“Inter arma silent leges”. Em 1787 os EUA aprovaram sua Constituição, vigente até hoje (com 27 Emendas). Thomas Jefferson, um dos pais das 10 primeiras emendas, conhecidas como Bill of Rights (que passaram a vigorar a partir de 1791), pugnava por uma declaração de direitos “que é algo que o povo merece para poder enfrentar a todos os governos da terra”. Esse vaticínio não se concretizou, porque, paralelamente ao Estado de Direito contemplado na Constiuição, em vários momentos foram aparecendo múltiplos Estados de Exceção, que suspendem os direitos e garantias fundamentais do cidadão. A díade Estado de Direito e Estado de Exceção quase nunca desaparece (veja Agamben, 2005). Desde os ataques de setembro de 2001, para citar somente os momentos históricos mais recentes, os Estados Unidos vivem (também e novamente) sob o império do Estado de Exceção, implantado pela USA Patriot Act, acrônimo de Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism. A propalada democracia americana (Alexis de Tocqueville) convive há tempos com estados policialescos, onde as armas silenciam as leis (“inter arma silent leges”).
A luta contra o terrorismo passou a ser a agenda número um dos EUA. Duas guerras deste século XXI (comandadas por Bush) residem nessa motivação: Afeganistão (2001) e Iraque (2003). O maior questionamento do ponto de vista jurídico descansa nas violações ao Bill of Rights, sendo disso um exemplo emblemático a prisão de Guantánamo. Quando as armas falam mais alto, as leis silenciam. Os direitos são restringidos e as garantias suspensas.
No contexto da guerra contra o terror, praticamente tudo passou a ser permitdo (veja Vervaele, 2007, p. 2 e ss.): a privacidade foi relativizada, visto que os EUA invadem as comunicações do mundo inteiro (incluindo o Brasil, como se sabe), valendo-se do programa Carnivore (por exemplo); buscas e apreensões prescindem de autorização judicial, prisões são feitas com base em provas secretas, o Departamento de Justiça não respeita as ordens judiciais, o governo congelou os bens de várias ONGs, os prisioneiros de Guantánamo foram julgados por tribunais de exceção militares (muitos nem sequer julgados foram), o FBI foi reforçado (ele gasta 36% do orçamento contro o terror), criou-se o superministério da segurança nacional (DHS), o serviço de inteligência foi reformulado, uma legislação de emergência foi aprovada (a USA Patriot Act), o princípio da legalidade foi flexibilizado, o Executivo ignorou em vários momentos os demais poderes (Legislativo e Judiciário) etc.
O efeito deslizante tornou-se inevitável: incontáveis países de várias partes do mundo (sobretudo Europa, destacando-se Reino Unido e Espanha, depois dos ataques de 2005 e 2004, respectivamente) incorporaram no seu ordenamento jurídico medidas de exceção semelhantes às norte-americanas (Vervaele, 2007, p. 6).
A mass media, diante de tantos poderes reunidos nas mãos do Estado policialesco, começou a fazer cobranças e a criticar o direito penal preventivo, as condenações com base em provas secretas, os processos sigilosos, as prisões provisórias sem limites temporais, a tortura, os interrogatórios crueis etc. A guerra contra o Iraque, por seu turno, foi totalmente questionada: não haveria motivação concreta para isso (as armas químicas nunca foram mostradas de forma inequívoca, se é que existiam). Os críticos mais ácidos falavam em morte do estado de direito e da democracia, diante da implantação de um estado policialesco de iure et de facto, que deprecia diariamente os direitos civis.
Alguns juízes federais e até mesmo a Corte Suprema chegaram a levantar o sinal vermelho para as arbitrariedades – veja o caso do juiz da Corte Suprema Stephen Breyer (Vervaele, 2007, p. 6 e 99), mas ainda preponderam, nos EUA, o sinal verde (do Judiciário e do Legislativo) ao estado policialesco, especialmente o dado pelo juiz da Corte Suprema William Rehnquist, em 1998: “os direitos civis podem ser limitados em período de emergência”. O Legislativo delegou uma série de poderes ao Executivo, aprovando grande quantidade de leis em branco.
A emergência (perene), como se vê, sempre justifica as arbitrariedades. É algo histórico e ancestral (o Império Romano massacrou os cristãos sob a égide de uma emergência incendiária). Assim também ocorreu com a Constituição de Weimar, na Alemanha, nos 20/30 do século XX, prelúdio do nazismo de Hitler. E nunca faltaram doutrinadores do terror, tal como Carl Schmit (bem estudado por Agamben, 2005), que elaboram os argumentos justificativos da quebra do estado de direito. O papel aceita tudo. Nem tampouco faltam caudilhos (no mundo inteiro, antigo ou atual) para levar adiante o estado policialesco. Bush dizia: “abater as leis para se chegar ao diabo”. Implantou-se com todas as letras o direito penal do inimigo (inimigos combatentes e inimigos estrangeiros), baseado na periculosidade e na ilegalidade. Inimigo sem direitos. Guerra preventiva e investigação preventiva sem limites. O direito penal do fato cede espaço para a culpabilidade (periculosidade) pelo estilo de vida (Lebensführungsschuld), conforme doutrinava Mezger (citado por Vervaele, 2007, p. 102).
Em nome da segurança nacional afastam-se as garantias, os direitos civis e a própria validade da Constituição. Até mesmo a assistência jurídica foi negada a alguns presos. Na grande maioria dos processos reina o segredo (são os chamados processos FISA), fundado na lógica da Inquisição, que obscurece a luz da Justiça e apaga o brilho do Iluminismo. Assim funcionam os estados de exceção, ou seja, os estados policialescos e autoritários, fundados em legislações de emergências, com a ampliação dos poderes da polícia e das investigações. Imagens de Abu Ghraib e de Guantánamo, aliadas às dos vôos secretos da CIA e dos centros de detenção cloandestinos, especializados na prática da tortura, evidenciam exuberantemente a intensidade com que o estado policialesco norte-americano “abatem as leis, para pegar o diabo” (real ou imaginado, porque é preciso sempre encontrar um inimigo). Iluminismo, Revolução francesa, Fundadores da Constituição dos EUA: tudo perdeu validade, porque “Inter arma silent leges”. Os juízes são o semáforo do poder punitivo (Zaffaroni). Enquanto não chegam as luzes vermelhas deles, os abusos e as arbitrariedades prosseguem, porque os humanos somos maus e arbitrários (veja Philip Zimbardo, O efeito Lúcifer), enquanto e até o limite que nos deixam ser.
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