RESUMO: O trabalho busca essencialmente analisar, tendo como marco teórico aulas ministradas por Michel Foucault no Collège de France na década de 70, mais precisamente a inaugural de 2 de dezembro e as datadas de 7 e 14 de janeiro de 1976, o papel do discurso retratado no filme-documentário “Justiça”, da cineasta Maria Augusta Ramos, que cuidou da realidade de audiências criminais realizadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Poder; Justiça.
SUMÁRIO: 1. O filme-documentário Justiça; 2. O discurso como arma de poder, dominação e exclusão; 3. Saberes sujeitados, poder e crítica ao conhecimento totalizante; 4. Poder, verdade e discurso jurídico; 5. Conclusão.
A câmera é utilizada como um instrumento que enxerga o teatro social, as estruturas de poder - ou seja, aquilo que, em geral, nos é invisível. O desenho da sala, os corredores do fórum, a disposição das pessoas, o discurso, os códigos, as posturas - todos os detalhes visuais e sonoros ganham relevância. (Sinopse do filme-documentário Justiça)
1. O filme-documentário Justiça
O filme tem como cenário salas de audiências no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a representarem um verdadeiro microcosmo, em que estão presentes dramas e angústias dos atores estatais ou não estatais envolvidos na persecução criminal em juízo.
O documentário expõe determinadas situações ali vivenciadas e que em certa medida relacionam-se com a própria vida privada de seus partícipes. Instiga o espectador a questionar o próprio funcionamento da Justiça Penal, um universo complexo que vai além dos estereótipos dos agentes processuais.
Com clareza, a realidade exposta conduz ao sentimento de que o rito processual penal, desde a instrução até a fase executória, é fruto de uma aspiração da própria sociedade, que, como veremos ao longo do trabalho o discurso desempenha papel importante, leva à uma situação de exclusão dos menos favorecidos.
A opção da cineasta, durante as audiências, foi deixar câmeras ligadas à mostra, em uma relação de confiança, de verdadeira cumplicidade, com a garantia de que as imagens não seriam utilizadas de forma a prejudicar a situação dos réus. A ideia foi captar na medida do possível a essência das relações travadas entre o Estado e os demais atores (réus, testemunhas e defensores públicos) do processo penal.
A cineasta mergulhou ainda no universo privado de muitos dos personagens. Reações humanas foram captadas, sem, por exemplo, distinção de tomadas e movimentos de câmera, tudo a evitar maniqueísmos. A realidade assim pode emergir e com ela inquietações a ela inerentes.
Nesse contexto, o discurso, essencialmente jurídico, que permeia tal ambiente, desempenha um papel primordial a legitimar o status quo.
2. O discurso como arma de poder, dominação e exclusão
É inegável que procedimentos de exclusão possam muito bem ser identificados na sociedade brasileira.
Como já se adiantou, em Justiça a cineasta Maria Augusta Ramos expõe, através de uma amostra representativa, o que ocorre durante audiências criminais realizadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e disponibiliza, sem cores, a realidade de juízes, acusados e defensores públicos, bem como o papel por cada um desempenhado.
Mais do que isso, demonstra um processo de exclusão em que tais agentes estatais, cada um com sua verdade particular, desempenham papeis pré-definidos em um verdadeiro teatro, que no fundo não buscam resolver as deficiências do sistema em que inseridos, mas, manter o estado de exclusão que o mesmo sistema penal insiste em reproduzir.
Por parte do Ministério Público, por exemplo, percebe-se um discurso da defesa da sociedade invertido, que busca protegê-la com mecanismos que cada vez mais empurram os menos favorecidos socialmente às cadeias superlotadas, sem que suas vozes possam ser ouvidas de forma proposital pelo Estado-juiz.
A partir da crua realidade exposta, verifica-se que o sistema carcerário nacional privilegia como “hóspedes” uma esmagadora população composta por pessoas oriundas das classes sociais baixas, com pouco ou nenhum grau de escolaridade.
A importância conferida ao discurso dos encarcerados, ou daqueles que abraçam a causa, sobre as agressões cometidas cotidianamente aos direitos mínimos do ser humano é bastante reduzida no seio social, até mesmo porque esta verdade agride, ameaça, os detentores do poder, que produzem e mantêm o discurso dominante. São palavras que não encontram eco na sociedade que produz o discurso global e que ao mesmo tempo são por este aprisionadas[1].
