por assim dizer, a imposição unilateral decorrente da supremacia do interesse em jogo, que se firma a partir do conjunto de normas jurídicas condicionantes, independentemente da vontade dos sujeitos da relação jurídica subjacente, que são alcançados por alterações normativas futuras, inclusive[4]. No caso em testilha, não se verificam situações passíveis de aperfeiçoamento sob a ótica do autorizatário, para fins de constituição de situação a se consolidar no âmbito de sua esfera privada, porquanto o serviço é desenvolvido no interesse da coletividade geral.
Ponto relevante na operatividade das normas do regime jurídico ocorrente é que a aplicação das normas independe da vontade dos sujeitos da relação (poder concedente e o privado). Ao subscrever o título de outorga, ou aceitá-lo de modo implícito ou explícito, o autorizatário adere ao conjunto de normas incidentes sobre o serviço, obrigando-se a adequar às futuras determinações que vier a recair sobre esse objeto, por força de ato normativo regular. Ou seja, os efeitos da aplicação das normas independem da vontade dos sujeitos da relação. Assim, ao surgir novo cenário jurídico, o feixe de normas decorrentes se projeta sobre a relação jurídica, independentemente de qualquer ato específico das partes que a ele (regime jurídico) encontram-se submetidos. Vale dizer, mesmo que não formalizado o ato de adaptação do instrumento de outorga à novel legislação, que altera o conteúdo das outorgas anteriormente conferidas, o seu titular fica submetido às novas regras a partir da vigência da lei nova, obrigando-se em todos os seus aspectos. O instrumento jurídico (contrato de adesão) consubstancia em mero veículo de materialização desses efeitos, concorrendo para a segurança jurídica requerida no caso.
Desse modo, a outorga de autorização conferida pelo poder público concedente resulta de expressão do poder deste sobre o serviço, ato este permeado pelo juízo de valor discricionário, sem se revestir, pois, das características da imutabilidade ou da inalterabilidade, e nem preencher quaisquer dos pressupostos para ser considerado “direito adquirido”; pode, sim, ser alterada, adaptada ou até mesmo cassada, segundo a conveniência do poder concedente, se para a dita atividade houver alteração por meio de lei ou regulamento que venha a traçar novos horizontes, com vistas à satisfação do interesse público perseguido pelo Ente Estatal.
Portanto, evidenciado quantum satis sobre a existência de regime jurídico próprio a reger a exploração das instalações portuárias na espécie, em face do qual não há que se falar em direito adquirido. Relativizado, portanto, o princípio da segurança jurídica, mediante de juízo de ponderação desses valores, com vistas a se garantir a supremacia do interesse público, quando da exploração do específico serviço.
Regime jurídico, então, como aquele consagrador da supremacia do interesse público[5], em face do interesse individual, pois assentado na prevalência desse último, com vistas à garantia das finalidades buscadas pelo Estado, do qual este não pode dispor, obrigando-lhe a promover as adaptações necessárias, com vistas à implementação das normas e sua plena operatividade. Pode ser compreendido como o conjunto de normas que recaem sobre determinada relação jurídica que, portanto, acaba por constituir em seu Estatuto Legal.
No entanto, como bem lembrado por Daniel Wunder Hachem “o princípio da constitucional da supremacia do interesse público não legitima práticas administrativas arbitrárias, uma vez que nas ocasiões em que ele autoriza a prevalência do interesse geral sobre outros interesses – individuais ou coletivos – igualmente respaldados pelo ordenamento jurídico, serão exigíveis, como pressupostos de validade do ato: (a) uma previsão normativa específica, atribuindo à Administração uma competência dessa natureza; (b) a fundamentação expressa do ato, demonstrando a correspondência entre as circunstâncias fáticas e o interesse público qualificado exigido pela norma; (c) a obediência a todos os desdobramentos do princípio da indisponibilidade dos interesses públicos, notadamente aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; (d) o fornecimento de uma compensação, por um bem jurídico equivalente ao interesse que houver sido afastado, nos casos em que a incidência do princípio acarretar um prejuízo anormal e especial”[6]
Na esteira desse princípio constitucional, e da sua indisponibilidade pelo agente público, restou consagrado na doutrina e na jurisprudência do entendimento acerca da inexistência de direito adquirido a regime jurídico, assim entendido como aquele direito cogente e delimitador da atuação do poder público, e principalmente do privado, em face da supremacia do interesse predominante defendido pelo Estado, notadamente em face de certas atividades de titularidade dos entes federados. Ou seja, com o fim de garantir a satisfação dos interesses coletivos, fundado na outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública, o regime jurídico busca por meio da limitação do exercício dos direitos individuais, ou da prescrição de determinadas condutas privadas, atingir as finalidades desejadas pelo Estado, enquanto sujeito garantidor da higidez do tecido social.
