Resumo: A Emenda Constitucional nº 62/2009 derivou de uma proposta de emenda à Constituição Federal, a qual ficou conhecida como a “PEC do Calote” (PEC nº 395/2009, antiga PEC nº 12/2006), e teve como escopo introduzir um regime especial para o pagamento das condenações impostas contra o Poder Público. Este, por sua vez, encontra-se em situação de endividamento, decorrente de antigas condenações transitadas em julgado, que não foram observadas pelos administradores públicos durante décadas. A CF/88, após a promulgação da mencionada Emenda, passou a dispor de novo regime de precatórios, sendo alterados a forma, o prazo e a ordem cronológica de pagamento. O presente trabalho visa analisar cada mudança introduzida, examinando o novo regramento que surgiu com o propósito de equacionar o volume de precatórios não pagos pelos Estados e Municípios. Ao final, será feita uma reflexão sobre os impactos que essas alterações podem oferecer no âmbito social, jurídico e econômico, examinando-se essa nova norma constitucional à luz dos princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Execução; Fazenda Pública; Precatório.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO; 2 PRECATÓRIO ALIMENTAR CUJO TITULAR SEJA IDOSO OU PORTADOR DE DOENÇA GRAVE; 3 AMPLIAÇÃO DO SEQUESTRO; 4 COMPENSAÇÃO ENTRE PRECATÓRIOS E CRÉDITOS DA FAZENDA PÚBLICA; 5 CESSÃO DE CRÉDITO INSCRITO EM PRECATÓRIO; 6 COMPRA DE IMÓVEIS PÚBLICOS POR MEIO DOS PRECATÓRIOS; 7 CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS NO PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS; 8 REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO DE PRECATÓRIOS; 9 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Em 10 de dezembro de 2009 foi promulgada a EC nº 62, que alterou a disciplina do pagamento das dívidas judiciais da Fazenda Pública. O art. 100 da CF foi substancialmente modificado, além de ter sido acrescentado o art. 97 ao ADCT, que permitiu aos Estados, Distrito Federal e Municípios adotarem um regime especial de pagamento de precatórios.
A significativa alteração na redação do art. 100 da CF e a introdução do art. 97 ao ADCT, por meio da EC nº 62/2009, instauraram uma discussão acerca da materialidade das suas normas, levando referida norma jurídica a alcunha de “Emenda do Calote”.
Em razão das alterações promovidas pela referida Emenda, principalmente a que institui o regime especial de pagamento, cujo prazo foi esticado para quinze anos, é que foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.357, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com a Associação dos Magistrados Brasileiros, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, Associação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário, Confederação Nacional dos Servidores Públicos e Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho.
A mencionada ADI, que se encontra, até o presente momento, sob julgamento no STF, questiona as regras introduzidas pela EC nº 62/2009, alegando que esta viola diversos princípios constitucionais, a fim de regularizar o grande volume de precatórios não pagos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, é apontada, além da afronta ao devido processo legislativo, por não ter sido observado o interstício mínimo de cinco dias úteis entre a discussão e votação em 1º e 2º turnos, a ofensa aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da separação dos poderes, da razoável duração do processo, da coisa julgada, do ato jurídico perfeito, da moralidade, da eficiência, da razoabilidade e da proporcionalidade.
No início de 2010, foram ajuizadas mais três ADIs questionando a constitucionalidade da EC no 62/2009, dessa vez pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) e pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). É alegada a incompatibilidade das alterações constitucionais produzidas pela mencionada Emenda com as garantias constitucionais da tutela jurisdicional e da coisa julgada, e com os direitos fundamentais à segurança jurídica e à igualdade de tratamento, direitos e garantias assegurados no art. 5º da CF.
Em que pese a tramitação simultânea de quatro ADI’s versando sobre o mesmo tema, escolhemos como referencial a Ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em razão de ela ter sido assinada por diversas entidades da sociedade, o que lhe conferiu uma maior abrangência na discussão sobre a Emenda Constitucional nº 62/2009.
O presente estudo debruçar-se-á sobre as mudanças advindas com a referida Emenda, examinando os seus impactos na ordem jurídica, porquanto concernentes a matéria de caráter constitucional, qual seja, a execução contra a Fazenda Pública.
2 PRECATÓRIO ALIMENTAR CUJO TITULAR SEJA IDOSO OU PORTADOR DE DOENÇA GRAVE
A EC nº 62/2009 estabeleceu um novo direito de preferência na ordem de pagamento dos precatórios. Conforme a redação do art.100, §2º, da CF, modificada pela referida Emenda, os precatórios cujos credores tenham idade igual ou superior a 60 anos, na data de expedição do precatório, ou que sejam portadores de doença grave, serão pagos prioritariamente sobre todos os demais créditos.