Neste exemplo, percebe-se no discurso dominante um verdadeiro caráter centralizador, que reprime aspirações, expectativas, desejos, impedindo o surgimento de verdades que venham ameaçar exatamente o privilégio de quem fala, dotado de um caráter de exclusividade.
Há muito, FOUCAULT já alertava que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (1996, pp.8-9).
No documentário, em que o espaço, as pessoas e sua organização são registrados de maneira sóbria, evidencia-se que o discurso jurídico, de difícil compreensão para os réus e testemunhas, contribui para o recrudescimento das relações de poder neste universo em que saberes individuais, sujeitados, são hierarquizados a ponto de sequer serem devidamente ouvidos. Quando muito, são apreciados apenas de forma simbólica.
E não deveria ser assim, principalmente à luz do ordenamento jurídico pátrio.
Como se sabe, o interrogatório é visto há muito como um ato de defesa do acusado[2], e, como tal, um momento de extrema importância no processo penal. Assim, não pode o discurso proferido em tal fase ser simplesmente sufocado, abafado. Não foi à toa que a Lei nº 11.719/2008 alterou o Código de Processo Penal exatamente para explicitar tal característica:
Art.400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição de testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art.222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
É evidente que não se obriga o acusado a se manifestar, mas, para que ele possa verdadeiramente exercer o seu direito à autodefesa, era primordial que houvesse essa modificação legislativa, iniciada na Lei nº 9.099/1995, a fim de permitir que ele pudesse dar a sua versão dos fatos ao final (SANTOS, 2009, p.331).
Acontece que a produção do discurso na sociedade é regulada por procedimentos cujo objetivo é controlar os seus “poderes” e “perigos”, controlar o caráter ameaçador que lhe é inerente sob a ótica de discursos dominantes, afastando a importância dos insurgentes de modo que o que interessa a um determinado setor da sociedade permaneça como se encontra. Há uma ritualização, um privilégio conferido apenas àquele que pode falar, não se podendo falar tudo o que se quer e em qualquer circunstância.
FOUCAULT, em sua aula inaugural no Collège de France, muito bem lembra da interdição, que na sua visão liga-se ao poder, à medida em que pode ser caracterizado pelo que se luta e pelo que se deseja ao final se apoderar.
Pela lente de Maria Augusta Ramos, a própria disposição física das salas de audiência e o comportamento dos atores estatais que buscam ao final concretizar um procedimento de interdição dos réus, excluindo-os da sociedade, sem maiores compromissos com um julgamento em que possa prevalecer a Justiça, tudo permeado por discursos totalizantes do Ministério Público e principalmente dos magistrados, muitas vezes intermediados por defensores públicos que acabam sendo também vítimas também do discurso dominante, retratam o exercício do poder.
A exclusão dá-se pela separação e rejeição.
Um exemplo a ilustrá-la, presente na aula inaugural ministrada por Foucault em 2 de dezembro de 1970 no Collège de France, é o tratamento conferido ao discurso dos loucos:
É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caía no nada – rejeitada tão logo proferida; ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa, uma razão mais razoável do que a das pessoas razoáveis. De qualquer modo, excluída ou secretamente investida pela razão, no sentido restrito, ela não existia. Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (1996, p.11)
Como visto, tal constatação é atual. Passa-se a impressão de que tais discursos, sobrepostos pelos dominantes, não são dignos de credibilidade. As palavras são proibidas de circular. Simplesmente são desprovidas de importância e não revelam qualquer verdade. Seus testemunhos são relativizados, suas impressões simplesmente apagadas, como se jamais houvessem existido.
Faz-se um esforço sobrenatural para encobrir os discursos, que exteriorizam uma verdade escondida e que, na realidade, podem revelar o que o discurso dominante não quer ou não consegue enxergar. Na realidade, as palavras dos loucos pouco serão ouvidas. Quando lhe é permitida a palavra, apenas acontece de forma simbólica, em um verdadeiro teatro (FOUCAULT, 1996, p.12).
