I – INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da análise da ação civil pública: do seu surgimento à sua regulamentação no ordenamento jurídico, passando pela divergência doutrinária em alguns aspectos desta ação coletiva.
II – DESENVOLVIMENTO.
Predominou durante o Estado Liberal a visão dicotômica do processo, em que o mesmo era dividido entre o público e o privado. Esta visão clássica encontra, ainda, espaço no mundo jurídico moderno. A novidade está em não aceitar a dicotomia pura e simplesmente, percebendo a sua insuficiência, já que os novos direitos, os direitos difusos, em particular, transcendentes do indivíduo, não se definem nem como individuais, nem como públicos. Trata-se de uma nova categoria de direitos e interesses, reflexos de uma sociedade complexa, cujos titulares, muitas vezes, estão marcados pela indeterminabilidade.
Entre o público e o privado abriu-se um profundo “abismo” que foi preenchido pelo novo microssistema dos direitos difusos ou, mais acertadamente, pelos direitos e interesses que transcendem o indivíduo, meta ou supra individuais.
O microssistema surgiu mesmo antes da Constituição Federal (CF), mas teve maior destaque depois de 1988 com a vigente Carta Magna que garantiu a todos, em seu artigo 5°, inciso XXXV, que nenhuma lei excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Sendo assim, as previsões do vigente Código de Processo Civil (CPC) de 1973 não são suficientes para garantir o direito de ação a um legitimado que quer defender um direito ou interesse difuso.
Veja-se como o CPC é individualista: no seu artigo 3° há a previsão de que para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. Completa o diploma legal com o artigo 6ª ao mencionar que ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.
Cândido Rangel Dinamarco explica que o que se deve entender por interesse é a utilidade, ou seja, há o interesse de agir quando o provimento jurisdicional postulado for capaz de efetivamente ser útil ao demandante. O interesse de agir constitui núcleo fundamental do direito de ação, por isso que só se legitima o acesso ao processo e só é lícito exigir do Estado o provimento pedido, na medida em que ele tenha essa utilidade e essa aptidão. (DINAMARCO, 2005, p. 303)
Dinamarco ensina ainda que a legitimidade ad causam é a qualidade de estar em juízo, é a relação de legítima adequação entre o sujeito e a causa. A ressalva feita no final do artigo 6° refere-se à legitimação extraordinária, que cada vez mais ganha espaço no sistema atual por causa dos direitos e interesses supra individuais.
Legitimidade é a pertinência subjetiva da demanda, esta deve pertencer ao autor e ao réu, é a relação jurídica material. Já, o interesse de agir é quando o processo é o meio necessário para satisfazer uma pretensão e para tanto, deve-se escolher a via adequada para alcançar o sucesso.
Em suma, os dois artigos mencionados do CPC condicionam o direito de ação, isto é, só será analisado o mérito de um pedido quando na ação estiverem presentes suas condições. São elas: interesse de agir, legitimidade ad causam e possibilidade jurídica do pedido. Se o autor não for legitimado e/ou não tiver interesse na causa, não terá seu pedido julgado com definitividade.
Outra regra do CPC que não é compatível com os moldes exigidos nas ações coletivas lato sensu, que discutem direitos ou interesses difusos, é o artigo 472 ao tratar da coisa julgada. Este mencionado dispositivo legal prevê que só faz coisa julgada entre as partes que participaram do contraditório, os efeitos da sentença não prejudicam nem beneficiam terceiros.
Sendo assim, os interesses metaindividuais e indivisíveis não permitem a utilização das regras individualistas do CPC. Portanto, há um sistema processual paralelo para processar e julgar demandas envolvendo os novos direitos e interesses. Fala-se que são indivisíveis porque o interesse não pode ser dividido para fins de aproveitamento ou fruição, ou seja, ele será aproveitado de forma coletiva, ou todos ou ninguém pode fruí-lo.
