Nos séculos XV, XVI e XVII, na Europa, era comum a denúncia de que a vizinha era bruxa, por ter feito pacto com o demônio. Por força dessa crença mais de 100 mulheres foram trucidadas pela Inquisição católica. Em poucas décadas 25 mil “bruxas” foram queimadas na Alemanha; esse fanatismo religioso, em Salém, matou 20 mulheres de uma só vez, em 1692 (porque invocavam o demônio nas práticas de vodu). O pretexto era a purificação, a limpeza, a segurança das pessoas. Na verdade não se combatiam as bruxas, sim, a bruxaria (o risco do ateísmo).
Os torturadores (reais ou virtuais) do século XXI também se sentem purificadores?
Na Idade Média, por força de uma bula papal (Bula do Papa Inocêncio III), os cristãos Sprenger e Kramer foram nomeados inquisidores oficiais e se especializaram no tema tortura. Escreveram um famoso Manual (“Malleus Maleficarum” - O Martelo das Feiticeiras, 21 ed., Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2010), até hoje seguido (com relativa fidelidade), sobretudo contra as mulheres, os pobres, as crianças, os miseráveis, os mendigos vulneráveis (que são os torturáveis, os prisionáveis e os mortáveis).
A razão central de se torturar a mulher (as bruxas, dos séculos XV, XVI e XVII) é que ela é mais carnal que o homem (cf. Maleus, Parta I, Questão 6). Havia ódio mortal contra as mulheres. Por quê? Por força da atração mórbida por ela em razão da repressão cultural da sexualidade. A tortura, recomendada no Manual dos inquisidores católicos, incluía procedimentos tarados, sexualizados. Freud, alguns séculos depois, viria dar algumas pistas para a compreensão de tudo isso.
Como deveriam ser torturadas as mulheres no século XV? Dizia o Manual: devem ser despidas e seus cabelos e pêlos raspados à procura de objetos enfeitiçados escondidos em suas partes íntimas (que não devem ser mencionadas) (Malleus, Parte III, Cap. 15). Como diz Carlos Amadeu Byington (no prefácio do livro citado), “... o processo recomendado pelo Malleus é um delírio francamente paranóide orientado para se obter confissões, e não para se verificar a culpabilidade”. Aberrações sexuais com hipocrisia puritana (as partes íntimas não podem ser mencionadas).
A tortura é praticada em nome de uma purificação (de uma limpeza, de uma profilaxia). Lá na Inquisição o pano de fundo era a purificação da religião católica frente às bruxas e os demônios. Os purificadores projetam de forma paranóide sua própria sombra (os complexos culturais inconscientes), nos hereges que são torturados e mortos (veja Carlos Amadeu Byington, prefácio ao Martelo das feiticeiras).
Ao torturar e matar, os Inquisidores diziam lutar contra o Demônio para salvar a alma de volta para Cristo. Hoje a tortura é praticada como instrumento de obtenção de prova, como expressão da discriminação étnica, social e econômica etc. Purificação do ambiente, da raça, proteção da sociedade, purificação da impunidade etc.
A psicose paranoide dos Inquisidores do século XV era terrorífica. Depois disso o homem já foi à lua, inventaram a internet, Galileu Galilei foi regenerado pela Igreja... mas o Manual da Tortura de Sprenger e Kramer continua mais vivo que nunca. Quanto mais progride a paranoide psicótica, mais gente apoia seus métodos. Os inimigos de antigamente eram o diabo e as bruxas. Mas cada época tem seus inimigos. O poder punitivo esmaece quando não tem com quem guerrear. A criação de um inimigo é tão relevante para o poder punitivo quanto a do amigo para a saudável convivência humana.
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