As análises de Foucault “privilegiam um questionamento no que toca aos enfoques interessados em trazer à baila elementos que apontam para dissimulações e/ou ‘manipulações’ conscientes da realidade, difundidas de modo a fazer valer vontades dominantes específicas” (SILVA, 2006-2007, p. 3)
Nos dias atuais permanece a ausência de preocupação em se saber o que determinadas classes dizem e porque dizem. A palavra é apenas simbólica.
Diante desse quadro, quando o discurso chega a ser amplificado o é no intuito de legitimar a separação que o próprio sistema persegue.
No documentário “The Corporation” tem-se um outro exemplo, em que se percebe claramente a hegemonia de determinado extrato social. Ali se escancaram os danos causados pelas Corporações transnacionais, em especial nas partes mais pobres do planeta, encobertos por um discurso desenvolvimentista desprovido de qualquer preocupação com a qualidade de vida e os malefícios direitos causados pela exploração econômica.
A tomada de depoimentos em uma sala de audiências evidencia muitas vezes distorções do discurso particularizado dos réus, praticadas pelo magistrado responsável por ditar as respostas do acusado ao escrivão. Por trás da suposta racionalidade repousa um objetivo menos nobre, o de exclusão desse discurso hierarquizado exatamente para fazer com que não represente uma ameaça ao exercício do discurso dominante.
Nesse contexto, não se pode desprezar, como se tem afirmado ao especificar o papel dos agentes estatais, a importância dos próprios autores[3] dos discursos, que lhe conferem uma verdade com base em sua vida pessoal, nas experiências vividas, na história real, conferindo à linguagem a coerência, a inserção no real, ainda que por vezes distanciada do ideal de justiça, relação muito bem retratada no filme.
3. Saberes sujeitados, poder e crítica ao conhecimento totalizante
FOUCAULT, na aula de 7 de janeiro de 1976, já destacava o efeito inibidor próprio das teorias totalitárias, teorias estas tomadas como envolventes e globais. Por outro lado, não se poderia ignorar a crítica realizada por outra vertente de saber, a dos saberes locais[4], quase sempre desqualificados, não legitimados como vimos acima. Na verdade, uma crítica direcionada àquela instância teórica unitária, que os deseja filtrá-los e ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro.
Ao estarem inseridos na sociedade, sua importância não pode ser desprezada pois colaboram com a formação do pluralismo que lhe é inerente.
Ao realizar a crítica do conhecimento unitário, de uma ciência que seria privilégio de alguns, FOUCAULT buscou destacar a importância daqueles saberes locais, não legitimados. O autor não desconhecia que os saberes desencavados, até então encobertos pelo saber científico, poderiam cair na tentação de eles próprios serem por este anexados em seu discurso unitário a partir de uma recodificação que de certa forma os reunificaria. Porém, tal desafio é lançado sob a certeza do autor de que suas indagações não buscam um coroamento teórico rumo à unificação, mas a identificar quais mecanismos de poder são exercidos em níveis diferentes da sociedade. O instrumental seria o conhecimento de que o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas simplesmente se exerce e só existe quando exteriorizado por um ato, sendo não uma manutenção e recondução das relações econômicas, mas uma relação de força.
Até intuitivamente, o dia-a-dia demonstra que o poder, realmente, está relacionado a uma situação de força, exercida por alguns e em determinadas circunstâncias, como por exemplo o poder da fiscalização estatal no exercício de seu “poder” de polícia, reprimindo condutas individuais em prol de uma coletividade que, na formação do poder político, cedeu um pouco de seus poderes; ou, sob viés oposto, se é que podemos afirmar isso, haja vista os objetivos inconfessáveis que dão sustentação à produção legislativa, os poderes das grandes corporações em fazer ditar, moldar, a conduta estatal nos moldes que lhe interessam basicamente em razão de negociação pautada em seu imenso capital econômico.
Umas das vertentes, características, do poder seria exatamente a de reprimir os instintos, os indivíduos, o que leva à possibilidade de ser analisado em termos de combate, de uma verdadeira guerra, enfim, em termos de enfrentamento.