A mencionada Emenda criou uma preferência no âmbito dos créditos alimentares, instituindo dentro dela uma ordem cronológica de precatórios, que são pagos com prioridade. Desse modo, antes de se pagar os créditos de natureza alimentícia, deverão ser pagos os que tenham como titulares idosos ou portadores de doença grave, e que sejam revestidos da mesma natureza, qual seja, alimentícia.
A nova regra estabeleceu um limite de valor para se conferir tal prioridade, que não poderá ser superior ao triplo do limite fixado em lei para a dispensa do precatório.
O art. 87 do ADCT dispõe que, enquanto não editadas as leis dos Estados, Distrito Federal e Municípios, fixando o limite considerado de pequeno valor, estes obedecerão ao quanto estabelecido pelo citado artigo, que fixa o limite de até 40 salários mínimos para condenações impostas às Fazendas dos Estados e do Distrito Federal, e de até 30 salários mínimos para as Fazendas Municipais.
Quanto ao limite fixado para se dispensar a expedição de precatório no âmbito federal, a Lei nº 10.259/01 estabeleceu o valor de até 60 salários mínimos nas condenações impostas à União.
O enquadramento de doença grave está previsto na Resolução Nº 115 do CNJ, que foi expedida em julho de 2010 e veio disciplinar a gestão de precatórios no âmbito do Poder Judiciário. Esta resolução sofreu modificações em outubro de 2010, alterando algumas de suas disposições, a fim de melhor regulamentar os aspectos procedimentais referentes à EC nº 62/2009. Em seu art. 13 encontra-se o seguinte rol de doenças graves:
Art. 13. Serão considerados portadores de doenças graves os credores acometidos das seguintes moléstias, indicadas no inciso XIV do art. 6º da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, com a redação dada pela Lei nº 11.052/2004: a) tuberculose ativa; b) alienação mental; c) neoplasia maligna; d) cegueira; e) esclerose múltipla; f) hanseníase; g) paralisia irreversível e incapacitante; h) cardiopatia grave; i) doença de Parkinson; j) espondiloartrose anquilosante; l) nefropatia grave; m) estado avançado da doença de Paget (osteíte deformante); n) contaminação por radiação; o) síndrome da deficiência imunológica adquirida (AIDS); p) hepatopatia grave.
Parágrafo único. Pode ser beneficiado pela preferência constitucional o credor portador de doença grave, assim considerada com base na conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após o início do processo.
Ademais, caso o crédito alimentar possua valor superior ao limite fixado para a RPV (Requisições de Pequeno Valor – como são denominados os limites estabelecidos acima), o excedente será pago na ordem cronológica de apresentação dos precatórios alimentares. Nessa hipótese, admite-se o fracionamento do valor, porquanto não se configura a finalidade do credor em dispor de dois mecanismos diferentes para obter com maior brevidade o seu crédito, o que é vedado pelo §8º, art. 100, da CF. Esta é uma exceção à regra do não fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução para fins de enquadramento de parcela no limite permitido para a dispensa de precatório.
Vale dizer, a absoluta prioridade conferida ao precatório pressupõe a existência de alguns requisitos, tais como, que o titular seja idoso ou portador de doença grave, que o crédito ostente natureza alimentícia e que o seu valor seja equivalente ao triplo do limite referente à RPV.
3 AMPLIAÇÃO DO SEQUESTRO
O art. 100 da CF, na redação original de 1988, previa, em seu §2º, a única hipótese de haver o sequestro de verba pública, que era admitida quando houvesse preterição na ordem de inscrição do precatório. Com a EC nº 62/2009, tal previsão foi transportada para o §6º, ampliando-se a hipótese de sequestro, ao permitir que este ocorra, também, em caso de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do débito.
Antes de a referida Emenda ser promulgada, o sequestro era possível somente para garantir o direito de preferência, obedecida a ordem de inscrição dos precatórios. Com a nova redação conferida, o §6º, art. 100, da CF passa a dispor da seguinte maneira:
§6º. As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da quantia respectiva.
Ademais, o art. 78 do ADCT[1], introduzido pela EC nº 30/2000, prevê o sequestro, além da hipótese de preterição ao direito de preferência, também quando houver omissão de previsão do valor no orçamento, ou vencido o prazo de parcelamento do precatório, que poderá ser, no máximo, de dez anos ou, se originado de desapropriação de imóvel residencial do credor, de dois anos.
A referida medida executiva só será concedida se houver prévio requerimento do credor, não podendo ser determinada de oficio. Ainda assim, faz-se necessária a manifestação do Ministério Público, conforme previsto no art. 731 do CPC.
Poderão requerê-la tanto o credor que foi preterido diretamente pela quebra da ordem cronológica, como também aqueles que lhe antecedem. “Todos aqueles que se situam à frente do credor beneficiado com a quebra da ordem legitimam-se a requerer a providência corretiva, porque sofreram preterição.” (ASSIS, 2009, p. 1049).
