Resumo: Este presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre a legitimidade das decisões judiciais proferidas ante ao Estado Democrático de Direito. Para tanto, far-se-á uma análise do exercício da jurisdição, passando pelas decisões judiciais revestidas de visão solipsita, ou seja, oriundas de uma consciência individual de juízes ou tribunais. O objetivo é apresentar a reformulação do conceito de jurisdição a partir da Teoria do Discurso, que propõe uma interpretação jurídica participativa e revestida de princípios constitucionais, expondo assim a incoerência de decisões que se limitam à aplicação literal da lei.
Palavras chave: Interpretação jurídica; teoria discursiva; agir comunicativo.
1- Introdução:
Ao refletir sobre o Direito torna-se imperioso procurar a melhor maneira de solidificar a Justiça no seio da sociedade. Sendo assim, esta busca nos leva a analisar a teoria cabível em um Estado para que possa ser chamado de Democrático.
Nesta sociedade denominada de pós-moderna, em crescente processo de mutação não se pode admitir uma atuação solipsista do Magistrado, ora, a sociedade é dinâmica enquanto a lei é estática, desta forma, reduzir a função do Juiz apenas à aplicação da lei, não legitimaria as decisões jurisdicionais.
Para tanto o presente trabalho inicia com uma análise da corrente positivista, passando pelo positivismo exegético e o normativo, mostrando que o formalismo está intrinsecamente ligado a esta corrente, portanto, reflete em uma inadequação perante a sociedade atual. Posteriormente pretende-se demonstrar a transição da razão prática para a razão comunicativa, superando esse debate positivista.
Ao final, far-se-á uma análise da Teoria Discursiva proposta por Habermas, que defende uma ruptura com o positivismo, pois as decisões judiciais não se encontram legitimadas somente por estar fundadas na lei. Inserido em um Estado Democrático, a legitimidade de uma decisão surge a partir de uma interpretação principiológica e participativa, para que os sujeitos não sejam apenas receptores de uma norma e na qual devam obedecê-las, mas sim que sejam co-autores, participando do processo de elaboração não só das leis, mas que as sentenças jurisdicionais sejam frutos de uma decisão compartilhada.
2- A corrente positivista e o formalismo:
Falar em positivismo é ter como pressuposto a imperatividade do texto da lei. Sendo assim, a ciência jurídica segundo a corrente positivista, deve buscar o seu fundamento em uma ordem legal validamente estabelecida. Tal validade é outorgada ao texto legal, tendo em vista todo o procedimento pelo qual este foi produzido, portanto, essa forma que lhe atribui caráter mandatório.
No desenvolvimento desta corrente positivista podemos visualizar duas vertentes:
a- Positivismo exegético: sendo a lei escrita declaração lógica do legislador, esta contém o recurso certo para solução das controvérsias existentes. Ao juiz não é atribuído o papel interpretativo, mas sim mero aplicador da lei.
b- Positivismo normativo: aqui o problema da interpretação judicial não é tratado de maneira preocupante, todavia a questão levantada é a respeito da validade das normas jurídicas.
Lênio Luiz Streck nomeia o positivismo exegético de positivismo legalista:
Esse primeiro quadro eu menciono, no contexto das minhas pesquisas – e aqui talvez resida parte do ‘criptograma do positivismo’-, como positivismo primevo ou positivismo exegético. Poderia ainda, junto com Castanheira Neves, nomeá-lo como positivismo legalista. A principal característica desse ‘primeiro momento’ do positivismo jurídico, no que tange ao problema da interpretação do direito será a realização de uma análise que, nos termos propostos por Rudolf Carnap, poderíamos chamar de sintático. Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a ‘obra sagrada’ (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito. [1]
Conforme visto acima, conclui-se que o positivismo exegético reduz o direito à vontade do legislador. Posteriormente, surge o positivismo normativo. Aqui, Kelsen passa a estudar a norma, e o que não for relativo a esta é entregue à outra ciência.
