Resumo: Com a globalização, faz-se mister a compreensão do princípio da circulação de pessoas a nível internacional. Contudo, deve-se entender esse fenômeno também pela ótica da regionalização experimentada por muitos países do mundo, no qual a União Européia é vanguardista. Suas fronteiras internas são imperceptíveis aos cidadãos europeus. Diversa é a percepção desse princípio no Mercado Comum do Sul – Mercosul. Desde a sua criação, por meio do Tratado de Assunção de 26 de março de 1991, o bloco americano somente é sentido em seu viés econômico e político, pouco se discute a influência do bloco em matérias como trânsito de pessoas, migração ou residência. Entretanto, o próprio Tratado de Assunção define como objetivo final do bloco a criação de um mercado comum, que somente será alcançado por meio da livre circulação de fatores produtivos, na qual o homem deve ser considerado como fator. Por esse motivo, existem diversos protocolos, tratados e acordos (a exemplo do Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile) regulando a livre circulação de pessoas, além de outros que tratam dos efeitos reflexos desse movimento, como a necessidade de harmonização das normas de seguridade social e trabalhistas.
PALAVRAS CHAVES: CIRCULAÇÃO DE PESSOAS; MERCOSUL.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Noções gerais e conceituais da circulação de pessoas; 3. A circulação de pessoas no Mercosul; 4. Aspectos sociolaborais; 5. Simples trânsito, migração, residência e a questão da seguridade social; 6. Conclusão.
1. Introdução
O Mercado Comum do Sul – Mercosul já é uma realidade. Desde a sua criação, com o Tratado de Assunção de 1991, é possível sentir seus efeitos, principalmente nas esferas econômica e política. Sem embargo, para que o objetivo primordial instituído no artigo primeiro do referido tratado, ou seja, a criação de um mercado comum, seja alcançado, é essencial a consolidação da livre circulação de pessoas dentro do bloco.
O artigo ora exposto objetiva estudar e, por conseguinte, divulgar, este aspecto do Mercosul - a circulação de pessoas -, importante, porém, pouco explorado pela comunidade acadêmica.
Como será demonstrado no trabalho, a circulação de pessoas no Mercosul encontra-se em fase de desenvolvimento, uma vez que seus Estados Membros priorizaram o viés econômico da Organização.
Analisa-se, portanto, os documentos internacionais já existentes no que se referem tanto à circulação de pessoas e o seu processo de ratificação pelos Estados Membros.
2. Aspectos gerais da circulação de pessoas
A globalização experimentada na atualidade faz com que as distâncias pareçam reduzir-se e os seres humanos possam se locomover mais facilmente pelo planeta. Entretanto, a circulação de pessoas existe desde tempos imemoriais. Sempre existiram indivíduos saindo do ambiente em que viviam para outro mais distante, em busca de melhores condições socioeconômicas, no intuito de reencontrar pessoas, fugir de perseguições ou até mesmo pela simples curiosidade de conhecer lugares novos e distintos dos que sempre conviveu.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (Resolução nº217 – Assembléia Geral da ONU), em seu artigo 13, parágrafo 1º, proclama que: “Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada estado”, reconhecendo assim o direito a livre circulação. Por conseguinte, o parágrafo 2º vai além, afirmando que: “Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o seu próprio, e a este regressar”. De acordo com a professora Thelma Thais Cavarzere[1], essa menção ao parágrafo segundo é o estabelecimento solene do princípio da livre circulação internacional de pessoas.
Ademais da declaração supracitada, o princípio foi consolidado pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que prevê no artigo 12 que:
Artigo 12.
12 (1). Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência;
12 (2). Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país;
12 (4). Ninguém poderá ser privado do direito de entrar em seu próprio país.
Na esfera do continente americano, foco deste trabalho, por ser onde se localizam geograficamente os Estados que integram o Mercosul, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) expressamente prevê o direito de circulação e residência no artigo 22, muito similar ao explicitado nos documentos anteriores, a ver:
Artigo 22.