Ainda na disciplina das medidas punitivas, que se consagram na intervenção federal e nas restritas hipóteses de sequestro acima mencionadas, o art. 100 prevê, em seu §7º (com a redação dada pela EC 62/2009), a atuação do Presidente do Tribunal que retardar ou tentar frustrar o pagamento dos precatórios, de modo a incorrer em crime de responsabilidade, além de responder perante o Conselho Nacional de Justiça[2].
Tal previsão consubstancia-se nas disposições do art. 103-B da CF, introduzido pela EC nº 45/2004, que traz a competência constitucional do Conselho Nacional de Justiça. Este tem por escopo zelar pela autonomia do Poder Judiciário e controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, podendo expedir resoluções no âmbito de sua competência.
4 COMPENSAÇÃO ENTRE PRECATÓRIOS E CRÉDITOS DA FAZENDA PÚBLICA
A EC nº 62/2009 estabeleceu à Fazenda Pública o dever de abater, a título de compensação, do montante do precatório os débitos constituídos contra o exeqüente, sendo a requisição inscrita pela diferença.
Não é, entretanto, qualquer crédito que poderá ser objeto de compensação, já que, segundo o art. 100, §9º, da CF, a compensação só é possível nos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas as parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.
Para que o abatimento possa ser efetuado pelo ente fazendário, o art. 100, §10, da CF, reza que, antes de expedir o precatório, o Tribunal deve solicitar à Fazenda Pública devedora informações acerca dos débitos constituídos contra o exeqüente, que é o titular do precatório. A resposta deverá ser dada ao Tribunal em 30 dias, sob pena de perda do direito ao abatimento. Caso este prazo não seja respeitado, a Fazenda não poderá satisfazer o crédito que mantém frente ao exeqüente.
O abatimento, a título de compensação, somente poderá ser feito com dívidas que o exeqüente mantenha frente à Fazenda Pública devedora. Não seria razoável permitir-se o abatimento de dívidas constituídas perante outros entes públicos, dotados de personalidade jurídica diversa, visto que retiraria o propósito da norma em facilitar a quitação dos créditos da Fazenda devedora.
Para que o exeqüente não tenha o valor do seu precatório diminuído em virtude da compensação instituída pela nova disposição constitucional, deverá o credor suspender administrativa ou judicialmente o processo no qual se discuta o débito afirmado pela Fazenda Pública.
A inovação trazida pela mencionada Emenda obriga à compensação dos créditos que a Fazenda Pública possui com os seus débitos inscritos em precatórios, representando, para o doutrinador Leonardo José Carneiro da Cunha, um meio eficaz de satisfação dos créditos do Fisco.
Segundo o parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, de autoria da Senadora Kátia Abreu, sobre a proposta que originou a EC nº 62/2009, a essência do dispositivo foi tornar “mais clara a regra de compensação financeira nas hipóteses em que a Fazenda Pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório”.
5 CESSÃO DE CRÉDITO INSCRITO EM PRECATÓRIO
Os parágrafos 13 e 14 do art. 100, CF, possibilitam haver a cessão, total ou parcial, a terceiros do crédito inscrito no precatório. A produção dos seus efeitos, no entanto, fica condicionada à comunicação, por meio de petição protocolizada, ao tribunal de origem e à entidade devedora.
Vale ressaltar que a preferência de que goza o titular do precatório, a exemplo do idoso ou portador de doença grave, não se estende ao cessionário, não sendo transferida no negócio jurídico da cessão.
De igual modo, caso haja cessão parcial, de forma que o valor cedido equivalha a montante que dispensa a expedição de precatório, o cessionário não irá beneficiar-se de tal regra. Ainda que, em caso de cessão total, o crédito seja de pequeno valor, a dispensa do precatório não beneficia o cessionário, que deverá, para seu recebimento, ter de requerer a expedição do precatório. (CUNHA, 2010, p. 349).
Assim passou a disciplinar o art. 100, com a promulgação da EC nº 62/2009, que diz que não se aplica ao cessionário o disposto nos parágrafos 2º e 3º, referentes, respectivamente, ao precatório alimentício cujo titular é idoso ou portador de doença grave, e à RPV.
Havendo cessão de precatórios, o abatimento, a título de compensação, será feito com dívidas que o credor originário possuir frente à Fazenda Pública devedora. A cessão do precatório não impede que seja feito o abatimento, a título de compensação, com dívidas do credor originário.
6 COMPRA DE IMÓVEIS PÚBLICOS POR MEIO DOS PRECATÓRIOS
A opção, facultada ao credor, de comprar imóveis públicos com a entrega de créditos em precatórios, figura como mais uma forma para a satisfação do seu direito. O art. 100, §11, da CF, passa a dispor sobre a possibilidade de o credor adquirir imóveis públicos do ente público devedor.
O dispositivo, no entanto, faz a ressalva para a necessidade de existir lei da entidade federativa devedora que discipline a matéria. Havendo, nos termos da lei específica, imóvel público a ser vendido, o credor de precatório poderá valer-se do seu crédito para adquiri-lo.