A validade das normas jurídicas é colocada em pauta e para obtenção dessa legitimidade impõe-se a necessidade de respeito ao processo de elaboração:
Num segundo momento, aparecem propostas de aperfeiçoamento desse ‘rigor’ lógico do trabalho científico proposto pelo positivismo. É esse segundo momento que podemos chamar de positivismo normativista. Aqui há uma modificação significativa com relação ao modo de trabalhar e aos pontos de partida do ‘positivismo’, do fato. [2]
Sendo assim, nesta “evolução” positivista, verifica-se uma busca por um direito puro, sendo a norma elemento peculiar da ciência jurídica. E esta norma é valorada segundo sua elaboração, e o problema da interpretação do direito se torna pouco questionado.
3- Da insuficiência do padrão positivista:
Tendo em vista o desenvolvimento da sociedade, o modelo positivista tornou-se inadequado para concretização da justiça. As atribuições do Magistrado não podem ser reduzidas à mera aplicação da lei ao caso concreto.
É preciso perceber que a sociedade está em constante processo de transformação, portanto essa idéia de um ordenamento jurídico completo e capacitado para resolver todas as lides que surgem nessa sociedade moderna não pode prevalecer, é preciso que esse protótipo interpretativo seja deixado para que o direito não entre em colisão com os valores sociais.
Como assinala Luiz Moreira, com referência ao direito racional:
O modelo elaborado pelo Direito racional se estabelecia a partir dos direitos subjetivos privados de sujeitos de direito que forneciam o padrão interpretativo para o sistema jurídico. Esse padrão interpretativo baseava-se na autonomia solipsista de sujeitos de direito que emprestavam valor moralizante à esfera da liberdade individual. [3]
No Estado Democrático não se pode alegar que essa Jurisdição exercida de forma mecanizada efetive o sentimento de Justiça do cidadão que provoque o Poder Judiciário, há necessidade de ativa participação no decorrer do processo daqueles que serão afetados pela decisão judicial.
Nesse contexto, surge a Teoria do Discurso onde Habermas defende que para solucionar a questão da legitimidade do direito, é preciso que o Magistrado abra caminhos para participação daqueles que estão envolvidos no processo.
Bernardo Gonçalves expõe acerca da necessidade deste diálogo entre o Juiz e os destinatários da decisão:
Isso, para Habermas, é peça fundamental para que se possa atestar a legitimidade de uma decisão; e não a mera construção de um argumento que não é posto para o grifo da crítica de uma sociedade aberta, que no paradigma do Estado Democrático de Direito reclama por condições sempre crescentes de participação e de inserção no processo de tomada de decisão judicial. [4]
Com essa linha teórica fica claro, portanto, qual deve ser o caminho da jurisdição.
4- Apresentando Jürgen Habermas:
Habermas é um dos principais filósofos alemães do século XX. Desenvolveu a Teoria do Agir Comunicativo, onde ele expõe que é plausível fundamentar o direito através da linguagem, por meio do discurso.[5]
Acredita que a validade de uma decisão jurídica está intrinsecamente ligada ao poder de compreensão daqueles que são destinatários desta deliberação. Ou seja, que a justiça é feita à partir do momento em que há uma integração de todos os envolvidos naquela lide. Como falar em justiça se ela foi imposta?
Portanto a característica da Teoria desenvolvida por Habermas é uma integração das partes envolvidas no diálogo. No caso da ordem normativa é preciso que esta não venha de cima para baixo, mas sim de um consenso entre Legislativo, Judiciário e a Sociedade.
Com relação às decisões judiciais é imperioso que as partes entendam o porque do agir do Juiz, o motivo daquela tomada de decisão e não de outra. Exemplificando: em uma palestra é preciso que o ouvinte entenda o palestrante, caso contrário, essa seria infrutífera.
Desta forma, como já dito anteriormente, uma decisão proferida de maneira coercitiva, não satisfaz o anseio pretendido pelos litigantes. O convencimento tem que ser feito pelo argumento dialógico, pois este é um grande passo para o encontro do consenso.
5- Da razão comunicativa:
Antes de discorrer à respeito da razão comunicativa, faremos algumas considerações acerca da razão prática. Esta tem como fundamento a busca por uma normatividade capaz de solucionar os problemas vividos no seio da sociedade. Portanto, a razão prática é voltada para o indivíduo e busca proporcionar a este uma direção para exercício de suas ações.
