1. Introdução.
Nas palavras de José Murilo de CARVALHO, 1996, a abolição pode ser “entendia como o conjunto de políticas públicas que aos poucos levou à extinção da escravidão” (CARVALHO, 1996, p. 269).
Partindo dessa ótica, o presente estudo busca conhecer as principais normas legais que paulatinamente promoveram a abolição da escravidão oficialmente no Brasil, analisando, de forma sintética, suas principais disposições e os fatores sociais e políticos que se articularam durante sua elaboração e aprovação.
“As fases por que passou o processo abolicionista no Brasil revelam aspectos importantes do comportamento de vários agentes sociais e esclarecem a natureza do próprio sistema político imperial.” (CARVALHO, 1996, p. 295).
2. Lei Euzébio de Queiroz
“A Inglaterra, até o século XVIII, era a grande beneficiária do tráfico negreiro.” (NEVES, p. 345). Todavia, em 1807, proibiu o tráfico de escravos e iniciou uma campanha no sentido de lavá-lo a termo em todo o mundo, principalmente nos países mais suscetíveis às suas pressões, como Portugal. Os tratados comerciais firmados entre ingleses e portugueses em 1810, 1815 e 1817 “progressivamente limitavam a legalidade do comércio escravo e aumentavam a margem de ação da marinha britânica.” (CARAVALHO, p. 270).
O reconhecimento da independência do Brasil pela Inglaterra foi condicionado, entre outras coisas, ao cumprimento dos tratados firmados com Portugal, que restringiam o comércio de escravos e ao fim definitivo da prática.
D. Pedro I comprometeu-se a por fim ao tráfico negreiro, todavia, foi apenas no período Regencial que se aprovou a primeira lei proibindo-o, em 7 de novembro de 1831. Ocorre que aquela foi definitivamente uma “lei para inglês ver”, no sentido de que não teve qualquer eficácia, especialmente em face da ausência de fiscalização pelo governo e por conferir o julgamento dos infratores ao júri popular, o que tornava as condenações praticamente inexistentes.
“Portanto, apesar da existência de compromissos formais entre o Império brasileiro e a Inglaterra na primeira metade do século XIX, as condições internas, vinculadas à estrutura agrária, foram responsáveis pelo descumprimento das leis restritivas ao comércio africano. (...) Os traficantes usavam todos os meios para burlar os acordos internacionais. Nesse contexto, o governo inglês estabeleceu normas mais rígidas para tentar erradicar definitivamente o “ignóbil comércio”, através do Bill Aberdeen.” (NEVES, p. 347).
A lei, aprovada pelo Parlamento inglês, concedia unilateralmente à marinha britânica o direito de interceptar e aprisionar qualquer navio brasileiro que fosse utilizado no tráfico, mesmo dentro das águas territoriais do Brasil. A medida intensificou a pressão da Inglaterra e promoveu um sentimento anti-britânico no Brasil.
“A ação inglesa precipitou a decisão do governo” (CARVALHO, 1996, p. 273), e, em 1850, foi aprovada a Lei nº 581, proposta pelo gabinete conservador comandado por Euzébio de Queiroz. A nova lei, que ficou conhecida pelo nome daquele ministro, reafirmava a proibição do tráfico de escravos e transferia a competência para julgamento dos traficantes e juízes de direito no âmbito da auditoria da Marinha.
Os fazendeiros, adquirentes dos escravos trazidos da África, continuavam a ser julgados pelo júri popular, o que reduzia suas chances de condenação. Todavia, em face da intensificação da fiscalização e da nova competência judiciária, a condenação dos comerciantes de escravos foi efetiva. “O fato de não ter sido retomado o tráfico certamente se deveu à ação do governo, pois não faltaram tentativas.” (CARVALHO, 1996, p. 277).
A Lei Euzébio de Queiroz também serviu para promover intensa repressão às insurreições de escravos entre os anos de 1830 e 1840.
O destino dos africanos “livres”, subtraídos dos traficantes ilegais, foi outra questão complexa. Restituí-los à África mostrou-se impraticável. A medida inicialmente aplicada foi a prestação de serviços por catorze anos a particulares, nos termos do Decreto de 28 de dezembro de 1853. Posteriormente a obrigação foi extinta pelo Decreto nº 3.310, de 24 de setembro de 1864.