Inobstante, resulta clássico o entendimento acerca da materialização do princípio da segurança jurídica, que giza de forma especial nosso ordenamento jurídico. No entanto, dada a constituição de regime jurídico especial, tal garantia é relativizada, quando indispensável para a realização do interesse público, ajuste que se faz por meio do juízo de ponderação de valores. Esse mecanismo é, ordinariamente, determinado pelo próprio legislador ordinário, conforme determinado no caso em destaque, haja vista contido no indigitado art. 58, da Lei 12.815/2013, que ressalva a desnecessidade de sujeição das outorgas vigente ao tempo da edição da novel legislação de certas obrigações, exigíveis para os novos entrantes no mercado, v.g. quanto ao procedimento de anúncio ou chamamento público, desde que mantidas as características originais do objeto autorizado. Do contrário, havendo inovação significativa do objeto, ou das condições operacionais, parece evidente a sujeição integral ao novo regime, sob pena de desbordar os limites da legalidade. Em verdade, a modificação significativa do objeto, ou da forma de sua execução, significa não mera adequação, senão nova outorga, refugindo-se, desse modo, ao escopo previsto pelo indigitado artigo.
Dessarte, há que repetir-se acerca da inexistência de direito adquirido em face de regime jurídico, não significando, todavia, um salvo conduto para o desrespeito às situações jurídicas já consolidadas. Ou seja, o poder público somente poderá alterar as situações pré-constituídas se, e somente se, demonstrar a necessidade de fazê-lo, como meio adequado para atender ao interesse público. Logo, tratando-se de norma presumidamente constitucional (este, sim, legítimo limite de atuação do legislador ordinário na espécie), não se verifica possível advogar a existência de direito adquirido para, em seguida, negar validade a determinada conjunção de normas caracterizadora de regime jurídico.
Além da ponderação dos valores em conflito (mecanismo de interpretação das normas constitucionais), deve o Estado também primar pela implementação de regimes de transição, com vistas homenagear o princípio da confiança mútua e da boa-fé, que regulam a relação jurídica.
Ao tratar do princípio da segurança jurídica e da proteção à confiança, José dos Santos Carvalho Filho sustenta, in verbis:
Doutrina moderna, calcada inicialmente no direito alemão e depois adotada no direito comunitário europeu, advoga o entendimento de que a tutela da confiança legítima abrange, inclusive, o poder normativo da Administração, e não apenas os atos de natureza concreta por ela produzidos. Cuida-se de proteger expectativas dos indivíduos oriundas na crença de que disciplinas jurídico-administrativas são dotadas de certo grau de estabilidade. Semelhante tutela demanda dois requisitos: 1º) a ruptura inesperada da disciplina vigente; 2ª) a imprevisibilidade das modificações. Em tais hipóteses, cabe à Administração adotar algumas soluções para mitigar os efeitos da mudança: uma delas é a exclusão do administrado do novo regime jurídico; outra, o anúncio de medidas transitórias ou de um período de vacatio; outra, ainda, o direito do administrado a uma indenização compensatória pela quebra da confiança decorrente de alterações em atos normativos que acreditava sólidos e permanentes.”[7]
É disso, pois, que cuida presente manifestação, tendo em vista o regime de transição determinado para o caso vertente, haja vista a existência de regime jurídico especial que vincula o particular, na forma determina pelo legislador ordinário, sendo este previamente cientificado de tal particularidade, no momento em que recebe o título do poder concedente.
A jurisprudência é farta ao determinar a inexistência de direito adquirido em face de regime jurídico, com se pode ver a partir dos excertos seguintes:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PREVIDENCIÁRIO. MILITAR. MONTEPIO. PENSÃO POR MORTE. EXTINÇÃO. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA.
I - Com a extinção da pensão militar pela Emenda à Constituição Estadual nº 35/99, restou preservada a situação dos policiais militares inativos, quanto à manutenção e o pagamento dos benefícios, já que gozavam de tal situação à época de sua entrada em vigor.
II - Não há que se falar em direito adquirido quanto à preservação do regime jurídico previdenciário já revogado, uma vez que inexiste direito adquirido em face de regime jurídico.