Trata-se de perguntar, em seus mecanismos, seus efeitos e suas relações, pelos dispositivos de poder que são exercidos nos diferentes domínios da sociedade. O problema seria o de saber em que medida a guerra pode servir como princípio de análise das relações de poder (FONSECA, 2000).
Vale lembrar que FOUCAULT vale-se da inversão da proposição de Clausewitz (“A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”) para afirmar que a política é a guerra continuada por outros meios (aula de 7 de janeiro de 1976).
As relações de poder ancorar-se-iam em uma determinada relação de força estabelecida em um determinado momento, historicamente identificado na guerra e pela guerra.
Por esta vertente de pensamento, em que o poder é analisado em termos de enfrentamento, vislumbra-se, diante do caráter dialético das audiências penais, que tal perspectiva é identificada no filme Justiça, mas sob o manto do discurso totalizante[5]. Na própria disposição do arcabouço jurídico processual penal identifica-se uma relação desequilibrada de poder, encarnada na figura do Estado-juiz, a quem se deve deferência, que leva o resultado do confronto normalmente à manutenção do discurso dominante, unitário. Caracteriza-se uma relação de força que tende a se perpetuar em um esquema de dominação e repressão.
O que interessava para FOUCAULT não era a construção de um novo conceito, mas sim a análise do poder como prática social, historicamente constituída, e as múltiplas formas de exercício do mesmo na sociedade. Assim, mais do que responder a pergunta “o que é o poder?”, para o autor, devia-se se indagar: [...] quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos mecanismos de poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados? (MARQUES, 2006, p.3)
No filme Justiça, a cineasta, ao se preocupar em evidenciar as relações travadas no curso do processo penal e seus efeitos sobre determinadas pessoas, que em razão do discurso dominante são excluídos, sem possibilidade de serem realmente ouvidas, provoca uma crítica ao conhecimento totalizante e instiga uma reflexão acerca dos mecanismos de exercício do poder.
4. Poder, verdade e discurso jurídico
Na aula proferida em 14 de janeiro de 1976, FOUCAULT trata das relações existentes entre poder, direito e verdade, na medida em que identifica na sociedade significantes discursos de verdades estabelecidos pelo poder mediante o uso do direito. A produção da verdade condiciona-se pelo poder, cujo exercício, por sua vez, exerce-se e perpetua-se também mediante normas de direito.
A produção da verdade, com o condão de submeter todos ao poder instituído, dá-se muito mediante regras de direito, que informam obrigatoriamente o comportamento das pessoas e conferem o status de cada um na sociedade, estabelecendo-se em discursos que segregam a maioria.
É indisfarçável que a linguagem do Direito é de difícil comunicação, sendo compreendida apenas por quem é da área, os conhecidos “operadores do Direito”. Tal característica faz com que a hegemonia se estabeleça, se considerado o fato de que os detentores de conhecimentos técnicos suficientes e de uma boa formação cultural sobressaem sobre os marginalizados, não se podendo olvidar que as normas são produzidas exatamente pelos detentores do discurso dominante[6].
O filme Justiça deixa claro que o uso de uma linguagem[7] jurídica, específica, distante da realidade dos que sofrem a persecução penal, funciona com uma fonte de segregação, de sorte a serem excluídos pelo discurso dominante essencialmente técnico, fora do alcance da maioria dos atores de que cuidou a cineasta Maria Augusta Ramos.
Para BOUDIER (2000, p.237),
[...] o direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos (...). O direito é a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este.
Aquele autor, entretanto, adverte que
[...] convém, com efeito, que nos interroguemos acerca das condições sociais – e dos limites – desta eficácia quase mágica, sob pena de cairmos no nominalismo radical (que certas análises de Michel Foucault sugerem) e de estabelecermos que produzimos as categorias segundo as quais construímos o mundo social e que estas categorias produzem este mundo.
Muitos ordenamentos jurídicos serviram como instrumentos técnicos, elaborados por pessoas qualificadas, para justificar muitas das grandes atrocidades mundiais, cujo exemplo mais retumbante no século passado foi o cometimento de crimes sob o regime nazista alemão. A teoria jurídica, e com ela o discurso exteriorizado, fixa a legitimidade do poder.