A CF, com o advento da EC nº 62/2009, consagrou a modalidade de extinção de débito fazendário inscrito em precatório, mediante a venda de imóvel que integre o seu patrimônio. Todavia, é imprescindível a regulamentação da matéria por lei editada pela entidade federativa devedora, o que pode resultar na ineficácia da norma introduzida pela Emenda, caso não haja o interesse em legislar sobre o assunto.
7 CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS NO PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS
A EC nº 62/2009 introduziu ao art. 100 da CF o §12, dispondo acerca do índice utilizado para fins de atualização monetária e compensação da mora. Os juros moratórios passaram a ser expressamente previstos pela CF, ao passo que se assentou a exclusão da incidência de juros compensatórios.
Com a promulgação da referida Emenda, os precatórios, independentemente de sua natureza, passarão a ter os seus valores corrigidos, após a sua expedição, com base no índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança. Os juros de mora seguirão a mesma sorte, tendo percentual igual ao dos juros incidentes sobre a caderneta de poupança.
Sem embargo de o ordenamento jurídico prever, na Lei nº 9.494/97, a incidência dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança nas condenações impostas à Fazenda Pública[3], os precatórios e as RPV’s tinham os seus valores corrigidos com base no índice de preços ao consumidor ampliado. Nos termos do art. 9º da Resolução nº 559, do Conselho da Justiça Federal, publicada em 28 de junho de 2007, “para efeito da atualização monetária de que trata este instrumento, será utilizado o Índice de Preços ao Consumidor Ampliado – Série Especial – IPCA-E, divulgado pelo IBGE, ou aquele que vier a substituí-lo”. Este ato normativo regulamenta os procedimentos relativos à expedição e ao cumprimento de requisições no âmbito da Justiça Federal, sendo reeditado pela Resolução nº 55 de 2009, que manteve o teor do mencionado artigo[4].
O disposto no §12, acrescentado pela EC nº 62/2009, também está sendo questionado pela ADI nº 4.357, impetrada sob o argumento de que o atual índice de correção incidente sobre a caderneta de poupança, a Taxa Referencial (TR), não reflete a variação do poder aquisitivo da moeda, sendo inferior ao IPCA. Segundo a mencionada Ação, essa alteração acarretará uma redução significativa do valor do crédito, que restará corroído pela inflação. Isso configura uma violação ao direito de propriedade, bem como resta maculado o princípio da igualdade, porquanto os débitos do Estado estarão sendo corrigidos por índice inferior ao que os seus créditos estão submetidos, beneficiando-o economicamente.
Ademais, o §16 do art. 100 da CF, instituído por meio da referida Emenda, versa sobre a possibilidade de a União assumir os débitos, provenientes de precatórios, dos demais entes federativos. O dispositivo deixa claro que essa opção caberá somente à União que, a seu critério exclusivo, e na forma da lei, refinanciará diretamente essas dívidas.
Para Marçal Justen Filho (2010, p.168), essa regra institucionaliza o tráfico de influências e garante mais uma fonte para a corrupção. De acordo com a sua compreensão, “ao facultar a federalização da dívida, mas apenas em virtude de uma escolha da União, propicia-se toda a espécie de desvios éticos”.
Leonardo José Carneiro da Cunha entende que a faculdade conferida à União, através do mencionado parágrafo, atenta contra os princípios da impessoalidade e da isonomia, por privilegiar credores de entes específicos, em detrimento de outros que se encontram na mesma situação e aguardam pelo pagamento de seus créditos.
Faculta-se, enfim, a federalização da dívida, apenas em virtude de uma escolha privativa da União [...] atentando contra a própria essência do precatório, que consiste em evitar privilégios ou vantagens indevidas para o pagamento de condenações judiciais, fazendo respeitar a ordem cronológica de inscrição dos respectivos créditos. (CUNHA, 2010, p. 357).
É temerário, a partir dessa regra, que surja a figura dos facilitadores, que são pessoas que atuam como intermediários na negociação entre o credor do requisitório e o ente devedor. Isso pode causar um ambiente hostil, em que serão pagos em primeiro lugar aqueles que tiverem um contato pessoal privilegiado em relação aos demais.
8 REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO DE PRECATÓRIOS
A EC nº 62/2009, além de modificar substancialmente o art. 100 da CF, fez incluir o art. 97 ao ADCT, criando um novo regime de pagamento de precatórios, com previsão de parcelamento até quinze anos, vinculações à receita corrente líquida dos entes federativos, bem como estabeleceu novas formas destes pagarem os seus débitos.
O art. 97, caput, do ADCT, permite aos Estados, Distrito Federal e Municípios que estejam em mora no pagamento de precatórios a adoção de um regime especial, que exclui o sistema de pagamento previsto pelo art. 100 da CF.