22 (1). Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais;
22 (2). Toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio;
22 (5) Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional nem ser privado do direito de nele entrar.
E no âmbito do Mercosul os cinco países membros prevêem o direito a livre circulação em suas Constituições Nacionais, nos capítulos referentes aos direitos e garantias fundamentais. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estatui a livre circulação de pessoas no art.5º, inciso XV[2]; na Argentina, a previsão está no art. 14[3]; no Uruguai no art. 37[4]; no Paraguai no art. 41[5]; e na Venezuela no art.50[6].
Da mesma maneira, os Países Associados, Bolívia e Chile, prevêem o princípio da livre circulação nos artigos 7º [7] [8] de cada uma de suas Constituições[9].
Entretanto, como qualquer outro direito, o direito de ir e vir, regulado pelo princípio da livre circulação internacional de pessoas, apesar de previsto na Constituição de grande parte dos países democráticos, e em instrumentos internacionais ratificados pela maioria dos Estados do mundo, não é absoluto.
Os Estados são soberanos no controle de suas fronteiras. Esta é uma prerrogativa reconhecida pelo Direito Internacional e que entra em conflito com o direito à livre circulação internacional de pessoas. Logo, um determinado país pode denegar a entrada de estrangeiros em seu território. Contudo, essa decisão não pode ser arbitrária. O pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos prevê os motivos no mesmo artigo 12:
Artigo 12.
12 (3) Os direitos supracitados não poderão constituir objeto de restrição, a menos que estejam previstas em lei e no intuito de proteger a segurança nacional e a ordem, a saúde ou a moral públicas, bem como os direitos e liberdades das demais pessoas, e que sejam compatíveis com os outros direitos reconhecidos no presente pacto.
Estas seriam as causas legítimas e, por conseguinte, legais. O que ocorre é que muitas vezes os Estados mascaram os reais motivos da denegação do imigrante, alegando um motivo de ordem ou de saúde pública, quando na verdade o que se quer evitar é, em sua grande maioria, a entrada maciça de imigrantes advindos de países mais pobres, que pode gerar aumento nos índices de criminalidade e desemprego.
O controle fronteiriço é exercido através da exigência de passaporte e visto. O professor italiano Egidio Reale[10], citado por Thelma Thais Cavarzere, define passaporte como: “o documento emitido pelas autoridades públicas competentes que certifica a identidade e a nacionalidade do titular, permitindo-lhe viajar sobre o território do Estado que o concedeu, ou dirigir-se a outro Estado”. A emissão de passaportes é competência exclusiva dos Estados. Sem o documento, é impossível entrar no território da maioria dos países do mundo (exceção feita a entrada em países parte de regiões de livre trânsito como a União Européia e o Mercado Comum do Sul – Mercosul, quando já dentro delas).
Já o visto é uma anotação feita pelas autoridades diplomáticas, consulares ou administrativas, no passaporte do viajante. Seria uma espécie de pré-aprovação de sua entrada no país emissor do visto. Entretanto, apesar de designar autorização dada pelo Estado ao estrangeiro, domiciliado ou não, de entrada em seu território (visto de entrada), ou ao nacional ou estrangeiro residente de sair (visto de saída), algumas vezes o possuidor do passaporte com visto não consegue a entrada ou saída do país.
As formalidades exigidas, tanto para a emissão do passaporte quanto para a obtenção do visto são, em alguns países, extremamente desgastantes e onerosas, visando dificultar e até mesmo desestimular o direito internacional a livre circulação internacional de pessoas de maneira indireta. Não se proíbe a entrada ou saída do país, mas os procedimentos para esse fim se tornam tão burocráticos que, na prática, a proibição acaba acontecendo.
3. a Circulação de pessoas no Mercosul
Os processos de integração, em geral, surgem com objetivos econômicos, uma vez que estão inseridos em uma estrutura internacional que os incentiva. Com o Mercosul não foi diferente.
