Palavras-chave: Hans Kelsen. Teoria pura do direito. Norma fundamental.
1 Introdução
O pensamento kelseniano destaca-se entre as doutrinas jurídico-filosóficas de sua época, inaugurando um novo paradigma de reflexão do Direito. Por essas e outras razões, revela-se imprescindível recuperar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, ponto fulcral no desenvolvimento da dogmática jurídica e marco essencial nas digressões zetéticas acerca do jurídico.
É justamente esse o escopo do presente trabalho, cujo objetivo principal é explanar as linhas fundamentais da norma fundamental de Hans Kelsen, analisando as lucubrações encetadas na obra mais conhecida do referido autor, a “Teoria Pura do Direito”, e apresentando algumas ponderações de críticos e estudiosos seus, objetivos específicos desse estudo.
2 A norma fundamental em Kelsen
As normas jurídicas afiguram-se, pois, como aquelas portadoras de um sentido objetivo de dever-ser, o qual é apurado em relação às demais normas, dotadas de um sentido subjetivo de dever-ser. Isso porque a sanção revela-se insuficiente para caracterizar a norma jurídica, dado que se poderia cogitar de uma norma oriunda de uma organização criminosa, igualmente sancionada, conquanto não seja jurídica.
Assim, tem-se que o fundamento de validade de uma norma jurídica é outra norma jurídica, constatação que nos leva a uma compreensão sistemática do Direito e que se corporifica no conceito de validade, definido por Kelsen como a pertinência de uma norma a um ordenamento jurídico, isto é, a um sistema de normas formalmente inter-relacionadas.
Ora, uma norma jurídica só o é em um sistema jurídico, vale dizer, quando derivada formalmente de outra norma jurídica que lhe seja superior de acordo com a hierarquia estabelecida pelo próprio sistema. Mas, então, qual o fundamento de validade do sistema? A pergunta assume grande relevância quando, com base no raciocínio inicial de Kelsen, nota-se que a fundamentação de uma norma em outra norma levaria a um regresso ao infinito, sendo sempre necessário recorrer-se a uma outra norma para fundamentar a norma hierarquicamente inferior.
Kelsen aduz então a existência de uma norma fundamental, norma esta situada acima do sistema jurídico e que prescreve a atribuição de validade a esse mesmo ordenamento. Trata-se de uma norma pressuposta, um verdadeiro a priori do raciocínio jurídico, eivada de caráter lógico-formal e responsável pelo fechamento da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. A coerência da pureza metodológica propugnada por Kelsen radica-se justamente no enclausuramento sistemático proporcionado pela norma fundamental, eis que, em um regresso ao infinito, ausente tal pressuposto de validade, inevitável seria recorrer a categorias sociológicas como o poder, ou metafísicas como o direito natural de molde a explicitar o fundamento de validade do sistema jurídico.
Uma “ordem” é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem. (KELSEN, 2009, p. 33).
Sobre a norma fundamental, leciona Machado:
A norma fundamental (grundnorm) é o pressuposto de validade objetivo. Trata-se de uma norma fictícia (no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se: Contradiz a realidade e a si mesma), pressuposta por um ato de pensamento, pelo intelecto, e não posta por um ato de vontade. É algo sem o que não se explica a ordem jurídica sob a perspectiva científica, e as explicações não passariam do aspecto teleológico (causal). Ela existe no ponto onde já não mais cabe indagação acerca da razão da validade. Por isso, “devemos obedecer ao pai da Constituição”. Então, ela representa o supremo fundamento de validade de todas as normas jurídicas que formam o ordenamento jurídico. (MACHADO, 2003, p. 8).
A norma fundamental é, pois, a manifestação mais evidente do objetivo precípuo da teoria do direito de Kelsen, vale dizer: “(...) desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto” (KELSEN, 2009, p. XI). Toda ciência tem seus limites metodológicos e o limite da ciência do Direito é dado pela norma fundamental. Além dela, não há possibilidade de investigação jurídica, e tudo o mais que se fizer será de índole sociológica ou metafísica. É o pressuposto de cognoscibilidade do Direito, é de onde toda reflexão jurídica parte e onde toda reflexão jurídica termina. A passagem a seguir elucida com clareza a posição ocupada pela grundnorm na Teoria Pura do Direito:
Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorético-gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição. A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é das normas, postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo desses atos como seu sentido objetivo. (KELSEN, 2005, p. 225-226).
Dessa forma, temos que o ordenamento jurídico assume para Kelsen a representação de uma pirâmide, em cujo topo encontra-se a Constituição, abaixo as leis gerais e mais abaixo os regulamentos, negócios jurídicos e sentenças. Acima dessa pirâmide (fora dela e fundamentando-a) situa-se a norma fundamental, pressuposto de validade do sistema. Cada patamar descido dessa pirâmide representa um ato de produção; de outra parte, cada patamar subido representa um ato de execução. Noutras palavras, para Kelsen, o sistema jurídico representa um todo formado por normas superiores e inferiores, sendo as primeiras produtoras das segundas e as segundas executivas das primeiras, ou, como afirma Bobbio: “devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica” (1995, p. 49).
Nisso reside, pois, a compreensão do Direito como um sistema dinâmico em Kelsen, isto é, como um ordenamento jurídico composto por normas hierarquicamente dispostas, consistente em atos formais de execução e produção. A compreensão de Direito como sistema estático, apresentada inicialmente neste artigo, é justamente aquela que se centra no estudo individualizado da norma como reguladora de condutas, ou seja, em sua estrutura e em seus elementos, os quais não deixam, no entanto de remeterem às demais normas, o que se percebe à luz dos conceitos ali utilizados, eminentemente relacionais, como o de sanção, resultando daí a propriedade do uso da palavra sistema para qualificar essa análise.
3 Conclusão
O estudo da norma fundamental de Hans Kelsen revela a grandiosa contribuição prestada por esse pensador para a estruturação de um estudo científico do fenômeno jurídico. Tal asserção é corroborada pela permanência de inúmeras categorias e noções por ele introduzidas em sua análise do Direito, com especial relevo para a observação escalonada e hierárquica do ordenamento jurídico e para o tratamento dispensado aos conceitos de validade e eficácia.
Tanto a nova hermenêutica constitucional, quanto as teorias da argumentação jurídica, outra coisa não visam senão conferir maior racionalidade e fundamentação ao processo de escolha da norma individual, o qual não pode mais ser negligenciado por uma ciência do Direito em uma era dos princípios.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. 184 p.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001. 288 p.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 427 p.
MACHADO, Sulamita Crespo Carrilho. O normativismo jurídico de Hans Kelsen: a norma jurídica como objeto da ciência do Direito. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, v. 4, p. 1-24, 2003. Disponível em: <http://direito.newtonpaiva.br/revistadireito/docs/prof/bkp/PROFES~1.RTF>. Acesso em 15 de maio de 2011.
Advogada. Pós- graduanda em Direito Público pela PUC Minas. Graduada em Direito pela PUC Minas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Ana Luisa de Oliveira. Considerações sobre a norma fundamental de Hans Kelsen Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 abr 2014, 12:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38897/consideracoes-sobre-a-norma-fundamental-de-hans-kelsen. Acesso em: 22 nov 2024.
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