As regras contidas no mencionado artigo serão aplicadas enquanto não for editada lei complementar à CF dispondo sobre regime especial de pagamento. O novo §15 do art. 100, CF, confere essa possibilidade ao legislador infraconstitucional, que não poderá incluir a União em tal regime, devido à regularidade em que esta vem pagando os seus débitos. Outrossim, o regime poderá ser criado independentemente das regras contidas no texto constitucional, com vistas a regularizar o pagamento de precatórios vencidos e não pagos por aquelas respectivas pessoas jurídicas de direito público.
Enquanto não editada a aludida lei complementar, os Estados, Distrito Federal e os Municípios que, na data da publicação da EC no 62/2009, estejam inadimplentes com precatórios já vencidos, como também os emitidos durante a vigência do próprio regime especial, relativos à administração direta e à indireta, farão esses pagamentos sem precisar observar o disposto no art. 100 da CF (exceto no que se refere a algumas regras). Estarão, por conseguinte, adstritos às normas contidas no art. 97 do ADCT.
O mencionado artigo, ao prever a mora dos entes federativos, incluiu todos os débitos judiciais constituídos e ainda pendentes de pagamento no dia 09.12.2009 pelas Fazendas Públicas estaduais, distrital e municipais, sujeitando às mesmas regras os débitos futuros, constituídos durante o exercício do regime especial.
Ademais, os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78 do ADCT, e ainda pendentes de pagamento, ingressarão no regime especial com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas a cada precatório, bem como o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais. A EC no 62/2009 determinou a submissão de todos os créditos de precatórios pendentes de pagamento, ainda que já tenham sido objeto de parcelamento. A justificativa expressamente consignada no relatório da Il. Senadora Kátia Abreu, em parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sobre a PEC 12/2006, é de que “a exclusão de alguns tipos de precatórios fragiliza o sistema concebido para o regime especial”, tendo em vista os inúmeros parcelamentos inadimplidos pelas Fazendas devedoras.
Os Estados, Distrito Federal e os Municípios poderão optar, por meio de ato do Poder Executivo, pelo regime especial mensal ou anual. O primeiro consiste em depósitos mensais, em conta especial, de valores correspondentes a percentuais incidentes sobre a receita corrente líquida. Nada obstante, o ente federativo poderá decidir pelo segundo sistema, que se perfaz através de depósitos anuais, ao longo de quinze anos, equivalente ao saldo total de precatórios devidos, dividido pelo número de anos restantes no regime especial. Segundo o art. 3º da EC no 62/2009, esta escolha deverá ser feita até noventa dias contados da sua publicação, o que equivale até o dia 10.03.2009.
O sistema anual prevê o pagamento dos créditos inscritos em precatórios no prazo de quinze anos, devendo ser depositado em conta especial percentual correspondente, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. Fica, ainda, excluída a incidência de juros compensatórios.
Optando pelo sistema de amortização mensal, os Estados, Distrito Federal e os Municípios deverão depositar mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento. A aplicação desse percentual poderá variar de 1% a 2%, dependendo do enquadramento previsto nos incisos I e II do §2º, do art. 97 do ADCT. Nos termos do §14 do mencionado artigo, este regime especial vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos destinados ao seu pagamento.
De acordo com esse dispositivo, o Distrito Federal e os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sujeitos ao regime especial, depositarão em conta especial um percentual de, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas, ao passo que os seus Municípios estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1% (um por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
Por sua vez, os Estados das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) do total da receita corrente líquida, e seus respectivos Municípios, cujo estoque de precatórios pendentes corresponder a mais de 35% (trinta e cinco por cento), estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
Já os Estados das regiões Sul e Sudeste que tiverem estoque de precatórios pendentes de suas administrações direta e indireta correspondente a mais de 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida poderão optar, por ato do Poder Executivo, pelo depósito em conta especial de, no mínimo, 2% (dois por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Os Municípios dessas regiões e cujo estoque de precatórios pendentes corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) da sua receita, por sua vez, estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1% (um por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
O conceito de receita corrente líquida é apresentado pelo §3º do art. 97, do ADCT, que entende ser esta o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do §1º do art. 20, da CF, verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 (onze) meses anteriores, excluídas as duplicidades. Serão, todavia, deduzidas nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional e, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no §9º do art. 201 da CF.
A conta especial acima referida será administrada pelo Tribunal de Justiça local, para pagamento de precatórios expedidos pelos tribunais ou juízos das execuções. Sem embargo disso, os recursos nela depositados não poderão retornar aos Estados, Distrito Federal e Municípios devedores. Além do mais, pelo menos 50% (cinqüenta por cento) de tais recursos serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, respeitadas as preferências de créditos alimentares do mesmo ano e as de créditos alimentícios de idosos ou portadores de doença grave, até o triplo do limite para requisição de pequeno valor, para os requisitórios de todos os anos.