III - Só há de se cogitar em direito adquirido à pensão por morte se os dependentes dos recorrentes já haviam implementando as condições para receber o benefício na vigência da Lei nº 10.972/84. É que, no que se refere à pensão por morte, a lei aplicável é aquela em vigor por ocasião do óbito do instituidor, que é o fato gerador do benefício.
(RMS 19425/CE, Ministro Felix Fischer. 5ª Turma. Data Julgamento: 25/09/2007; DJ 15/10/2007, pág. 295, STJ).
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. AUTÔNOMOS E ADMINISTRADORES.
Pagamento indevido. Crédito utilizável para extinção, por compensação, de débitos da mesma natureza, até o limite de 30%, quando constituídos após a edição da Lei 9.129/1995. (...) Se o crédito se constituiu após o advento do referido diploma legal, é fora de dúvida que a sua extinção, mediante compensação, ou por outro qualquer meio, há de processar-se pelo regime nele estabelecido e não pelo da lei anterior, posto aplicável, no caso, o princípio segundo o qual não há direito adquirido a regime jurídico.”
(RE 254.459, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 23-5-2000, Primeira Turma, DJ de 10-8-2000.) No mesmo sentido: RE 380.448-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 6-4-2010, Segunda Turma, DJE de 30-4-2010).
O FGTS, ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da lei e por ela ser disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico. Quanto à atualização dos saldos do FGTS relativos aos Planos Verão e Collor I (este no que diz respeito ao mês de abril de 1990), não há questão de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matéria exclusivamente no terreno legal infraconstitucional."
(RE 226.855, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 31-8-2000, Plenário, DJ de 13-10-2000.) No mesmo sentido: AR 1.768-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 19-12-2012, Plenário, DJE de 26-2-2013; AI 709.962-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-6-2009, Primeira Turma, DJE de 7-8-2009.
(...)
A propósito do assunto, apreciando a natureza de ato administrativo análogo ao da autorização para exploração das instalações portuárias autorizadas (art. 8º, da Lei 12.815), o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do ROMS nº 13.498/RJ, fez registrar, no voto condutor, a seguinte passagem:
“A questão cinge-se ao direito de explorar serviço público de transporte de passageiros em veículos de aluguel a taxímetro, que foi, a princípio, instituído pelo Decreto nº 18.693, de 21 de junho de 2000 e, depois, pela Lei nº 3.123, de 14 de novembro de 2000. (...).
Com efeito, ao analisar o ato administrativo, deve-se buscar sua natureza para identificá-lo; “in casu”, o que se chamou de Permissão consubstancia, salvo melhor análise, Licença, vez que esta, sem necessitar de licitação, é ato administrativo vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular – transporte de passageiros em veículos de aluguel a taxímetro – resultando em um direito subjetivo, porém, relativo, por ser revogável, se houver interesse público superveniente; sem essência, portanto, de direito adquirido” (negritou-se).
Tratando-se de regime jurídico cogente, que se impõe erga omnes, não há que se falar de sua aplicação em parcelas, ou a permanência de parâmetros preditos pelo regime revogado (substituído), salvo se, e somente se, tais preceitos forem inteiramente compatíveis com a novel legislação, cuja aplicação seja pertinente, enquanto não editados os supervenientes atos de regulamentação (em decorrência do novo marco legal).
Desse modo, deve o poder concedente zelar pela célere atualização dos instrumentos de outorgas, com vistas a gerar segurança jurídica para todos os intervenientes da relação jurídica, e garantia dos interesses dos usuários. Logo, ao se tornar necessário a expedição de ato para atender a qualquer espécie de modificação do objeto outorgado, seja por pedido do autorizatário, seja por iniciativa do próprio poder público, não haveria o menor sentido, ou mesmo juridicidade na prática de ato administrativo com observância de parâmetros ou critérios fixados pelo regime revogado. Leia-se, parâmetros e critérios incompatíveis com o novo marco regulatório, como se verifica com a questão da exigência de estudo de viabilidade técnica e econômica (EVTE), exigido na espécie para a demonstração da justificação técnica e econômica da constituição do terminal em relação às cargas titularizadas pelo autorizado (predominância das cargas próprias)[8].