Dentre as etapas de integração regional, a Zona de Livre Comércio é o estágio inicial, caracterizada pela livre circulação de bens. Posteriormente, há a União Aduaneira, caracterizada pelo acréscimo da Tarifa Externa Comum – TEC – às relações econômicas internacionais dos países signatários. A próxima etapa, o Mercado Comum, adiciona a este quadro a livre movimentação de fatores.
O Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, que instituiu o Mercosul, tem como objetivo final o alcance do Mercado Comum, a ser consolidado no ano de 1994. Todavia, no panorama atual, o Mercosul se posiciona em fase híbrida, uma vez que ainda não completou a União Aduaneira, mas já apresenta características de Mercado Comum.
Para que se alcance o objetivo consagrado pelo Tratado, ou seja, o Mercado Comum, primeiro se faz necessário o término das exceções a TEC, que possibilitará o alcance pleno do status de União Aduaneira. Posteriormente, e com vista à consecução do Mercado Comum, é fundamental consolidar a livre movimentação de fatores ao quadro atual, processo que consiste nas já citadas “Quatro liberdades”: livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas.
O Tratado de Assunção menciona a circulação de pessoas em seu artigo 1°:
Artigo 1: Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul” (MERCOSUL).
Este Mercado Comum implica: A livre circulação de bens serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente. (grifos nossos)
Segundo Faria[11] citado por Augusto Jaeger Júnior, “A expressão ‘fatores produtivos’, empregada no artigo 1°, do Tratado, compreende logicamente dois grandes elementos: trabalho e capital. De ambos deriva um terceiro, que é o estabelecimento, como unidade de fusão orgânica de um e de outro. Pode-se também falar em livre circulação de pessoas, como englobando trabalhadores e empresas, e livre circulação de capitais, referente apenas aos investimentos materiais”. Ruiz Díaz Labrano[12], também citado pelo autor, ressalva que o Tratado de Assunção “Não faz, portanto, uma menção senão indireta à livre circulação de pessoas salvo pelo fato de que hoje se interpreta e considera o homem como fator produtivo”. Revela-se, desse modo, o caráter periférico da dimensão social no Mercosul.
4. Aspectos sociolaborais
Devido a essa carência de abordagem social, os Ministros do Trabalho e as instituições sociais dos países membros se articularam em um movimento que culminou, em 9 de maio de 1991, na Declaração de Montevidéu. Por meio dessa declaração conjunta, eles objetivavam chamar atenção para os aspectos sociais e laborais da integração, e para a criação de um órgão responsável pela discussão e pelo desenvolvimento de políticas relacionadas a estas temáticas. A principal conseqüência de tal movimento foi o surgimento do Subgrupo de Trabalho N° 11 (SGT 11), cujo tema era “Assuntos Laborais” (Resolução Nº 11/91 do GMC). O SGT 11 era um dos órgãos de auxílio do GMC (Grupo Mercado Comum). Entretanto, não conseguiu alcançar resultados concretos.
O tema social passou a ser pauta do Mercosul a partir da assinatura do Protocolo de Ouro Preto, em 1994, uma vez que este criou diversos foros negociadores que discutiam os aspectos laborais e sociais. Esses foros sociolaborais possuem a competência de estudar esses temas, bem como de propor políticas e projetos para a melhoria das condições dos cidadãos e trabalhadores do Mercosul perante o Grupo Mercado Comum (GMC) ou, conforme o caso, o Conselho Mercado Comum (CMC). Dentre eles destacam-se:
1) Reunião de Ministros do Trabalho: foi instituída antes do Protocolo de Ouro Preto (POP) pela Decisão do CMC N° 5/91. A Reunião visa a discussão dos componentes sociolaborais do Mercosul no processo de integração do bloco, enfatizando a questão do trabalho e estabelecendo diretrizes para sua adequada abordagem. Eles se articulam para, além do processo de integração econômica e comercial, avançar em acordos nas áreas das relações trabalhistas, de seguridade social e migrações. Ademais, buscam garantir a igualdade de tratamento e proteção aos trabalhadores migrantes.
