Resumo: O presente artigo pretende responder ao singelo questionamento posto no título: no julgamento de mérito da repercussão geral, está o STF adstrito ao leading case em que houve a deliberação pelo seu reconhecimento? Ou, pelo contrário, estaria livre para decidir a questão nos autos de recurso extraordinário diverso daquele no qual foi admitida a repercussão geral? A interrogação, dada sua relativa simplicidade e objetividade, é apenas o mote para se discorrer sobre esse novo instituto, erigido a requisito específico do recurso extraordinário, situando-o no cenário processual brasileiro.
Palavras-chave: repercussão geral, recurso extraordinário, abstrativização, litigiosidade em massa.
1. Introdução.
É uma preocupação de nosso tempo a racionalização processual, o que envolve a celeridade e, de modo geral, a eficiência da tutela jurisdicional. Com a Constituição de 88, deu-se maior amplitude à admissibilidade aos Tribunais Superiores, em nome do “acesso à justiça”. Contudo, não se ponderou acerca do impacto econômico e da eficiência das cortes a partir desta abertura de instância[1]. Urgia, portanto, aproximar o processo da realidade brasileira, tendo em vista que, ao lado do acesso à justiça, há o princípio da duração razoável do processo.
Nessa linha, apresenta-se o sistema recursal brasileiro. Além da demora excessiva dos julgamentos, é notória a utilização desvirtuada de suas funções pelos litigantes, que interpõem recursos carentes de prognóstico de reversão efetiva dos julgados, ademais de puramente procrastinatórios[2]. O contexto demanda reformas no sistema recursal, de modo a imprimir-lhe celeridade e efetividade, o que repercutiria, inclusive, nas expectativas dos jurisdicionados. Vale dizer, a efetividade do processo serviria de estímulo ao correto comportamento dos litigantes, seja antes do ajuizamento de ações (incentivando acordos, p. ex.), seja anteriormente à interposição dos recursos[3].
Por outro lado, a falta de precedentes claros dos Tribunais Superiores dificulta o comportamento dos próprios julgadores. A uniformização jurisprudencial propiciaria menos recursos repetitivos, acelerando o trâmite dos processos e evitando discussões que já tenham sido enfrentadas pelo STF.
Tudo somado precipita no ambiente atual da litigiosidade em massa ou de alta intensidade. Esta se refere a direitos individuais homogêneos que ensejam à propositura de ações individuais repetitivas ou em série, que possuem pretensões isomórficas, sobrelevando questões comuns (jurídicas e/ou fáticas) para a resolução da causa[4]. O tratamento das demandas seriais aos moldes das demandas individuais gera, como perceptível, inúmeros problemas: abarrotamento dos juízos com causas idênticas ou similares, com possível contraste nas decisões proferidas em umas e outras, em prejuízo à isonomia.
Ora, quanto exposto evidencia a necessidade de criar-se uma dogmática processual adequada para lidar com a litigiosidade de massa[5], ao tempo em que serve de estímulo ao comportamento e às expectativas da sociedade, desincentivando as contendas. É nesta tessitura que surgiu ferramenta expressiva para o trato destes problemas: a repercussão geral (art. 102, § 3º, CF/88).
2. A repercussão geral e a abstrativização do recurso extraordinário.
A técnica da repercussão geral foi inserida, no ordenamento nacional, para, além de controlar o acesso ao STF, dimensionar a litigiosidade das denominadas causas seriais. Ela se encaixa no perfil técnico das “causas piloto” ou “processos teste”, no qual, para resolução das demandas em série, são selecionadas uma ou algumas causas pela similitude na sua tipicidade, a fim de que sejam julgadas inicialmente e a respectiva solução permita a resolução célere de todas as demais causas paralelas[6].
Com esta ferramenta de pinçamento, adotada pelo instituto da repercussão geral, o Tribunal Superior não julga mais todos os recursos que lhe forem dirigidos, mas sim o tema (tese) que for abordado nos recursos representativos[7]. O tratamento dos casos como standards ou temas permite a libertação do paradigma subjetivo, sobressaindo, da aparência de um processo de partes, não o caso em si mesmo, que seria apenas um pretexto para atuação da Corte Superior, mas o seu tema.
Haveria assim a objetivação ou abstrativização do recurso extraordinário, defendida pelo Min. do STF Gilmar Mendes. Confira-se, abaixo, seu posicionamento.
Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa do interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. (...) nas palavras do Chief Justice Vinson, “para permanecer efetiva, a suprema corte deve continuar a decidir apenas os casos que contenham questões cuja resolução haverá de ter importância imediata para além das situações particulares e das partes envolvidas” (...). (STF, MC em RE 519.394/PB, DJ 19.12.2006, rel. Min. Gilmar Mendes)
Deste modo, com a repercussão geral transformando o processo em algo mais objetivo, a questão constitucional que chega ao STF, por força do art. 102, III da CF/88, deixa de importar apenas à individualidade das partes, como passa ou passava no controle difuso de constitucionalidade, para conter uma discussão geral, que transcende os interesses subjetivos da causa. Consolida-se, pois, o papel do recurso extraordinário, como instrumento de defesa da ordem objetiva, e o STF, como Guardião da Constituição, vez que funciona também como instância recursal[8].