Evidente que não há que se falar mais em estudo para esse fim, pois a titularidade das cargas tornou-se elemento desimportante na autorização para a exploração das instalações de que trata o art. 8º, da Lei 12.815, repita-se à exaustão. A propósito do assunto, toma-se por empréstimo a argumentação expendida nas razões de veto à dispositivos da referida lei, quando consignou-se “O conceito de terminal indústria incluído no projeto de lei retoma a distinção entre carga própria e de terceiros, cuja eliminação era uma das principais finalidades do novo marco legal para o setor portuário. A retomada de restrições ao tipo de carga a ser movimentada em cada terminal portuário constitui um empecilho à ampla abertura do setor e à elevação da concorrência, objetivos primordiais da Medida Provisória”.
Nesse sentido, pois, há se firmar o entendimento sobre a manutenção dos dispositivos que integram a Resolução 1.660/Antaq (na redação conferida pela Resolução 1.695/Antaq), os quais somente prevalecem se se mostrarem compatíveis com a Lei 12.815 (recepcionados). Do contrário, não há que se falar na aplicação de normas da referida resolução, quando se encontrarem em descompasso com o novo regime jurídico.
Ou seja, não se vislumbra legítimo a prática de qualquer ato administrativo que altere a relação jurídica subjacente a determinado ato de outorga de autorização na espécie ora em tablado, sem que tal ato seja permeado integralmente pelo regime jurídico vigente ao tempo de sua prática. Vale dizer, se o ato de alteração da outorga for praticado na vigência da Lei 12.815, o mesmo deve encontrar-se em toda a sua extensão e conteúdo compatível com o novo regime jurídico, sendo tal atuação poder-dever do agente público.
A propósito do tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona “Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração tem o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão. Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício de direitos individuais em conflito com o bem-estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes decorrentes da hierarquia; não pode fazer liberalidade com o dinheiro público. Cada vez que ela se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado.”[9]
II - Autorização para exploração de instalações portuárias privadas: da obrigatoriedade de adequação ao novo regime jurídico[10].
Conforme disposto no art. 58, da Lei nº 12.815/2013, os termos de autorização e os contratos de adesão em vigor deverão ser adaptados ao disposto nesta Lei, em especial ao previsto nos §§ 1º a 4º, do art. 8º, independentemente de chamada pública ou processo seletivo.
A propósito da adaptação das outorgas, reporte-se ao quanto exposto no tópico anterior, quando se demonstrou a inexistência de direito adquirido a um estatuto jurídico, razão pela qual se explica o conteúdo do disposto no referido art. 58, que submete as relações jurídicas, subjacentes aos termos de autorização anteriormente expedidos, à novel disciplina. Em justa medida, porém, ressalva determinados encargos que poderia representar um sacrifício desproporcional, notadamente quando à necessidade de sujeição ao procedimento de chamada pública e seleção, para titular o direito de exploração.
Acompanhando a doutrina de Carlos Maximiliano, o Ministro Gilmar Mendes acentua “As duas principais teorias sobre aplicação da lei no tempo – a teoria do direito adquirido e a teoria do fato realizado, também chamada do fato passado – rechaçam, de forma enfática, a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico”[11].
E é exatamente pela sua vinculação espontânea ao referido regime jurídico, que o autorizatário se vincula inclusive às futuras alterações normativas, devendo a administração pública garantir tempo suficiente para a adequação.
Portanto, induvidoso que o legislador ordinário, de forma expressa, estabeleceu o lapso temporal de 1 (um) ano, para as providências da Administração Pública, no sentido de dotar as outorgas em vigor dos mesmos aspectos formais e materiais estabelecidos pela novel legislação. Tal circunstância não significa, no entanto, que o prazo corre em benefício exclusivo do privado, conforme será demonstrado. Serve propriamente para as providências do próprio poder concedente, já que conforme previsto não há que se falar em direito adquirido ao status quo ante.
Por sua vez, o art. 8º, e §§, estabelece o modus operandi do Poder Concedente e da Agência Reguladora, no âmbito de suas competências, para legitimar a exploração da atividade, segundo os ditames da novel legislação. Estabelece a obrigatoriedade de expedição do instrumento (contrato de adesão); seu conteúdo (cláusulas essenciais); das garantias de execução do contrato; e dos parâmetros para a prestação do serviço.
Dessarte, ante a repisada inexistência de direito adquirido na manutenção do status quo ante (art. 47, da Lei 10.233/2001), há que se perquirir: havendo qualquer pedido de alteração da outorga original, no curso da novel legislação, é possível a mera expedição de termo aditivo, sem observância do conteúdo disposto pela Lei 12.815? e no caso de pedido de ampliação das instalações, como fica o poder-dever de adequação ao novo marco legal?