Na seara processual penal, por exemplo, objeto do filme Justiça, as instituições voltadas à aplicação do direito veiculam na verdade, apesar de formalmente pregar a igualdade de armas, relações de desigualdade, que pode ser visualizada, por exemplo, na disputa de uma parte, melhor assistida por um representante que teve uma formação adequada, contra outra, muitas vezes patrocinada por um advogado público que não dispôs, tampouco dispõe, dos recursos necessários, inclusive que o motivem a bem exercer a sua profissão.
No estudo das relações de dominação e de sujeição inerentes ao sistema do direito e ao campo jurídico, FOUCAULT preocupou-se, na aula proferida em 14 de janeiro de 1976, em estabelecer o que denominou de “precauções de método”. De acordo com o pensador, faz-se necessário entender o poder em suas formas locais, sobretudo quando vai além das regras de direito que o organizam e o delimitam, fornecendo em seu exercício instrumentos de intervenção materiais até certo ponto violentos, como o suplício e o aprisionamento, em instituições cada vez menos jurídicas. Também não importa saber quem detém o poder, sendo importante estudá-lo em sua face externa, onde ele produz efeitos reais, não podendo ser entendido como exclusividade de alguns, vez não ser objeto de posse, como se fosse um bem[8].
De fato, o poder se exerce. Eu acrescentaria que se exerce valendo-se do discurso dominador com o intuito de torná-lo único, intransponível.
FOUCAULT alertava, por exemplo, que a burguesia jamais se interessou pelos delinquentes, que não despertavam interesse econômico, mas pelo conjunto de mecanismos pelos quais eram controlados, seguidos, punidos e reformados. O interesse, então, limitava-se aos dividendos políticos e econômicos proporcionados ao poder central político por tais mecanismos, pouco importando o que representavam como pessoa à sociedade.
O que parece marcante nas investigações de FOUCAULT é a existência de uma rede de micropoderes a ele (ao Estado) articulados e que atravessam toda a estrutura social. Portanto, trata-se de buscar analisar o poder partindo não do seu centro (Estado) e ver como ele se exerce em níveis mais baixos da sociedade (análise descendente), mas sim o inverso, isto é, partir desses micropoderes que atravessam a estrutura social e ver como eles se relacionam com a estrutura mais geral do poder que seria o Estado (análise ascendente) (DANNER, 2009, p.2).
5. Conclusão
As características do discurso e do poder, e os procedimentos de exclusão advindos desta relação, são visualizados no documentário “Justiça”, da cineasta Maria Augusta Ramos.
Percebe-se que o procedimento da persecução penal, da forma como posta, alimenta o próprio sistema e o discurso dominante, em que os réus, muitas vezes, participam de um simples ritual cujo fim já se sabe de antemão qual é.
Os principais atores em uma sala de audiência personificam o Estado (magistrado) e a sociedade (Ministério Público), que no fundo desejam manter o sistema de exclusão, a seus olhos ameaçador, valendo-se de um discurso de difícil compreensão à maioria da população e o que é mais grave, às pessoas que estão sob acusação estatal, ou seja, ao mais diretamente interessados. O Direito, ditado por quem exerce o poder central, vale-se de uma linguagem não acessível, o que só contribui para o aumento da exclusão.
O sistema nada mais faz do que reproduzir a situação posta, servindo a interesses muitas vezes econômicos e inconfessáveis. Estabelece-se no seio social o sentimento, e talvez a certeza, de que os encarcerados, mesmo que provisoriamente, não representam reserva de mercado. O sistema econômico, que cada vez mais dita as políticas públicas, por eles não se interessa. São pessoas que ficam abandonadas à própria sorte e sujeitas às mazelas produzidas no interior do sistema carcerário, ou seja, acabam sendo vítimas, muitas vezes fatais, do próprio Estado, fechando assim o ciclo da exclusão vez que jamais retornam à sociedade.
É interessante notar que esse sistema de exclusão é muitas vezes produzido pela própria sociedade, que refém do medo e da insegurança, pressiona-o para que este seja cada vez mais punitivo. E isso se dá através do Direito, com o endurecimento das penas por exemplo. É a própria sociedade sendo capturada pelo sistema.
Na verdade, o sistema dominante punitivo estatal aparelha-se para não alcançar as camadas mais altas da sociedade, de forma que a simples investigação de empresários bem sucedidos passa a ser um fato que causa espanto, ocupando as manchetes dos jornais.