Quando se trata da razão prática, André Cordeiro Leal esclarece:
Se o sujeito era capaz de encontrar em si mesmo os mandamentos últimos à instituição da liberdade (nas premissas Kantianas, a liberdade atrela-se a determinações morais verificáveis solipsisticamente), caberia ao direito apenas formalizar e externalizar esses conteúdos de normatividade comuns a todo e qualquer sujeito dotado de razão. A organização política e social deveria, assim, simplesmente espelhar os conteúdos morais já presentes na razão humana. [6]
Luiz Moreira acrescenta que “a filosofia prática parte da premissa solipsista de um sujeito individual que pensa o mundo e a história a partir de si mesmo”. [7]
Ora, como pensar de maneira tão individualista, sendo que as ações humanas que provocam a atuação do Poder Judiciário são tidas a partir de relações entre sujeitos?
Habermas, com a Teoria da Razão Comunicativa propõe um agir baseado no discurso e arquitetado por meio da linguagem. É a partir desse agir comunicativo que se pode chegar a um consenso das partes envolvidas naquele discurso, voltando para o campo jurídico, é através deste instrumento que é a linguagem, que podemos chegar a uma solução comum de uma demanda judicial.
Sendo assim, a transição da razão prática para a ação comunicativa revela uma quebra com a noção normativista, colocando a linguagem como pressuposto para que as ações entre os sujeitos se tornem menos antagônicas. Exemplificando: eu obedeço esta norma não porque ela é imperativa, mas porque eu a aceito, eu a entendo e ainda, o argumento utilizado para inserção daquela norma na sociedade foi convincente.
Partindo desse pressuposto, de entendimento e aceitação de norma, não porque sou obrigada a cumpri-la, mas porque eu a entendo e aceito, há uma redução dos conflitos vividos na coletividade.
6- Da Teoria Discursiva:
Uma questão importante levantada por Habermas é referente à legitimidade do direito. Este questiona que não se pode fundamentar o direito “por conteúdos morais previamente fornecidos, ou por meio simplesmente de sua forma, como queria Kelsen”. [8]
Sendo assim, as normas devem ser instituídas por meio de um processo democrático, anunciando a vontade do povo. Mas como expressar o anseio popular? Aqui entra a Teoria do Discurso defendida por Habermas, a construção do ordenamento normativo não deve ser feito à partir de um fundamento único, ou em prescrições arbitrárias e sim por meio de uma abertura cognitiva, propiciando participação dos destinatários dessas normas em sua elaboração.
De tal forma, seguindo a Teoria Discursiva, o direito para ser envolto de legitimidade, é necessário que as normas expressem a vontade daqueles que serão atingidos por ela, ou melhor, daqueles que deverão cumpri-la. Esta é a grande questão do agir comunicativo, “a ordem jurídica não é heterônoma, mas emana da produção discursiva da vontade política dos membros da comunidade jurídica”.[9]
Nas palavras de Luiz Moreira, existem dois passos para que a vontade do cidadão seja instituída no ordenamento jurídico:
O primeiro passo vem a ser a concepção pós-metafísica de uma autoconstituição da liberdade comunicativa, que expressa através da livre composição dos temas e contribuições que devem formar a agenda de institucionalização. Ou seja, as liberdades comunicativas devem canalizadas de tal modo que possibilitem a livre constituição da esfera normativa através de processos democráticos. Com isso, os membros de uma comunidade jurídica formulam, como co-autores da ordem jurídica, as diretrizes dos discursos públicos que devem ser institucionalizados juridicamente. O outro passo é a etapa da correição processual. O procedimento jurídico deve compor-se de tal modo que sua abertura para a vontade democrática dos cidadãos assuma ares institucionais, isto é, devem ser institucionalizados procedimentos que afastem a contingência das decisões arbitrárias que não permitam a constituição de uma normatividade jurídica autopoietica. [10]
A Teoria do Discurso desenvolvida por Habermas valida o direito, a partir do momento que este expresse valores adquiridos no seio da sociedade. Estes valores são colhidos quando o processo legislativo for feito de forma democrática. Assim, repudia-se os modelos projetados pela metafísica, qual seja, de normas que são inseridas no seio social arbitrariamente.