2) Subgrupo de Trabalho N° 10 (SGT 10): com o insucesso do SGT 11, depois da assinatura do POP e seu redimensionamento promovido na estrutura do Mercosul, o GMC adota a Resolução N° 20/95 que criou o SGT 10. Este é constituído por três Comissões Temáticas (CT): CT I “Relações de Trabalho”; CT II “Emprego, Migrações e Formação Profissional”, que conta também com o grupo Ad Hoc de Migrações laborais; e a CT III “Saúde e Segurança no Trabalho, Inspeção do Trabalho e Seguridade Social”. O SGT 10 é organizado de forma tripartite, servindo de amplo espaço de diálogo entre os governos, empregadores e trabalhadores em torno dos componentes sociolaborais da integração. Este grupo foi o responsável por importantes conquistas como: a Declaração Sociolaboral do Mercosul, o Acordo Multilateral de Seguridade Social do Mercosul e seu Regulamento Administrativo, os Nomencladores Nacionais (documentos que compendiam as legislações trabalhistas dos países membros e servem de base aos estudos comparados), o Observatório do Mercado de Trabalho do Mercosul, o Documento Mercosul Saúde e Segurança no Trabalho, o Repertório de Recomendações Práticas sobre a Formação Profissional e o Glossário de Formação Profissional, entre outras.
3) Comissão Sociolaboral do Mercosul: foi instituída pela Declaração Sociolaboral do MERCOSUL que, segundo afirma em seu artigo 20, é um “ (...) órgão tripartite, auxiliar do Grupo Mercado Comum, que terá um caráter promocional e não sancionador, dotado de instâncias nacionais e regionais, com o objetivo de fomentar e acompanhar a aplicação do instrumento. (...)”. Esse ato reúne os direitos e compromissos fundamentais do trabalhador, que são reconhecidos pelos Estados signatários.
4) Foro Consultivo Econômico e Social (FCES): o Protocolo de Ouro Preto estabelece em seu artigo 28 que "o Foro Consultivo Econômico Social é o órgão de representação dos setores econômicos e sociais e será integrado por igual número de representantes de cada Estado Parte" e em seu artigo 29 definiu que "o Foro Consultivo Econômico Social terá função consultiva e manifestar-se-á mediante Recomendações ao Grupo Mercado Comum". É da competência do FCES acompanhar, analisar e avaliar o impacto econômico e social derivado das políticas destinadas ao processo de integração e as diversas fases de sua implementação, seja a nível setorial, nacional ou regional. O Foro pode propor normas e políticas econômicas e sociais em matéria de integração e contribuir para uma maior participação da sociedade no processo de integração regional. Promove-se, desse modo, a integração do Mercosul, ampliando sua dimensão econômica e social. É a porta de acesso possível da sociedade civil aos membros do GMC. Contudo, este é um instrumento pouco utilizado, uma vez que não existe a cultura do cidadão “mercosulino” interessado nas questões da integração regional.
5) Projeto “Dimensão Sociolaboral do Mercosul”: surge a partir de uma solicitação feita pelo Mercosul junto à Comunidade Européia em 1999. Em 2000, a Comunidade Européia incumbiu ao Comitê Econômico Social Europeu (CES) a missão de elaborar uma proposta de identificação com a finalidade de concretizar as ações de cooperação e de definir o quadro orçamentário do Projeto. Mas, apenas em 07 de julho de 2004 foi firmado o Convênio de Financiamento Mercosul/União Européia para o Projeto “Dimensão Social”, com o período de vinte e quatro meses para a execução. Esse Projeto objetiva contribuir para o desenvolvimento da dimensão sociolaboral do Mercosul, por meio do fortalecimento das instâncias envolvidas no diálogo socioeconômico entre os diferentes atores políticos (SGT 10 e GMC), os setores socioeconômicos representados pelo FCES e a instância tripartite (CSL).