E talvez isso seja uma assimetria proposital, para exatamente não alcançar com eficiência as condutas criminosas das classes detentoras do discurso dominante, com viés unitário. Tal fato, aliado ao acesso que esta camada social, por sua condição econômica, naturalmente possui a advogados melhor preparados, faz com que não sejam freqüentadores do sistema prisional.
Por outro lado, réus que dependam de defensores públicos, quando estes existem de forma institucional (há Estados em que sequer há Defensoria Pública) tornam-se presas fáceis de um sistema que os exclui por força, pressão, da própria sociedade, sendo o discurso uma poderosa ferramenta. É uma lógica perversa, em que se constata uma verdadeira retroalimentação e consolidação do cenário que se apresenta.
Recentemente, a revista semanal Carta Capital veiculou uma notícia que bem retrata esta opção estatal pela manutenção do quadro de exclusão:
O governo Lula propõe aumentar para 560 o número de advogados da União. Talvez seja uma medida necessária. Provoca, porém, uma ironia. Esse aumento é maior do que o efetivo da Defensoria Pública (481 defensores), que presta assistência aos pobres nas justiças Federal, Trabalhista, Militar e Eleitoral. Sem apoio nos tribunais, Lula sabe, a corda vai continuar arrebentando no lado mais fraco. (Maurício Dias, Coluna Andante Mosso, Revista Carta Capital, nº 608, de 11/08/2010)
A observação do Presidente à época da Associação dos Magistrados Brasileiros, Sr. Cláudio Baldino Maciel, quando do debate promovido pelo jornal Estado de São Paulo acerca do filme-documentário Justiça, sintetiza muito do que se expôs neste trabalho. Disse ele:
O filme é muito instigante, porque com essa crueza ele nos faz pensar sobre o que esse sistema faz. A que serve? O que está por trás disso? Na verdade, quando nós assistimos a essas cenas nas delegacias de polícia, abarrotadas de réus, ou processados, ainda provisórios, isso me lembra os navios negreiros, as masmorras da Idade Média [...]. Essa não é uma questão só do Poder Judiciário, mas da sociedade brasileira e da falta de exigências da sociedade para que essas coisas efetivamente melhorem [...]. O Judiciário é também reflexo disso, com uma linguagem empolada, uma linguagem de difícil comunicação [...], juízes que são aprisionados pelo sistema que é em tudo extremamente violento [...]. Esse sistema que está aí, a quem ele serve? Essas pessoas que estão presas não são mais reserva de mercado de trabalho, assim como os loucos nos hospícios, abandonados à própria sorte [...], elas não produzem mais e não são absolutamente consideradas [...] Aquilo é um teatro, o Estado é representado pelo juiz, a sociedade é representada pelo Ministério Público, o réu é representado pelo advogado e o fato não é julgado onde não aconteceu [...]. Se isso serve a alguns interesses, essa é a pergunta que devemos fazer [...]. Na área criminal, há quem se sirva disso? [...] A sociedade cada vez mais é uma sociedade da tolerância zero e ela pressiona o sistema para que ele seja cada vez mais punitivo e aflitivo [...]. O que há é um sistema de Direito, esse sim, um sistema normativo que a sociedade cria regras para si própria [...] que cria normas para manter esse status quo.
Verifica-se na sociedade uma disposição para reproduzir relações de poder. Quanto às verdades, estariam em disputa contínua no meio social, podendo ser encaradas no nível individual como também de maneira institucional. A verdade seria moldada a partir de um discurso aliado a determinado aparelho, a certa instituição. Surgiria de um conflito contínuo entre indivíduos, entre indivíduo e instituição, bem como entre instituições.