Nos casos em que não se possa estabelecer a precedência cronológica entre dois precatórios, conforme disposto no §7º, pagar-se-á primeiramente o precatório de menor valor.
Os entes federativos sob regime especial poderão destinar o restante dos recursos, mediante ato do Poder Executivo, para pagamento de precatórios por meio de leilão, ou para pagamento a vista de precatórios não quitados, em ordem única e crescente de valor por requisitório, ou ainda destiná-los a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever a criação e forma de funcionamento de câmara de conciliação.
Os precatórios, a partir da EC no 62/2009, poderão ser legalmente quitados por meio de leilões, realizados por meio de sistema eletrônico administrado por entidade autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil. Nos termos do §9º do art. 97, ADCT, será admitida a habilitação de precatórios, ou parcela de cada precatório indicada pelo seu detentor, em relação aos quais não esteja pendente, no âmbito do Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza.
No leilão, poderá ser feita, por iniciativa do Poder Executivo, a compensação com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o devedor originário, pela Fazenda Pública devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja suspensa, ou que já tenham sido objeto de abatimento nos termos do §9º do art. 100 da CF.
O leilão ocorrerá por meio de oferta pública a todos os credores habilitados, pelo respectivo ente federativo devedor, sendo realizado tantas vezes quanto necessário em função do valor disponível. A competição por parcela do valor total ocorrerá a critério do credor, com deságio sobre o valor desta. “Significa que deve receber aquele que oferecer um maior deságio, seguido, sucessivamente, pelos que forem oferecendo deságios vantajosos ao ente público devedor”. (CUNHA, 2010, p. 353).
O §10 do mencionado artigo, introduzido pela EC no 62/2009, traz hipóteses de sanção à pessoa jurídica de direito público devedora que não faça, tempestivamente, a liberação dos recursos depositados em conta especial. O Presidente do Tribunal poderá determinar o seqüestro de quantia nas contas de Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, até o limite do valor não liberado. Ademais, será constituído, alternativamente, em favor dos credores de precatórios daqueles entes federativos, direito líquido e certo, autoaplicável e independentemente de regulamentação, à compensação automática de débitos lançados contra os próprios credores. Restando saldo, ainda, em favor destes, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de tributos de Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, até onde se compensarem.
Outra hipótese de sanção, em caso de não liberação tempestiva dos recursos correspondentes, consiste na possibilidade de o chefe do Poder Executivo responder na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa. Além disso, enquanto perdurar a omissão, a entidade devedora não poderá contrair empréstimo externo ou interno, ficando impedida de receber transferências voluntárias. Igualmente, a União deverá punir o ente federativo devedor, retendo os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios. Este valor retido deverá ser depositado nas contas especiais referidas no §1º, abertas especificamente para pagamento dos precatórios, não podendo o dinheiro ser retornado aos entes públicos.
Ressalvada a hipótese de não liberação dos recursos correspondentes à satisfação dos créditos pelo regime especial, os Estados, Distrito Federal e os Municípios devedores que estiverem realizando pagamentos conforme este regime, nos termos do §13 do art. 97 do ADCT, não poderão sofrer sequestro de valores.
O regime especial introduzido pela EC no 62/2009 prevê a exclusão de grande parte das normas contidas no art. 100 da CF. No entanto, estas voltarão a ser observadas pelo ente federativo devedor adepto ao sistema mensal, quando o valor dos precatórios restar inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento. Caso a escolha tenha sido pelo sistema anual, este encerrar-se-á com o final do prazo de quinze anos, quando voltará a ser aplicado o art. 100 da CF.
A EC no 62/2009 instituiu uma sistemática alternativa e transitória de liquidação das dívidas públicas, objeto de precatório judicial, que não tenham sido devidamente pagas. A referida Emenda, conforme o relatório da Il. Senadora Kátia Abreu, em parecer sobre a PEC no 12/2006, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, tem como finalidade expressa a seguinte:
Fica clara, portanto, a impossibilidade de muitos estados e municípios pagarem sua dívida de precatórios judiciais em curto espaço de tempo.
[...]
Seria desejável que os orçamentos dos estados e municípios permitissem a vinculação de maior volume de recursos ao pagamento de precatórios. A realidade, entretanto, é bem diferente.
A tentativa de equacionar o volume de precatórios não pagos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios revela-se ambígua até mesmo neste relatório quando há o reconhecimento de que “mesmo vinculando os limites da receita corrente líquida previstos nesta PEC, não será possível liquidar todo o estoque de precatórios em atraso no prazo de quinze anos. A limitação imposta apenas cria um outro problema a ser resolvido daqui a quinze anos”.