Apesar de toda discussão sobre a temática social, o que existe em matéria concreta sobre circulação de pessoas dentro do espaço dos países membros do Mercosul ainda é um movimento tímido, comparando-se às conquistas nas matérias econômicas.
5. Simples trânsito, Migração e Residência
Atualmente, foram instituídas algumas medidas de facilitação do trânsito de pessoas entre os países signatários. Para transladar-se de um país para outro, apenas o documento de identidade ou passaporte vigente é suficiente, conforme Resolução do GMC N° 75/96 (Documentos de cada Estado Parte que habilitam o trânsito de pessoas no Mercosul), que lista os tipos de identidade que podem servir para este fim.
Os passaportes dos cidadãos do Mercosul começaram a ser impressos de forma padronizada, com a adoção da cor azul escuro e a expressão “Mercosul” carimbada no topo da capa, na língua oficial do país emissor. Este passaporte começou a ser emitido no Brasil a partir de 2006, primeiramente, em Brasília (DF) e Goiânia (GO). Os novos documentos seguem as normas da Organização de Aviação Civil Internacional e possuem dezesseis itens de segurança, em contraposição ao antigo passaporte brasileiro que possuía sete. Essa nova medida facilitou o intercâmbio de informações entre os consulados dos países membros do Mercosul.
A Decisão N°35/00, “Mecanismos de Cooperação Consular entre os Países do Mercosul, Bolívia e Chile” permite, por exemplo, que um cidadão brasileiro receba atendimento consular em postos dos países nos lugares onde o Itamaraty não estiver representado.
Existem outros acordos que abordam a temática da livre circulação de pessoas. A Decisão N° 37/04 dispõe sobre “Acordo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia e a República do Chile” que, contudo, encontra-se pendente de ratificação pelos Estados signatários. E a Decisão N? 17/05, que acorda sobre o “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul”, documento ratificado apenas pela Argentina e Paraguai, encontrando-se pendente de ratificação no Brasil e no Uruguai.
Contudo, nenhum acordo pode ser considerado mais importante para o avanço da circulação de pessoas e o combate à migração clandestina nos países do Cone Sul, que o “Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile”, celebrado na XXIII Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília, no dia 6 de dezembro de 2002. No dia 20 de maio de 2004, o Congresso Nacional Brasileiro ratificou o acordo, Decreto Legislativo N° 925/2005, concedendo, deste modo, o direito à residência e ao trabalho para os cidadãos de todos os Estados Partes, sem outro requisito além da nacionalidade, como é expresso no artigo 1°, que trata do objetivo:
Artigo 1°: Os nacionais de um Estado Parte que desejem residir no território de outro Estado Parte poderão obter residência legal neste último, conforme os termos deste Acordo, mediante a comprovação de sua nacionalidade e apresentação dos requisitos previsto no artigo 4º do presente.
Por meio desse acordo, pessoas natas ou naturalizadas há pelo menos cinco anos (artigo 3°) possuem o processo simplificado na obtenção de “residência temporária” de dois anos. É exigido passaporte válido, certidão de nascimento, certidão negativa de antecedentes judiciais e/ou penais e/ou policiais, declaração de ausência de antecedentes internacionais penais ou policiais e dependendo do país, certificado médico de autoridade migratória (artigo 4°).
O artigo 5° prevê o processo de transformação da “residência temporária” em “residência permanente”, mediante a apresentação, perante a autoridade migratória do país de recepção, da mera “comprovação de meios de vida lícitos que permitam a subsistência do peticionante e de seu grupo familiar de convívio”, noventa dias antes do decurso do prazo da primeira concessão.
Os países signatários se comprometem, também, por meio do acordo, a fornecer suas respectivas regulamentações sobre imigração, “assim como, no caso de elaboração, suas últimas modificações garantirão aos cidadãos de outros Estados Partes que tiverem obtido sua residência, um tratamento igualitário quanto a direitos civis, de acordo com as respectivas legislações internas” (artigo 7°).
