Ufanisteu: O brasileiro, fisicamente, como dizia o conde Afonso Celso (Por que me ufano do meu país?), “não é um degenerado; (...) quanto ao seu caráter, ainda os piores detratores não lhe podem negar afeição à ordem, à paz, ao melhoramento”. Eu acredito piamente nos ensinamentos e ufanismos deste livro; vou invocá-los em todas as partes dos nossos diálogos e procurar difundi-los para o mundo todo!
Barbarum: Sempre fiquei impressionado, Ufanisteu, com o quanto você vangloria o seu povo e o seu país, atribuindo-lhes méritos fora do comum, excepcionais. Mas seria bom saber que nem sempre a imagem que fazemos de alguém ou de um território corresponde parcial ou totalmente à realidade. O ser humano erra muito nas suas valorações e convicções.
Agathon: Enaltecer as belezas de um país ou o caráter reto de um povo é algo admirável, mas sempre existe o risco dos exageros, que podem ser interpretados como pura vaidade ou jactância. Quando a realidade não se corresponde à imagem criada, esta pode se transformar numa piada (numa basófia).
Ufanisteu: Quando falo muito bem do meu povo e do meu país, Agathon, não tenho outro propósito que o de dar exemplos e conselhos que possam ser úteis às famílias, à nação e à espécie humana, tornando-os fortes, bons, melhores e felizes.
Barbarum: Lamento informar, Ufanisteu, que o brasileiro, tanto quanto os demais habitantes do planeta, em maior ou menor medida, não é tão pacífico quanto à imagem que lhe fora forjada. Caso você duvide disso, convido-o a ver a atuação dos “black blocs” nas manifestações dos últimos meses.
Agathon: O que se descobriu sobre a violência aberrante deles?
Barbarum: Dois pesquisadores (Esther Solano e Rafael Alcadipani, Folha de S. Paulo) ouviram todos os envolvidos (manifestantes, policiais, “black blocs”) e chegaram à conclusão de que eles querem chamar a atenção sobre a ausência do Estado, que arrecada como país de primeiro mundo e presta serviços públicos de péssima qualidade. “Protesto pacífico não adianta nada, só com violência é que o governo enxerga nossa revolta” (diz um “black bloc”).
Ufanisteu: Passageiros episódios de violência não podem nos impedir de levantar a cabeça transbordante de nobre ufania!
Barbarum: A razão da quebradeira geral seria o descaso do poder público. Os integrantes do grupo dizem que não são vândalos, que vândalo é o Estado, que deixa as pessoas morrerem nas filas do SUS, que deixa as crianças na ignorância, não oferecendo ensino de qualidade, que transformou o transporte público em lata de sardinha etc.
Agathon: A você, Ufanisteu, digo (com base em Baltasar Gracián, A arte da sabedoria) que não é recomendável se vangloriar ou falar de si mesmo, nem para elogiar-se, o que é vaidade, nem para criticar-se, o que é humildade ultrajante. Qualquer um dos dois é enfadonho para quem ouve.
Barbarum: E o que você, Agathon, diz sobre a violência dos “black blocs”?
Agathon: Que, invertendo a clássica lição de Maquiavel, os fins, por mais nobres que sejam, não justificam o emprego de meios violentos, especialmente quando colocam em perigo as pessoas. Violência só gera violência. A polícia militar vai reagir, porque foi humilhada (como instituição). É mais que previsível uma espiral intensa de violência. O pior é que esse método, para além de destrutivo, é ineficaz, porque não abre nenhuma negociação para avanços nos direitos individuais ou sociais. Outra coisa: a violência está afastando das ruas os manifestantes do bem, que estão deixando de apoiar os movimentos (que sem força popular não conseguem progressos). Se o enfraquecimento dos movimentos sociais pode trazer benefícios para setores econômicos conservadores e políticos, há quem esteja torcendo pelo incremento da violência. Quanto pior, melhor. Mais ainda: depois da reynaldização da PM (agressões físicas contra PMs, como a ocorrida contra o coronel Reynaldo Rossi), é factível que o revide seja a “amarildização” também das classes médias “black blocs” (ou seja: a eliminação física de alguns deles). Essa é a linguagem (o referencial semântico) que a massa brasileira assimilou e entende (depois de anos e anos de propaganda midiática). O terreno se tornou favorável, após as declarações de guerra (civil) de integrantes da PM e do governador, para tratar os “black blocs” como os inimigos pobres segregados e balcanizados das periferias, cujo destino, nos confrontos com a polícia, é a mutilação decorrente da tortura, o hospital (se sobreviver) ou o cemitério. A situação pode ficar fora do controle estatal, com repercussões internacionais e econômicas incalculáveis.
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