Evidente que não se vislumbra possível qualquer ato no âmbito de outorgas passadas, sem que seja observado o conteúdo da nova lei. Não há sentido lógico ou razoabilidade no processamento divers. Considerando que o ato administrativo em relevo (alteração do objeto autorizado) será praticado já sob o pálio da novel legislação, resta exigível da Administração Pública (rectius: poder concedente) que atenda ao pedido da interessada, desde que observados todos os requisitos exigíveis na norma ora em vigor (Lei 12.815), em especial para editar adequado instrumento jurídico, em substituição ao anterior, de modo a incluir todas as cláusulas elencadas pelo legislador ordinário como essenciais à regular constituição do instrumento de outorga. Não há falar-se em mera alteração do conteúdo demandado pelo particular. E, desse modo, não se verifica qualquer impedimento para que a adaptação se dê mediante a edição de termo aditivo à avença original, desde que observado o conteúdo determinado pela vigente Lei 12.815.
Ou seja, quer para fins de adequação da outorga, quer para qualquer outra modificação da outorga original, o termo aditivo mostra-se inteiramente adequado ao que se pretende, sendo instrumento hígido para a produção dos efeitos jurídicos esperados. Tal entendimento, contudo, encontra limites. Dir-se-á as adequações de outorgas conferidas por Termo de Autorização. Nesse caso, tendo em vista a diversidade de natureza jurídica dos institutos, não se pode falar em termo aditivo (ato bilateral por exigência da nova lei) para modificar o Termo de Autorização (ato unilateral[12]). Logo, para tal situação há de se recomendar a adequação por via da celebração de “contrato de adesão”, observada a forma e conteúdo estabelecidos pela Lei 12.815. Nesse caso, recomenda-se que, no corpo do contrato, seja especificada tal circunstância, qual seja de tratar de ato de adequação da anterior outorga, na forma da lei.
Prudente é, pois, recomendar que, em face de qualquer alteração do objeto anteriormente outorgado, seja promovida a adaptação do respectivo instrumento, de forma simultânea, com vistas ao atendimento da finalidade teológica da norma. Assim restaria, pois, absurda qualquer proposição de manutenção parcial dos efeitos do regime jurídico revogado, ao argumento da existência de dois regimes convivendo de forma concomitante: (i) um para os terminais já adaptados, perante os quais não se mostraria exigível a preponderância de carga própria (sic); (ii) outro, para os terminais não adaptados, que ficariam vinculados ao regime jurídico revogado, inclusive com a exigência retromencionada (?).
Como bem alegado nos vetos do Poder Executivo, não há falar-se, v.g., preponderância de carga própria em face das cargas de terceiros, movimentadas no terminal de uso privado. De igual modo, não há que se exigir qualquer estudo tendente a demonstrar a viabilidade do terminal, justificando-o com base no quantitativo das cargas do próprio beneficiário da outorga. Nesse particular, há de se entender que os dispositivos da Resolução nº 1660/Antaq restaram revogados, pois incompatíveis com a alteração promovida no regime jurídico pela nova Lei de Portos.
A propósito do assunto, e em referência ao contido no art. 9º, da Portaria nº 110/2013, expedida pela Secretaria Especial de Portos da Presidência da República, não se vislumbram óbices jurídicos para que se aplique a referida Resolução 1660/Antaq, desde que, por lógico, compatível com a novel legislação. Ou seja, toda a regulamentação anterior, que conflitar com a Lei 12.815/2013, entende-se por revogada.
Então, independentemente da aludida adequação, não se poderá admitir a coexistência de dois regimes para a exploração de “instalações autorizadas” - rol taxativo do art. 8º, da Lei 12.815 –, mas de um único, estabelecido por esta Lei, o qual poderá ser complementado pelas disposições contidas na Resolução 1.660, se se mostrarem compatíveis com a novel legislação. Do contrário, encontrar-se-ão revogadas, nos termos do art. 2º, da Lei de Introdução as normas do Direito Brasileiro[13], na redação conferida pela Lei 12.376/2010. Isto porque, conforme exaustivamente demonstrado no tópico anterior, o conjunto de normas se projeta sobre a relação jurídica, independentemente da vontade dos sujeitos que a integra, e tal se dá de imediato, para constituir um novo Estatuto.
Logo, no particular exemplo a que se aludiu alhures, tendo em vista que a Lei 12.815 veio a permitir a movimentação de cargas próprias e de terceiros, sem qualquer correlação, ou natureza, entre tais espécies, revela-se inapropriado falar em estudo técnico e econômico, para demonstração da viabilidade e justificação da construção (EVTE, para fins de ampliação, modificação do tipo de carga etc) a partir da identificação da titularidade das cargas a serem movimentadas no Terminal.