Marçal Justen Filho (2007, p. 164), em estudo sobre as mudanças no regime de pagamento dos precatórios, expostas na PEC no 12/2006, entende haver os seguintes efeitos jurídicos derivados: a eliminação do dever de alocar recursos suficientes para a liquidação integral dos precatórios, a indeterminação dos montantes a serem alocados, a indeterminação quanto à data do pagamento, a eliminação da ordem cronológica de pagamentos e a redução indireta do valor real das dívidas estatais, visto que os créditos poderão ser liquidados mediante a oferta de um “desconto”.
Alguém poderia afirmar que as inovações da PEC apenas refletiriam a incorporação pelo Direito de uma situação de fato já existente.
O argumento consistiria em que a Fazenda Pública já não paga as suas dívidas e, por isso, a PEC apenas estaria formalizando essa situação de fato, prevendo uma solução para que – ainda que danosa para os credores – seria menos nociva do que a continuidade do atual cenário.
Esse tipo de raciocínio é despropositado e descabido no plano das normas constitucionais.
O ponto fundamental reside em que qualquer alteração da disciplina constitucional deve ser examinada, em primeiro lugar, sob o prisma da sua compatibilidade com o sistema jurídico. Existem princípios e regras constitucionais que não comportam revogação ou modificação: a afirmativa de que, “na prática”, esses princípios e regras não são observados, não autoriza a sua supressão da Constituição. (JUSTEN FILHO, 2007, p. 165-166).
A obrigatoriedade de se observar a ordem cronológica de inscrição dos precatórios demonstrou a moralização que o sistema de pagamento alcançou ao longo do tempo. A sua previsão em sede constitucional, desde 1934, significa a garantia de que o Estado deve pagar os seus débitos observando-se os princípios constitucionais, ínsitos ao Estado Democrático de Direito. Este, por sua vez, abrange o valor democrático do acesso à justiça, que pressupõe o acesso a uma justiça justa e efetiva. Isso não poderia ser diferente ao modo de executar os débitos contra a Fazenda Pública.
O regime especial por depósitos anuais, no prazo de quinze anos, é compreendido por Leonardo José Carneiro da Cunha como uma afronta ao princípio constitucional da duração razoável do processo, haja vista não ser compatível com um processo justo, que ofereça resultados efetivos num prazo razoável. Como é afirmado na ADI no 4.357, o parcelamento de débitos em quinze anos é “verdadeira zombaria, galhofa que se faz ao jurisdicionado e ao próprio Poder Judiciário”. Ademais disso, a mencionada ADI assevera que o Poder Público não pode impor ao jurisdicionado a forma e o tempo em que o pagamento vai ocorrer, tendo em vista que o precatório nada mais é do que a garantia constitucional de cumprimento das decisões judiciais.
A nova moratória conferida aos entes estatais representa ao credor da Fazenda Pública a sujeição a mais um prazo, para então ter adimplida aquela obrigação constante de decisão judicial já transitada em julgado. A confiança legítima que se deve ter frente aos atos públicos, segundo Leonardo José Carneiro da Cunha, põe-se em risco, porquanto o princípio da boa-fé deixa de ser atendido, em razão de ausência de conteúdo ético na atuação do ente federativo devedor.
Para que se atenda à boa-fé e à confiança, garantindo-se um mínimo de conduta ética e de estabilização nas relações jurídicas, é preciso que se continue a conferir primazia à coisa julgada, afastando-se qualquer instabilidade ou desconfiança nas decisões proferidas pelo Judiciário, cuja função e atividade devem ser fonte de segurança, respeito e confiabilidade por parte dos jurisdicionados. (CUNHA, 2010, p. 359).
Ao instituir o regime especial por depósitos mensais, o legislador fixou percentuais que variam entre 1% e 2%, incidentes sobre as receitas correntes líquidas dos entes fazendários. O montante das condenações judiciais não é observado, pois as alocações de recursos serão promovidas segundo o critério de uma porcentagem sobre a receita. “Portanto, a elevação das condenações passará a ser algo indiferente. Sucessivas, reiteradas e vultosas condenações não trarão conseqüência alguma” (JUSTEN, 2009, p. 1).
Nas palavras da ADI no 4.357,
com efeito, a consignação direta ao Poder Judiciário das dotações orçamentárias e dos créditos abertos ao pagamento de precatórios, bem como a intenção do constituinte derivado de frustrar esses pagamentos devidos, e já reconhecidos pela autoridade da decisão judicial, não podem ser passíveis de contingenciamento, daí a inconstitucionalidade do dispositivo ao limitar a receita destinada ao pagamento de precatórios aos percentuais de receita líquida dos entes federativos (art. 97, §2º, incisos I, alíneas ‘a’ e ‘b’, e II, alíneas ‘a’ e ‘b’), sendo claro que os valores devem compreender a integralidade dos precatórios devidos, justamente para que até o final do exercício seguinte se opere o pagamento daqueles apresentados até 1º de julho.
Diante do exposto, percebe-se que o regime especial por depósitos mensais, em percentuais fixos, tem sido criticado pelo fato destes estarem previamente, e de forma abstrata, estabelecidos no art. 97 do ADCT, afigurando-se inconstitucional.