É importante destacar, que o artigo 8° garante aos imigrantes o direito de exercer qualquer atividade, tanto por conta própria, como por conta de terceiros, nas mesmas condições em que os nacionais do país de recepção, de acordo com as normas legais de cada país.
O instrumento consagra em seu artigo 9° o direito dos imigrantes e dos membros de suas famílias. É de fundamental relevância a descrição do artigo sobre a igualdade de direitos civis:
Artigo 9°.Gozarão dos mesmos direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicas dos nacionais do país de recepção, em particular o direito a trabalhar e exercer toda atividade lícita, nas condições que dispõem as leis; peticionar às autoridades; entrar, permanecer, transitar e sair do território das Partes; associar-se para fins lícitos e professar livremente seu culto, conforme as leis que regulamentam seu exercício.
Observa-se uma preocupação em garantir uma igualdade de tratamento com os nacionais, que alcança o campo de aplicação da legislação trabalhista especialmente em matéria de remuneração, condições de trabalho e seguro social. Esse artigo destaca, ainda, temas como a reunião familiar; o compromisso em matéria previdenciária; o direito de transferir recursos livremente ao seu país de origem em conformidade com as normas e legislação interna de cada uma das Partes; e o direito dos filhos dos imigrantes a ter um nome, ao registro de seu nascimento e a ter uma nacionalidade, bem como ao acesso à educação em condições de igualdade com os nacionais.
O Acordo de Residência dispõe, ainda, sobre mecanismos de cooperação envolvendo organismos de inspeção migratória e trabalhista dos paises signatários e outras medidas de controle (artigo 10°). Envolve-se, desse modo, de uma forma mais completa, a temática da livre circulação de pessoas em todos seus âmbitos. E se, por ventura, haja conflitos, a interpretação e a aplicação acontecerão de forma mais benéfica aos imigrantes (artigo 11°). Atualmente, para o Brasil, o Acordo sobre Residência encontra-se em vigor somente com o Uruguai e Argentina, consoante afirma o Ministério de Relações Exteriores brasileiro[13].
Essa decisão possui uma íntima ligação com o “Acordo sobre regularização migratória interna de cidadãos do Mercosul, Bolívia e Chile”, decreto legislativo N° 928/2005. Este último trata da simplificação da tramitação migratória de nacionais que se encontrem em um território de outro Estado Parte, no sentido de permitir sua regularização sem a necessidade de regressar a seu país de origem. Este acordo ainda depende de ratificação dos governos da Argentina, do Paraguai e da Bolívia.
Esses instrumentos abrem uma nova expectativa para o bloco, uma vez que buscam uma cooperação nas áreas política, social e laboral, além dos aspectos econômicos já explorados. Ademais, simplificam o processo migratório para o Brasil de imigrantes provenientes dos países signatários. O Estatuto do Estrangeiro (Lei N° 6815 de 19 de agosto de 1980), diversamente, impõe uma série de exigências para a entrada de imigrantes. Impõe-se, primeiramente, a apresentação de visto, que não é necessário para o cidadãos nacionais dos países do Mercosul. O visto pode ser temporário ou permanente. O temporário é dado para estrangeiros que obtenham algumas das pretensões elencadas no artigo 13°, e possui a duração de até um ano ou o tempo correspondente à duração da missão, do contrato, ou da prestação de serviços, comprovada perante a autoridade consular (redação dada pela Lei N° 6964, de 09/12/81). Este visto pode se tornar permanente para aquele que pretenda se fixar definitivamente no Brasil (artigo 16°), com concessão condicionada ao exercício de atividade certa e à fixação em região determinada do território nacional, por prazo não-superior a cinco anos (artigo 18°).