Como se vê, a distinção entre carga própria e de terceiros tornou-se desimportante no novo marco legal, sendo indevida qualquer exigência de apresentação de estudo técnico e/ou econômico, com vistas a determinar o montante de uma e de outra, na composição das cargas movimentadas nas instalações autorizadas (art. 8º, da Lei 12.815).
Nesse sentido, cabe asseverar que o regime jurídico incidente sobre terminais adaptados, ou não, é o mesmo, consubstanciado em Estatuto Jurídico imposto unilateralmente pelo legislador ordinário, e que, por isso mesmo, vincula as partes que espontaneamente a ele se sujeitara no momento da contratação.
Basta essa assertiva para mostrar quão equivocada pode representar uma aplicação parcial do novel regime jurídico, criando um tertium genus, capaz de per se gerar uma situação de perplexidade e de insegurança jurídica para o setor regulado, além de atentar contra regras e princípios de interpretação que impera no nosso regime jurídico pátrio.
Logo, embora a nova lei confira o prazo de até 1 (um) ano para a adaptação de que trata a presente análise, não haveria o menor sentido a prática de ato administrativo, já na vigência do Estatuto, em desconformidade com as suas próprias definições e procedimentos regularmente estabelecidos (presunção de constitucionalidade da norma). Isto porque é técnica jurídica a aplicação da norma de modo sistemático, formando um ordenamento único e indivisível, composto por regras e princípios. Assim, não seria possível a aplicação da Lei 12.815/2013 em “tiras”, para aproveitar ao particular somente aquilo que lhe beneficia. De igual modo, não seria possível, a partir da junção do regime anterior com o atual criar um terceiro, segundo as conveniências momentâneas (casuísticas).
A propósito, Carlos Maximiliano assegura que o Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos. E conclui verbis:
Já se não admitia em Roma que o juiz decidisse tendo em mira apenas uma parte da lei; cumpria examinar a norma em conjunto: Incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua particula ejus proposita, judicare, vel respondere – “é contra Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma”[14]
Por conseguinte, de observar que a adaptação, embora fosse legítimo fazê-la no prazo de até um ano (limite máximo), a necessidade de alteração da outorga existente determina ao poder público (poder-dever) a antecipação da medida, para o fim de não atentar contra o princípio da eficiência ou gerar grave insegurança na regulação do setor. A norma somente pode ser interpretada e ganhar efetividade quando analisada no conjunto de normas que dizem respeito à determinada matéria, e desde que contemporâneas na sua vigência, mormente quando se trata de Estatuto Jurídico.
À toda evidência, do conjunto normativo referenciado, pode-se entrever a existência de dois prazos distintos. Um, determinado pelo art. 47, da Lei 10.233/2001, que beneficia o administrado, no sentido de lhe conferir prazo suficiente para a adaptação; vale dizer, para as providências a seu cargo tendentes ao cumprimento das novas obrigações e celebração do novo instrumento, se for o caso; e não necessariamente o termo final de um ano a que se refere o art. 58, da Lei 12.815.
Outro, fixado pelo indigitado art. 58, que corre em benefício da administração pública, dentro do seu dever de programar e implementar a adaptação, por meio de atos coordenados, já que seria impossível a atuação de modo instantâneo à edição do novo regime. É certo que, em homenagem ao princípio da razoabilidade, o segundo condiciona, limita, conforma o primeiro. Porém, não autoriza a prática de ato em desconformidade com o novo regime, por óbvio.
Por isso, há de se manter a recomendação para que a adaptação referida pelo Art. 58, da Lei 12.815/2013 se dê de forma simultânea com a prática de qualquer ato de modificação da outorga anterior, salvo nos casos em que tal adequação não se mostrar possível de imediato, mediante a demonstração de justa causa impeditiva, e somente no aspecto por esta delimitado; não quanto a outros aspectos ditados pelo Estatuto.
Logo, é poder-dever da Administração promover a adaptação de modo simultâneo a qualquer alteração que, por necessidade do interesse público ou do particular, tiver que ser alterado o objeto da outorga, sendo tal atuação relevante mecanismo de controle e atuação eficiente do poder público.