“O fim do comércio negreiro trouxe inúmeras conseqüências. Foi o primeiro abalo na sociedade escravista, pois a reposição da mão-de-obra não podia ser feita internamente. (...) O preço dos escravos aumentou, chegando em alguns casos a 100%. (...) O tráfico interprovincial apresentou-se com a saída mais utilizada pelos fazendeiros, em especial do sudeste. (...) O comércio interno de escravos caracterizava-se também pelas condições brutais, não se diferenciando de seu congênere africano.” (NEVES, p. 249/350).
3. Lei do Ventre Livre
A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, previa a liberdade dos filhos de escravas nascidos a partir daquela data, razão pela qual ficou conhecida como Lei do Ventre Livre, mas outras de suas disposições também tiveram profundo impacto na ordem escravista.
Em seus artigos 1º e 2º, a lei regulava a liberdade dos filhos de escravas, que deveriam ficar sob a responsabilidade do senhor até os oito anos de idade. Depois desse período o ex-proprietário teria duas opções como forma de indenização; entregar a criança ao Estado, recebendo um valor pago pelo “ingênuo”, ou utilizar seus serviços até os vinte e um anos.
Foi criado, ainda, um Fundo de Emancipação nas províncias, que tinham por objetivo a alforria de escravos, nos termos do artigo 3º. Ficou proibida a separação das famílias escravas, incluindo cônjuges e filhos menores de 12 anos. O artigo 6º libertou os escravos que pertenciam ao Estado e os de usufruto da Coroa. Também determinou a elaboração de uma matrícula geral de todos os escravos do Império.
Mas a disposição mais relevante parece ter sido aquela contida no artigo 4º, que garantia ao cativo o direito à formação de um pecúlio, decorrente de heranças, doações e mesmo de seu trabalho, que poderia ser utilizado para compra da própria liberdade, à revelia da vontade do senhor; dando o escravo ao menos a esperança de poder controlar seu próprio destino.
A relevância da Lei do Ventre Livre não está apenas no seu conteúdo, mas também no fato de marcar uma nova fase no processo de abolição no Brasil. Desde a Lei Euzébio de Queiroz em 1850, nenhum outro projeto abolicionista havia sido aprovado, ou mesmo discutido na Câmara dos Deputados.
“O novo ciclo decisório começou em 1866 e se revestiu de características bastante distintas. A iniciativa veio da Coroa, embora as razões imediatas não sejam claras. De qualquer modo, no início de 1866, Pimenta Bueno, uma dos mais próximos conselheiros de D. Pedro II, já tinha prontos, por encomenda imperial, cinco projetos abolicionistas que foram entregues ao presidente do Conselho, marquês de Olinda.” (CARVALHO, 1996, p. 280).
Entretanto o assunto sequer chegou a ser discutido no âmbito do Conselho de Estado durante a gestão do marques de Olinda..
A mudança de postura pôde ser vista, no entanto, na resposta do Ministro da Justiça do novo Gabinete, chefiado por Zacarias, à interpelação pela libertação dos escravos enviada pela Junta Francesa de Emancipação. O texto, atribuído a D. Pedro II, afirmava que a questão seria prioridade após o fim da guerra do Paraguai.
As mudanças no cenário internacional na década de 1860, como a derrota do sul escravista na Guerra Civil Americana e as discussões sobre a abolição em Cuba, influenciaram no processo de elaboração da lei.
Em 1868, durante o gabinete encabeçado pelo visconde de Rio Branco, uma comissão do Conselho de Estado elaborou o projeto encaminhado à Câmara para a “Reforma do Elemento Servil”. A Lei do Ventre Livres foi aprovada após ferrenhas disputas parlamentares, que demonstraram clara divisão entre os deputados do Norte, que aceitavam o projeto, uma vez que não mais dependiam da mão-de-obra escrava; e os do Sudeste, representantes da lavoura cafeeira que dependia do braço cativo, e foram absolutamente contrários às medidas.
“A lei foi, no fundo, uma concessão aos opositores da escravidão e provocou o arrefecimento das suas reivindicações. Poucos foram, porém, os cativos de fato beneficiados. Aproveitando-se da falta de fiscalização do governo, os senhores burlavam a lei de várias formas (...). Pelos cálculos de Rui Barbosa, a lei só acabaria com a escravidão no Brasil na metade do século XX.” (NEVES, p. 382).