BOURDIER, Pierre. O poder simbólico. 9ª ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000;
CARDOZO, Benjamin Nathan. A natureza do processo judicial. Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002;
DANNER, Fernando. A genealogia do poder em Michel Foucault. IV Mostra em Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009;
DIAS, Maurício. Coluna Andante Mosso. Revista Carta Capital, nº 608, São Paulo, 11/08/2010;
FONSECA, Márcio Alves. Fazer viver e deixar morrer: as sociedades modernas e a tipologia de seus poderes. Revista Brasileira de Ciências Sociais.Vol.15, nº44, São Paulo: 2000;
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Aulas no Collège de France ( 7 e 14 de janeiro de 1976);
___________ A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3ªed. Edições Loyola. São Paulo: 1996;
LAWN, Chris. Compreender GADAMER. Petrópolis: Vozes, 2007;
MARQUES, Artur Antonio Moraes. O conceito de poder em Foucault: algumas implicações para a teoria das organizações. Trabalho apresentado no III CONVIBRA – Congresso Virtual Brasileiro de Administração. Disponível em http://www.convibra.com.br/2006/artigos/74_pdf.pdf. Consulta em 16/11/2010;
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004;
SANTOS, Leandro Galluzzi. Procedimentos lei 11.719, de 20.06.2008. As reformas do processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. Coord. Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: RT, 2009;
SILVA, José Cláudio Sooma. Foucault e as relações de poder: o cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica. Revista Aulas. nº 3. Dezembro/2006 – Março 2007. Disponível em http://www.unicamp.br/~aulas/pdf3/17.pdf. Consulta em 16/11/2010.
ACHBAR. Mark, ABBOTT. Jenifer, BAKAN.Joel. The Corporation. Imagens Filmes;
RAMOS, Maria Augusta Ramos. Justiça. Videolar S/A.
[1] Pode-se afirmar que o início desta situação empírica dá-se a partir do procedimento da persecução penal que alimenta o próprio sistema, em que os réus, sem que aqui se tome partido pelo discurso da vitimização, participam de um simples ritual cujo desfecho já se sabe de antemão qual é, ainda que isso não seja externado.
[2] Eugênio Pacelli de Oliveira já afirmava, antes da reforma legal, que o interrogatório, antes visto apenas como mais um meio de prova já tinha nova feição: “...o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa. Trata-se, efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir qu ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo” (p.379).
[3] Para FOUCAULT, o autor assume papel relevante no discurso, mas não aquele entendido como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. Seria aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real.
[4] Podem ser entendidos como “uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados, desses saberes desqualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes (...) esse saber que denominarei, se quiserem, o “saber das pessoas” ( e que não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) -, foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica.” (FOUCAULT, 1976, p.12)
[5] As decisões judiciais sobre questões de prova são consideradas, com crescente frequência, como cabendo ao arbítrio do juiz que preside o julgamento. Os erros não são mais motivo para perturbar os julgamentos, a menos que o tribunal de apelação fique convencido de que afetam o resultado (CARDOZO, 2002, p.534).
[6] De acordo com BOURDIEU, “é certo que a prática dos agentes encarregados de produzir o direito ou de o aplicar deve muito às afinidades que unem os detentores por excelência da forma do poder simbólico aos detentores do poder temporal, político ou econômico, e isto não obstante os conflitos de competência que os podem opor. A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade do habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões do mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominante, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes” (2000, pp.241-242).
[7] Para GADAMER, a linguagem é sustentada e autenticada por várias formas de solidariedade linguística, em que uma rede implícita e explícita de acordos regulando o seu significado e uso a sustenta. A linguagem seria fundamentalmente um fenômeno social, cultural e histórico, e qualquer estudo detalhado deveria começar com uma apreciação desse fato vital (LAWN, 2007, pp. 105-106). No contexto das audiências penais, universo de análise do filme Justiça e deste trabalho, percebe-se exatamente este caráter, razão pela qual o uso do discurso advindo das mais variadas camadas não pode ser desprezado na análise.
[8] De acordo com FOUCAULT, “o poder, (...), deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou um bem. O pode funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles.”.
Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), Mestre em Direito e Especialista em Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Eduardo Martins Neiva. O discurso jurídico no filme-documentário "Justiça", de Maria Augusta Ramos: uma análise a partir das aulas ministradas por Michel Foucault no Collège de France Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 fev 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38361/o-discurso-juridico-no-filme-documentario-quot-justica-quot-de-maria-augusta-ramos-uma-analise-a-partir-das-aulas-ministradas-por-michel-foucault-no-college-de-france. Acesso em: 22 nov 2024.
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