Nesse sentido, é razoável entender que, nas alterações da outorga de autorização tratadas pelo disposto no art. 35, do Decreto 8.033/2013, só não se exigirá a expedição de novo instrumento (a juízo discricionário do poder concedente), se se encontrarem devidamente adaptados, na forma do art. 58, da Lei 12.815/2013. Ou seja, se o procedimento já tiver sido observado pelo poder público no caso concreto. Ou, ainda, para interpretar restritivamente a expressão “Não dependerão da celebração de novo contrato de adesão” para os casos em que a adaptação demandar mero “termo aditivo”, para adequar contrato de adesão já regularmente expedido pelo Poder Concedente.
Daí porque o Art. 9º, I, da Portaria SEP/PR Nº 110/2013, deve ser interpretada “cum grano salis” de modo a preservar a unicidade do regime, devendo ser entendida nos seguintes termos: os pedidos apresentados à ANTAQ até a data de publicação desta Portaria...poderão ser deferidos, desde que, concomitantemente, atendam as exigências: “I – da Resolução nº 1660, de 08 de abril de 2010, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários -ANTAQ, e sejam absolutamente compatíveis com a disciplina da Lei 12.815”
E, nesse sentido, a exigência de EVTE não se mostra compatível, razão pela qual não se deve nem exigir tal estudo, e, se já apresentado, desnecessária é a sua análise, pois, no novo regime, não há falar em preponderância de carga própria em relação a “carga de terceiros”, para a habilitação do interessado na exploração da atividade.
Na verdade, a exigência da apresentação de EVTE, no caso dos terminais autorizados, tornou-se desnecessário para o fim de determinar a viabilidade do terminal sob a ótica da predominância da “carga própria”, pois incompatível com o novo regime. Aliás, conforme se demonstrou alhures, nas razões dos vetos à nova lei, restou demonstrada que a referência carga própria e de terceiros não permeia mais o setor regulado, tornando o indigitado EVTE impróprio para as finalidades ditadas pela Resolução 1.660/ANTAQ.
III - Conclusão
Rompendo com a tradição do direito pátrio, a Lei 12.815 conferiu nova roupagem ao instituto da autorização, de que trata o art. 12, XII “f”, da CF/88, que passou a constituir-se em verdadeira outorga de exploração do serviço, com vistas ao atendimento da coletividade geral. Diversamente do regime revogado (Lei 8.630/93), o instituto não se presta exclusivamente para atendimento do interesse do próprio autorizatário – movimentação preponderante de carga própria. Antes, destina-se ao atendimento dos usuários em geral, podendo o autorizatário contratar livremente com o mercado, desde que observados os parâmetros fixados pelo legislador ordinário.
De todo que foi exposto acima, cabe observar que, em vez de um ato puramente negocial, o que se verifica no instituto do contrato de adesão, instrumento legal de investidura do particular no direito de exploração de instalações privadas de uso privado, é a imposição de condições e requisitos pela União, poder concedente, ao terceiro interessado. Este adere às condições impostas, caso queira titular o direito de exploração do serviço. Ocorre, portanto, uma transmutação do relacionamento entre as partes, com uma definindo o modo e o conteúdo da outorga. A relação jurídica decorrente é, portanto, estatutária, e definida unilateralmente, ficando a mercê do privado aderir, ou não, ao regime jurídico de regência do setor.
A outorga de autorização conferida pelo poder público concedente resulta de expressão do poder deste sobre o serviço, ato este permeado pelo juízo de valor discricionário, sem se revestir, pois, das características da imutabilidade ou da inalterabilidade e nem preencher quaisquer dos pressupostos para ser considerado “direito adquirido”.
Isto porque, conforme já consagrado no Supremo Tribunal Federal, não há falar-se em direito adquirido a regime jurídico, assim entendido como aquele consagrador da supremacia do interesse público, em face do interesse individual, pois assentado na prevalência desse último, com vistas à garantia das finalidades buscadas pelo Estado, do qual este não pode dispor, obrigando-lhe a promover as adaptações necessárias.
Logo, as adaptações determinadas pelo art. 58, da Lei 12.815/2013, são fruto da natureza do serviço, enquanto jungido regime jurídico próprio (Estatuto), que vincula o agente público ao poder-dever de promover as alterações necessárias para a garantia do interesse social na espécie, o que deve ocorrer de imediato, se anteposta justa razão pela necessidade de modificação qualquer do ato de autorização editado antes da novel legislação.