Todavia, nas palavras de José Murilo de CARVALHO, 1996, a Lei do Ventre Livre teve o mérito de “tornar indiscutível o fim próximo da escravidão e de mostrar aos escravistas que não teriam a Coroa a seu lado.” (CARVALHO, 1996, p. 293). A abolição final estava a caminho.
4. Lei dos Sexagenários
“A propaganda abolicionista no Parlamento tomou novo ímpeto em 1879, com o discurso do deputado baiano Jerônimo Sodré, apelando para a “extinção total e rápida” da escravidão em virtude na ineficácia da lei do Ventre Livre.” (NEVES, p. 382).
Apesar de derrotado o projeto de abolição gradual até o fim da década de 1880, com indenização dos senhores, apresentado por Joaquim Nabuco em 24 de agosto de 1880, os ânimos dos deputados defensores do fim da escravidão não arrefeceram e “os debates na Câmara ganharam as ruas através dos jornais” (NEVES, p. 382).
A abolição no Ceará e no Amazonas serviu de combustível para a disputa parlamentar que se alastrava pela sociedade. O movimento abolicionista ganhava força e invadia as cidades, especialmente o Rio de Janeiro. “A última fase do processo de libertação foi marcada por elemento novo: a participação popular.” (CARVALHO, 1996, p. 293).
Um novo projeto foi elaborado pelo Gabinete liberal liderado por Manuel Dantas, que previa a libertação dos maiores de 60 anos, sem indenização, além de outras medidas, como a fixação de uma tabela de preços por idade para emancipação dos cativos; a proibição do tráfico interprovincial; criava um novo fundo de emancipação; além da promoção uma nova matrícula dos escravos. Mas a forte oposição levou a queda do Gabinete, que foi mais uma vez substituído antes da aprovação da lei nº 3.270, em 28 de setembro de 1885.
O Gabinete conservador liderado pelo conselheiro Saraiva apresentou em maio daquele ano o projeto, mas quando da aprovação alguns meses depois, o comando do Gabinete estava nas mãos do também conservador barão de Cotegipe, razão pela qual foi batizada de Lei Saraiva-Cotegipe. No entanto, ficou mais conhecida com Lei dos Sexagenários, uma vez que sua principal disposição referia-se a liberdade dos escravos maiores de 60 anos, que indenizariam os senhores com mais três anos de trabalho.
A lei aprovada aumentou os valores da tabela proposta pelo projeto Dantas, e sinalizava com a perspectiva de libertação de todos os cativos em treze anos por meio do Fundo de Emancipação. Por outro lado, fixava medidas repressivas, buscando conter a radicalização do movimento abolicionista, que foram duramente aplicadas pelo barão de Cotegipe.
“A lei, aprovada para tentar diminuir as pressões do movimento abolicionista, acabou desagradando os militantes antiescravistas, que a consideraram uma solução infeliz. Apenas 18.946 cativos foram registrados como sexagenários em 1886 e 1887, embora existissem 90.713 nas estatísticas oficiais.” (NEVES, p. 383).
5. O fim da escravidão.
A chamada Lei Áurea, que extinguiu legalmente a escravidão, sem qualquer espécie de indenização para os proprietários de escravos, foi apresentada na Câmara dos Deputados pelo Gabinete conservador do conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira, que substituiu o do barão de Cotegipe.
Foi aprovada sem dificuldades na Câmara dos Deputados de maioria conservadora em 13 de maio de 1888, com apenas nove votos contrários, e assinada pela princesa Isabel.
Entretanto, ao contrário do que poderia parecer a primeira vista, a nova lei não foi responsável, por si só, pela libertação da grande maioria dos africanos. “Foram libertados 750 mil escravos que representavam 10% dos negros” (NEVES, p. 384), o que obviamente é um percentual bastante relevante. Entretanto, muitos senhores, a fim de garantir a mão-de-obra em suas fazendas, já tinham libertado seus escravos. Muitos outros já contavam o direito de serem libertados em três anos. Isso sem contar todos aqueles que já haviam obtido a liberdade pela força do movimento abolicionista e por outras medidas legais, como o Fundo de Emancipação.
A disposição da Lei do Ventre Livre que permitia a formação do pecúlio e a autocompra pelo escravo desde 1871, mesmo contra a vontade do senhor, multiplicou os casos de alforria, bem como as disputas judiciais pela fixação do preço a ser pago pelo cativo.