Ademais disso, a vinculação de 50% (cinqüenta por cento) dos recursos destinados ao pagamento de precatórios na ordem cronológica, deixando os valores restantes para realização de leilões, ou pagamento à vista por ordem única e crescente de valor por precatório, como também para acordo direto com os credores, configura um desrespeito aos postulados da coisa julgada, da segurança jurídica e ao princípio da ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Segundo o entendimento esposado na mencionada ADI,
é dizer, de outro modo, que aquele que não optar em abrir mão de parte de seu crédito e pretender recebê-lo integralmente acaba sendo castigado pela punição restritiva da limitação orçamentária, sobretudo pela redução dos recursos disponíveis para pagamento de seus direitos reconhecidos em sentença judicial [...].
Para Leonardo José Carneiro da Cunha, a situação se agrava quando o ente público adota o regime por depósitos mensais, seguindo-se da alienação por leilão com oferta pública do valor. Nesse caso, os credores que oferecerem maior deságio serão priorizados, e o regime somente se encerrará quando o valor dos precatórios devidos for inferior ao dos recursos vinculados ao seu pagamento.
Nas lições do mencionado professor, a instituição do regime especial termina por violar o princípio constitucional da moralidade, insculpido no art. 37 da CF. A moralidade administrativa deixa de ser observada quando descumprida determinada decisão, bem como frustrada uma expectativa legítima criada pela própria Administração.
9 CONCLUSÃO
No novo regime instituído pela EC no 62/2009, o legislador atuou em prol do equacionamento da dívida pública inscrita em precatórios, contrapondo-se de forma desarrazoada ao interesse privado. A moralidade pública consiste na conduta impulsionada por forte carga ética, respeitando-se os direitos e garantias fundamentais, inerentes a qualquer Estado Democrático de Direito. Com base nos fundamentos acima expostos é que a ADI, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e demais entidades, pugna pela inconstitucionalidade da EC no 62/2009.
As mudanças advindas com a mencionada Emenda são objeto de críticas dos mais diversos setores da sociedade, sobretudo por se tratar de obrigações de pagamento de quantias já reconhecidas em sentença, para cujo recebimento os titulares enfrentam inúmeros óbices.
10 REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 15 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. 2.
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Dialética, 2010.
DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 2 ed. rev. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2010, v. 5.
JUSTEN FILHO, Marçal. Emenda dos precatórios: calote, corrupção e outros defeitos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, nº 34, dez./09. Disponível em: <http://www.justen.com.br/informativo>. Acesso em: 03 mar. 2010.
_________. Estado Democrático de Direito e responsabilidade civil do Estado: a questão dos precatórios. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 5, n. 19, p. 159-208, jul./set. 2007. Disponível em: <http://www.justen.com.br/informativo34/artigos/marcal.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, v. 3.
VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Novas considerações acerca da execução contra a Fazenda Pública. Revista Dialética de Direito Processual (RDDP), n. 5, ago-2003, p. 54-68.
[1] “§4º. O Presidente do Tribunal competente deverá, vencido o prazo ou em caso de omissão no orçamento, ou preterição ao direito de precedência, a requerimento do credor, requisitar ou determinar o sequestro de recursos financeiros da entidade executada, suficientes à satisfação da prestação.”
[2] §7º. O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatórios incorrerá em crime de responsabilidade e responderá, também, perante o Conselho Nacional de Justiça.
[3] Art. 1º-F, da Lei nº 9.494/97: “Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança”.
[4] Nesse sentido, julgamento do Ag nº 2009.02.01.012289-7, pelo rel. Desemb. Alberto Nogueira, publicado no DJE em 15.04.10, de cuja ementa se extrai: PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. REQUISITÓRIO DE PEQUENO VALOR. RESOLUÇÃO Nº 559 DO CJF. ATUALIZAÇÃO DOS DÉBITOS. 1. A matéria atinente aos requisitórios de pequeno valor é disciplinada, no âmbito da Justiça Federal, nos termos da Resolução n° 559 do CJF, que preconiza os critérios de atualização dos débitos, independentemente do ente político destinatário do crédito. 2. A Resolução n° 559 do Conselho da Justiça Federal dispõe no artigo 9° que para efeito da atualização monetária de que trata este instrumento, será utilizado o Índice de Preços ao consumidor Ampliado, série Especial- IPCA-E, divulgado pelo IBGE, ou aquele que vier a substituí-lo. 3. A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo de instrumento.
Advogado, Pós-graduado em Direito do Estado pelo Instituto Excelência (PODIVM), Graduado em Direito pela Universidade Salvador - UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Ricardo Barreto Prata. O novo regime de precatórios instituído pela Emenda Constitucional nº 62/2009 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38943/o-novo-regime-de-precatorios-instituido-pela-emenda-constitucional-no-62-2009. Acesso em: 25 nov 2024.
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