De outro modo, se o Acordo de Residência, em seus artigos 8° e 9°, defende o direito de exercer qualquer atividade remunerada, tanto por conta própria, como por conta de terceiros (nas mesmas condições dos nacionais do país de recepção, de acordo com as normas legais de cada país), o Estatuto dos Estrangeiros veda, no Título X “Dos Direitos e Deveres do Estrangeiro”, a partir do artigo 97, o exercício de atividade remunerada sem o visto que a permite. O artigo 98 do mencionado Estatuto, ainda estabelece que:
Artigo 98: Ao estrangeiro que se encontra no Brasil ao amparo de visto de turista, de trânsito ou temporário de que trata o artigo 13, item IV, bem como aos dependentes de titulares de quaisquer vistos temporários é vedado o exercício de atividade remunerada. Ao titular de visto temporário de que trata o artigo 13, item VI, é vedado o exercício de atividade remunerada por fonte brasileira.
É permitido o trabalho, nos casos em que o estrangeiro é admitido na condição de temporário, sob regime de contrato, só podendo exercer atividade junto à entidade pela qual foi contratado, na oportunidade da concessão do visto - salvo autorização expressa do Ministério da Justiça e ouvido o Ministério do Trabalho (artigo 100). O Estatuto também configura como objetivo primordial da imigração, de acordo com o artigo 16, “propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos”.
Existem outros impedimentos ao livre direito de circular dos estrangeiros como determinam os artigos 51 e 52:
Artigo 51: O estrangeiro registrado como permanente, que se ausentar do Brasil, poderá regressar independentemente de visto se o fizer dentro de dois anos;
Artigo 52: O estrangeiro registrado como temporário, que se ausentar do Brasil, poderá regressar independentemente de novo visto, se o fizer dentro do prazo de validade de sua estada no território nacional.
Outra questão de fundamental importância para uma real implementação da área de livre circulação é a seguridade social. Primeiro, foi celebrado o “Acordo Multilateral de Seguridade Social do Mercosul”, Decisão N°35/04. Este acordo começou a vigorar no dia 01 de junho de 2005, permitindo que os trabalhadores do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai pudessem se beneficiar dos acordos internacionais de Previdência Social. A Secretaria de Políticas de Previdência Social estima que cerca de setecentos e trinta mil brasileiros sejam beneficiados com esse acordo. Outrossim, um trabalhador brasileiro que tenha contribuído com o sistema previdenciário paraguaio, por exemplo, ao se aposentar, poderá requerer os benefícios, naquele país, relativos ao tempo em que colaborou com o seu sistema previdenciário. Em síntese, os beneficiários têm aposentadoria paga pelos dois países proporcionalmente ao tempo contribuído: um período pelo tempo do país de origem e o outro pelo do país em que a pessoa exerceu alguma atividade profissional. Caso o trabalhador se desloque para outro país a trabalho, por tempo determinado, é concedido o Certificado de Deslocamento Temporário, que permite ao cidadão continuar contribuindo para a previdência do país de origem.
O Ministério da Previdência Social do Brasil noticiou, em 01 de junho de 2006, que “No dia em que o Acordo de Previdência Social do Mercosul completou um ano, foi concedido o primeiro benefício previdenciário, oriundo de um acordo com os países membros do Mercado Comum do Sul, para um paraguaio. Sebastian Leyte, sessenta e oito anos, conseguiu sua aposentadoria porque o Acordo permitiu que ele somasse os onze anos de contribuição previdenciária feitos na Argentina, com os vinte e dois anos de contribuição no Paraguai. Se o Acordo não existisse ele teria que continuar a contribuir por mais alguns anos para algum dos dois sistemas previdenciários. Antes da entrada em vigor do Acordo do Mercosul, o Paraguai não possuía nenhum acordo de seguridade social com Brasil, Argentina e Uruguai.”
Segundo o site oficial do Mercosul, o Acordo de Previdência Social do Mercosul foi derrogado pela Decisão N° 16/06 (Acordo de Cooperação em Matéria de Seguridade Social entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia, a República do Chile, a República da Colômbia, a República do Equador, a República do Peru, a República Bolivariana da Venezuela). Este acordo ainda está pendente de ratificação por todos os países signatários.