6.1- A atuação do Magistrado de acordo com o agir comunicativo:
Depois de analisado a razão prática, a razão comunicativa e o agir comunicativo, pergunta-se: como deve ser a atuação do Juiz para que seja conforme à Teoria Discursiva? Como concretizar o anseio pela Justiça pretendido almejado pelas partes que serão afetas pela decisão Judicial?
A jurisdição não pode mais ser considerada como aquela função do Magistrado que se resume apenas na aplicação do direito ao caso concreto, o Juiz não pode ter um papel tão reduzido, tão mecanizado. O ordenamento jurídico não é capaz de abranger todas as possibilidades demandadas. Ainda, a lei é um documento estático, enquanto a sociedade é dinâmica, sendo assim, não se pode afirmar que toda e qualquer litígio é amparado pela legislação vigente.
Partindo desse ponto, pode-se afirmar que não deve o Juiz ser mero aplicador da lei. Seguindo a Teoria Discursiva, a decisão deve ser fruto de um diálogo entre Juiz e partes e também “resultado da interpretação compartilhada do texto legal pelo procedimento regido pela principiologia constitucional do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia)”. [11]
Aceitando esse compartilhamento linguistico, diminuindo o procedimento e o excesso de formalidade, a justiça se tornaria a justiça mais acessível.
7- Conclusão:
Na realização deste trabalho buscou-se mostrar qual a verdadeira função do Direito e o papel do Magistrado ao proferir suas decisões. Qual seria a função do Juiz? A conclusão que se chega, à luz da Teoria Discursiva é que não podemos afirmar que uma decisão se legitima simplesmente por estar fundada na lei, dentro de um Estado Democrático de Direito é possível uma interpretação principiológica para a efetivação do justo.
Isto nos leva e ter novas concepções acerca da eficácia da Teoria Positivista. Esta não é condizente com a Democracia, o Juiz não pode ser considerado como mero aplicador da lei acabada. Este, ao proferir sua decisão, deve priorizar a participação das partes usando o agir comunicativo proposto por Habermas. Não se pode reduzir o direito à uma visão individual de alguns legisladores que não expressem a vontade de uma sociedade. Fazer justiça é ouvir o clamor popular, é permitir que o cidadão participe do processo legislativo, é permitir que haja uma integração entre o direito e os sujeitos que serão destinatários da decisão.
O Direito deve nascer de um enlace entre os seus operadores e o cidadão, deve ser uma obra compartilhada que reflita os anseios da sociedade, obtidos discursivamente. Isso é fazer justiça!
BIBLIOGRAFIA:
- FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
- HARBEMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade II. Tradução Flávio Beno Siebeneich. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
- LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdades de Ciências Humanas/FUMEC, 2008.
- LUIZ Moreira. Fundamentação do direito em Habermas. – 2. ed., rev. e atual. – Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
- STRECK, Lênio Luiz. O que é isso, decido conforme minha consciência? – 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
[1] (STRECK, 2010, p. 85)
[2] (STRECK, 2010, p. 85)
[3] (LUIZ MOREIRA, 2002, p. 90)
[4] (FERNANDES, 2010, p. 204)
[5] (LEAL, 2008, p. 143)
[6] (LEAL, 2008, p. 143)
[7] (LUIZ MOREIRA, 2002, p. 99)
[8] (LEAL, 2008, p. 143)
[9] (LUIZ MOREIRA, 2002, p. 145)
[10] (LUIZ MOREIRA, 2002, p. 146)
[11] (LEAL, 2008, p. 151)
Graduada em Direito pela Faculdade Santo Agostinho, Pós Graduada em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera - UNIDERP, Mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentas pela Universidade Presidente Antônio Carlos. Três anos de experiência como professora em cursos preparatórios para concursos, lecionando as Disciplinas Direito Constitucional e Direito do Consumidor. Secretária de Meio Ambiente em Capitão Enéas/MG, no ano de 2012. Atuação no escritório RT Advogados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Maria Letícia da. A legitimidade das decisões judiciais à luz da teoria discursiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37260/a-legitimidade-das-decisoes-judiciais-a-luz-da-teoria-discursiva. Acesso em: 22 nov 2024.
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