Por outro lado, sobressaindo a Corte Suprema não como mera instância recursal, evita-se que determinada matéria idêntica ou similar (tema) seja decidida mais de uma vez por aquela. Permite-se, assim, com esta única apreciação, a uniformização da interpretação constitucional, da jurisprudência, eliminando, por outro lado, o acúmulo de trabalho. Ao não reconhecer a existência de repercussão geral, a decisão se estenderá para todos os recursos com fundamento em idêntica controvérsia (art. 543-A, § 5º e art. 543-B, § 2º, do CPC).
Ora, em regra, o controle difuso de constitucionalidade tem efeito inter partes, diferentemente do que passa no controle concentrado. No entanto, apesar de o recurso extraordinário não ter efeito erga omnes, os efeitos do julgamento proferido na “causa piloto” serão comuns às demandas paralelas. Além de, como dito, a decisão pela negativa de repercussão geral vincular as demais causas similares, o julgamento do mérito do leading case afeta os processos repetitivos, tanto que as decisões dos tribunais contrárias ao entendimento firmado pelo STF deverão sofrer retratação. Eis mais um traço da objetivação do controle de constitucionalidade difuso.
Pois bem. Antes de passar a conclusão, que apresentará a resposta ao questionamento que ensejou esta exposição, cumpre consignar o seguinte. A prescrição do requisito da repercussão geral para interposição de RE pelo recorrente demanda que este demonstre o binômio da relevância e da transcendência da questão constitucional discutida[9]. Isto é, esta tem de contribuir para a persecução da unidade do Direito no Estado Constitucional brasileiro, apresentando soluções para problemas de ordem constitucional. Nessa linha, a imposição do referido binômio configura exigência de que a questão a ser apreciada pelo STF possa irradiar seus efeitos, produzir externalidades[10].
Estas externalidades, que afetam o comportamento da sociedade de modo geral, contribuem para a racionalização do processo, tornando-o mais célere, com a economia dos atos processuais. Isto porque a repercussão geral, que possibilita a extensão das externalidades das decisões emanadas pelo STF, além de atuar sobre o comportamento jurisdicional (dos julgadores), serve tanto
como filtro recursal, atuando no comportamento processual (das partes), como também preventivamente, atuando antes mesmo da instauração dos litígios, servindo como paradigma para o comportamento social, como uma espécie de filtro de demandas.[11]
Portanto, este mecanismo de pré-triagem, a repercussão geral, contribui para a conformação de um ambiente institucional estável, reduzindo a aleatoriedade dos pronunciamentos judiciais e da interposição de recursos. É evidente, pois, a objetivação do controle incidental de constitucionalidade, com sua aproximação do controle concentrado, o que é indicado principalmente caráter geral da decisão do STF e seus efeitos vinculantes.
3. Conclusão.
O contexto atual é de abstrativização do recurso extraordinário com a introdução do mecanismo da repercussão geral. Sendo assim, devendo a questão constitucional discutida extravasar o quadro fático da lide individual, sobressaindo o tema (tese), e não o caso em si mesmo, não há necessidade de aquela questão ser decidida no mesmo recurso em que foi apreciada a existência de repercussão geral. Pois que a lide selecionada é apenas um pretexto para que o STF se manifeste sobre a temática.
Neste sentido, posiciona-se a jurisprudência do STF (RE nº 500.171/GO, 571.572/BA e 377.457/PR). Vale dizer, a Corte Suprema entende não estar vinculada ao leading case em que ocorreu a deliberação afirmativa da repercussão geral, podendo decidir o mérito em outra causa equivalente.
4. Referências bibliográficas.
CHAVES, Charley Teixeira. Repercussão Geral: a objetivação do recurso extraordinário. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 15, jul. 2010. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/35736>. Acesso em: 8 fev. 2011.
THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão no recurso extraordinário. Revista de Processo São Paulo, n. 177, p. 9-45, nov.2009.
TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. As recentes alterações legislativas sobre os recursos aos Tribunais Superiores: a repercussão geral e os processos repetitivos sob a ótica da law and economics. Revista de Processo São Paulo, n. 178, p. 153-179, dez.2009.
[1] TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. As recentes alterações legislativas sobre os recursos aos Tribunais Superiores: a repercussão geral e os processos repetitivos sob a ótica da law and economics. Revista de Processo São Paulo, n. 178, p. 153-179, dez.2009, p. 155.
[2] Idem, ibidem, p. 156.
[3] Idem, ibidem.
[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Litigiosidade em massa e repercussão no recurso extraordinário. Revista de Processo São Paulo, n. 177, p. 9-45, nov.2009, p. 9-11.
[5] Idem, ibidem.
[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto et al, op. cit., p. 22.
[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto et al, op. cit., p. 23.
[8] Nesse sentido CHAVES, Charley Teixeira. Repercussão Geral: a objetivação do recurso extraordinário. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 15, jul. 2010, p. 280. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/35736>. Acesso em: 8 fev. 2011.
[9] TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth, op. cit., p. 169.
[10] Idem, ibidem, p. 170.
[11] Idem, ibidem, p 173.
Bacharel em Direito. Assessora jurídica no Tribunal Regional Federal 5ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AQUINO, Marcela Araruna de. No julgamento de mérito de repercussão geral, está o STF adstrito ao leading case em que houve a deliberação pelo seu reconhecimento? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38424/no-julgamento-de-merito-de-repercussao-geral-esta-o-stf-adstrito-ao-leading-case-em-que-houve-a-deliberacao-pelo-seu-reconhecimento. Acesso em: 22 nov 2024.
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