6. Conclusão
O Mercosul, com os documentos demonstrados anteriormente, a exemplo do Acordo de Residência, tem demonstrado que não possui somente um viés econômico, mas também social, ainda que incipiente. Logo, a consolidação da circulação internacional de pessoas no bloco ainda se faz necessária para eliminar diversos problemas, como o tráfico de mão-de-obra ilegal boliviana para a indústria têxtil brasileira, especialmente para confecções localizadas no estado de São Paulo. Por conseguinte, e de extrema importância, é a ratificação, para vigência mais breve possível, dos protocolos e acordos sociais já firmados.
Por fim, realizando-se essas medidas, haverá uma real efetivação do princípio da livre circulação de pessoas no Mercosul. A partir daí, os cidadãos dos países do Cone Sul poderão, finalmente, sentir que possuem uma identidade não somente nacional, mas também “mercosulina”, imprescindível para o posterior logro do objetivo previsto no artigo 1º do Tratado de Assunção, o Mercado Comum.
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SANT’ANA, Marcílio Ribeiro. Diálogo social e harmonização de políticas públicas de trabalho na América Latina e no Caribe: as experiências do Mercosul e da Conferência Interamericana de Ministros do Trabalho da Organização do Estados Americanos (OEA)1. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/flacso/ribe.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2008.
SANTOS, João Paulo. O Brasil firma compromisso pela integração humana no MERCOSUL. Disponível em: <www.migrante.org.br/brasilfirmacompromisso_jun2004.doc>. Acesso em: 15 fev. 2008.
[1] CAVARZERE, Thelma Thais. Direito Internacional da Pessoa Humana: A circulação internacional de pessoas. Rio de Janeiro: Renovar, 1995
[2] “É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer, ou dele sair com seus bens”.
[3] “Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio; a saber: […] de entrar, permanecer, transitar y salir del territorio argentino […]”.
[4] “Es libre la entrada de toda persona en el territorio de la República, su permanencia en él y su salida con sus bienes, observando las leyes y salvo perjuicios de terceros”.
[5] “Todo paraguayo tienen derecho a residir en su Patria. Los habitantes pueden transitar
libremente por el territorio nacional, cambiar de domicilio o de residencia, ausentarse de la
República o volver a ella y, de acuerdo con la ley, incorporar sus bienes al país o sacarlos
de él. Las migraciones serán reglamentadas por la ley, con observancia de estos derechos”.
[6] “Toda persona puede transitar libremente y por cualquier medio por el territorio nacional, cambiar de domicilio y residencia, ausentarse de la República y volver, trasladar sus bienes y pertenencias en el país, traer sus bienes al país o sacarlos, sin más limitaciones que las establecidas por la ley”.
[7] “Toda persona tiene los siguientes derechos fundamentales, conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio: A ingresar, permanecer, transitar y salir del territorio nacional”.
[8] “Toda persona tiene derecho de residir y permanecer en cualquier lugar de la
República, trasladarse de uno a otro y entrar y salir de su territorio, a condición de que se
guarden las normas establecidas en la ley y salvo siempre el perjuicio de terceros”.
[9] A Constituição Boliviana a que se refere o texto é a de 1967, pois o país encontra-se em processo de elaboração de uma nova Constituição.
[10] REALE, Egidio. Le problème dês passeports. “Recueil des Cours de l’Académie de Droit Internacional de la Haye”. Paris, 63 (I), 1938.
[11] FARIA, Werter R. Experiências latino-americanas de integração. Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília, v. 1, n. 1. maio/ago. 1997.
[12]RUIZ DÍAZ LABRANO, Roberto. El Mercosur, marco juridico institucional, analisis y perspectivas de sus normas derivadas. Asunción: Intercontinental, 1993.
[13] Dados atualizados até fevereiro de 2008.
Advogada e graduada do curso de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVIM, Roberta Pires. A circulação de pessoas no Mercosul Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38782/a-circulacao-de-pessoas-no-mercosul. Acesso em: 22 nov 2024.
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