“Com a abolição não houve processo de integração dos negros à sociedade.” (NEVES, p. 386). Muitos abolicionistas alertaram para a necessidade de medidas em favor dos negros, em conjunto com o fim da escravidão, especialmente a realização de uma reforma agrária, com distribuição de terras de latifúndios improdutivos aos ex-escravos. Mas a oposição da oligarquia que concentrava a maior parte da propriedade fundiária impediu a medida.
Propostas de universalização da educação básica foram aventadas pelos abolicionistas, mas também sem sucesso.
Muitos negros dirigiram-se para as cidades, uma vez que os campos enchiam-se de imigrantes europeus – especialmente italianos – onde viviam à margem da sociedade.
“Em função da existência de circunstâncias que não permitiam o exercício pleno da cidadania, proliferaram grupos, como os capoeiras, que vagavam pelas ruas da cidade vivendo de expedientes notoriamente escusos para sobreviver.” (NEVES, p. 388).
As principais medidas legais tomadas em relação aos ex-escravos foram as repressivas, que obrigavam os libertos a trabalhar para seus antigos senhores e que “combatiam” o ócio, com sanções econômicas e penais. Não sendo garantido aos negros sequer uma remuneração minimamente digna pelo trabalho.
“O país, já incluído no rol das nações civilizadas, não tinha espaço para os ex-escravos, que foram marginalizados, inclusive pelas elites intelectuais que os defenderam antes da abolição. Os negros continuaram fazendo parte de uma estrutura hierárquica e excludente que caracteriza as relações sociais existentes no Brasil até hoje.” (NEVES, p. 389).
6. Conclusão.
Em que pese toda a “mitificação em torno da lei de 13 de maio” (NEVES, p. 385), a abolição não foi uma concessão do poder real, mas resultado de um processo longo e progressivo, no qual diversos fatores atuaram, de forma extremamente relevante.
Na primeira fase a pressão estrangeira, especialmente inglesa, foi fundamental para as medidas que puseram fim ao tráfico negreiro. Na ultima fase, que culminou com a extinção legal da escravidão através da Lei Áurea, foi de fundamental importância o movimento abolicionista que contou com membros da elite intelectual, com a intensiva campanha nos jornais e com a participação popular. “O que realmente marcou o último período foi a movimentação popular dirigida a partir das cidades e das organizações abolicionistas.” (CARVALHO, 1996, p. 295).
Mas não pode ser ignorada a importância da família real brasileira nesse processo. Como assevera José Murilo de Carvalho:
“Embora a iniciativa nessa fase final tenha passado para a ação popular, o incentivo da Coroa nunca deixou de ser sentido, seja em manifestações pessoais do imperador e da princesa Isabel, seja nos títulos nobiliárquicos oferecidos aos que libertassem escravos, seja pela ação direta (os netos do imperador editavam um jornal abolicionista dentro do Palácio, onde também escravos fugidos recebiam proteção). A posição da Coroa sem dúvida encorajava a atuação dos abolicionistas e reduzia substancialmente a credibilidade das medidas repressivas do governo.” (CARAVLHO, p. 295).
Oficialmente a escravidão acabou no Brasil em 13 de maior de 1888, quando a princesa Isabel assinou a lei Áurea, mas, infelizmente, ainda é uma realidade que pode ser vista constantemente nos noticiário.
A redução de trabalhadores à condição análoga a de escravos é uma prática que ocorre não só nas lavouras de regiões mais inóspitas dos Estados do Norte. Pode ser vista também em fazendas de outras regiões do país, inclusive no Sudeste, ou ainda, nas confecções de roupas em São Paulo, maior metrópole do Brasil, onde imigrantes latino-americanos ilegais são explorados sistematicamente.
A pergunta que fica, valendo-nos da expressão utilizada muitas vezes no século de XIX, é: até quando perdurará esse “cancro” que corroí a sociedade?
7. Referências Bibliográficas.
CARVALHO, 1996, José Murilo de. A Monarquia Brasileira. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1993.
__________. A Construção da Ordem: a elite política imperial;Teatro de Sombras: a política imperial. 2ª Ed. Rio de Janeiro : UFRJ, Relume-Dumará, 1996.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, e MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro : Nova Fronteira. 1999.
VAIFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro : Objetiva. 2002.
Procurador Federal; Subprocurador da Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais; Especialista em Direito Processual pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REZENDE, Marcus Vinícius Drumond. Abolição: Uma análise jurídica e política do fim da escravidão no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38414/abolicao-uma-analise-juridica-e-politica-do-fim-da-escravidao-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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