[1] Utilizado como sinônimo de porto público, constituído por um condomínio de bens e instalações de propriedade da União. A estruturação do porto como um conjunto coordenado, sob uma direção superior delegada, destinado ao atendimento das necessidades variadas do mercado, só veio com a disciplina do Decreto nº 4.279, de 2 de junho de 1921 , Estatuto esse que lhe atribui o nome e conceito dessa estrutura.
[2] Art. 3o A exploração dos portos organizados e instalações portuárias, com o objetivo de aumentar a competitividade e o desenvolvimento do País, deve seguir as seguintes diretrizes:
I - expansão, modernização e otimização da infraestrutura e da superestrutura que integram os portos organizados e instalações portuárias;
II - garantia da modicidade e da publicidade das tarifas e preços praticados no setor, da qualidade da atividade prestada e da efetividade dos direitos dos usuários;
III - estímulo à modernização e ao aprimoramento da gestão dos portos organizados e instalações portuárias, à valorização e à qualificação da mão de obra portuária e à eficiência das atividades prestadas;
IV - promoção da segurança da navegação na entrada e na saída das embarcações dos portos; e
V - estímulo à concorrência, incentivando a participação do setor privado e assegurando o amplo acesso aos portos organizados, instalações e atividades portuárias. (Lei 12.815)
[3] Curso de Direito Constitucional. 34ª ed,. São Paulo: SARAIVA, 2008, pág. 306.
[4] Aqui, não há que se confundir com situações jurídicas individuais, que integraram o patrimônio do administrado, pois suscetíveis de aperfeiçoamento segundo direito vigente em dado momento histórico. A propósito do regime jurídico do servidor público, e tratando-se da inexistência de direito adquirido em face a regime jurídico, Luís Roberto Barroso aduz “Isso não afasta, contudo, a possibilidade de aquisição de direitos, mesmo na constância de relações disciplinadas por um regime jurídico, bastando para tanto que os fatos aquisitivos legalmente previstos se realizem na sua integridade. A prerrogativa de alterar unilateralmente as condições sob as quais se desenvolve o vínculo não poderia ter o condão de afastar a proteção constitucional conferida às situações já aperfeiçoadas segundo as exigências do direito então vigente”. In ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Cood.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2ª ed., Belo Horizonte: FORUM, 2009, págs. 151/153.
[5] Para Celso Antônio Bandeira de Mello “Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados. In Curso de Direito Administrativo. 17 ed., São Paulo: SARAIVA, 2004, págs. 60.
[6] Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: FORUM, 2011, págs. 42/43.
[7] MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO. 23ª ed., Rio de Janeiro: LUMEN JURIS, 2010, pág. 40/41.
[8] Até a edição da Lei 12.815, a interpretação do art. 4º, §2º II “b”, da Lei 8.630/93, era pela admissão da movimentação de carga de terceiros somente em caráter residual, complementar, dada a tradição do conteúdo da outorga de autorização, caracterizada como ato unilateral conferido ao interessado para seu próprio benefício.
[9] Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: ATLAS, 2002, pág. 70.
[10] Citando João Batista Machado, Gilmar Mendes pontua “É possível que a aplicação da lie no tempo continue a ser um dos temas mais controvertidos do Direito hodierno. Não raro, a aplicação das novas leis às relações já estabelecidas suscita infindáveis polêmicas. De um lado, a ideia central de segurança jurídica, uma das expressões máximas do Estado de Direito; de outro, a possibilidade e necessidade de mudança. Constitui grande desafio tentar conciliar essas duas pretensões, em aparente antagonismo”. In Curso de Direito Constitucional. 5ª ed., São Paulo: SARAIVA, 2010, pág. 554.
[11] Idem, págs. 559.
[12] Corrigindo atecnia da Lei 8.630/93, a Lei 10.233 passou a exigir “termo de autorização”, dada a natureza ontológica do ato de autorização. A partir da edição desta Lei, o contrato de adesão deixou de ser o instrumento legal de delegação, sendo, no entanto, ressuscitado por ocasião da edição da Lei 12.815.
[13] Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (Decreto-Lei 4.657/1942).
[14] Hermenêutica e aplicação do Direito. 18ª ed., Rio de Janeiro: FORENSE, 2000, pág. 130 e 131.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). Com pós-graduação em Direito Processual Civil pela UNISUL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Carlos Afonso Rodrigues. Da adaptação das outorgas de autorização das instalações portuárias: regime de transição fixado pela Lei 12.815/2013 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37086/da-adaptacao-das-outorgas-de-autorizacao-das-instalacoes-portuarias-regime-de-transicao-fixado-pela-lei-12-815-2013. Acesso em: 08 dez 2024.
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