Segundo Roberto Carlos Batista, no Brasil há um Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. A ideia fora concebida no final de 2003 por ocasião do encerramento do curso de pós-graduação strictu sensu na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), quando então professores e pós-graduandos da disciplina Processo Coletivo debatiam o anteprojeto do denominado Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América.
Dentre as ações coletivas que discutem direitos supra individuais, estuda-se a ação civil pública, que é uma espécie do processo coletivo, cuja característica é distinta do processo individual. Em especial, destacam-se os efeitos da coisa julgada, que são ultra partes e erga omnes.
José dos Santos Carvalho Filho afirma que na Inglaterra teriam sido iniciados os primeiros conflitos de interesse de natureza coletiva. O primeiro caso, ocorrido por volta do ano de 1.199, teria sido relativo a pretensão formulada pelo pároco Martin perante a Corte Eclesiástica de Canterbury em face dos paroquianos de Nuthamstead, formadores de um grupo específico de pessoas, a qual consistia no direito a oferendas e serviços diários. Outros casos se sucederam, e as ações coletivas passaram a ser mais frequente nos séculos XIV e XV. (CARVALHO FILHO, 2005, p. 3)
Não obstante isso, as leis podem ser classificadas em materiais e formais, diante disto pode-se afirmar que a Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública – LACP) é de natureza formal, visto que se destina a regular a ação protetiva dos vários direitos subjetivos e deveres jurídicos relativos ao meio ambiente, consumidor e a outros interesses coletivos e difusos.
Na expressão ação civil pública não se identifica a pretensão que lhe constitui o objeto. O adjetivo “civil” indica meramente que a ação tem natureza não-penal, não se voltando, portanto, a pedidos condenatórios decorrentes da prática de ilícitos penais. Já o adjetivo “pública” deve ser visto como antagônico de ação privada, de modo a indicar que a ação pode ser deflagrada por órgão do próprio Estado, como é o caso especial do Ministério Público, na defesa de interesses de natureza coletiva e com vistas ao bem-estar da comunidade, ao contrário da ação, de sentido clássico, só permitida, em regra, ao indivíduo que fosse realmente o titular do direito a ser tutelado.
LACP menciona como bens tutelados o meio ambiente; o consumidor; os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; qualquer outro interesse difuso ou coletivo; por infração da ordem econômica e da economia popular; e, a ordem urbanística.
José dos Santos Carvalho Filho esclarece que a expressão “interesses difusos e coletivos” assumia anteriormente noção eminentemente doutrinária. Como a Constituição Federal a eles se referiu no artigo 129, III, era preciso demarcar com maior precisão o sentido de tais interesses. Fê-lo o Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei n° 8.078/90), definindo os interesses ou direitos difusos como “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”, e os interesses ou direitos coletivos como “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria, ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”. (CARVALHO FILHO, 2005, p.817).
Além desses interesses, o Código do Consumidor também definiu uma terceira categoria de direitos – os interesses ou direitos individuais homogêneos – definidos na lei como aqueles que decorrem de origem comum. Esses direitos são marcadamente individuais, e o aspecto de grupo a eles relativos diz respeito apenas a uma associação de interesses com vistas a um mesmo fim. Não têm, portanto, o caráter transindividual dos interesses difusos ou coletivos, nos quais o relevante é o agrupamento em si, e não os indivíduos que o compõem.
Quanto à tutela dos interesses individuais homogêneos, tem havido alguma oscilação nos Tribunais a respeito da viabilidade, ou não de serem objeto de ação civil pública. A Lei n° 8.078/90 prevê a defesa coletiva para tais direitos, mas não esclarece se se trata de categoria específica de ação ou se é a mesma ação civil pública. Em que pese a confusão que se formou a respeito, para Carvalho Filho parece melhor considerar ação civil pública como via idônea para tutela de direitos individuais homogêneos, desde que a defesa seja efetivamente coletiva, vale dizer, abranja grupo com significativo número de integrantes.
Esta divergência também se faz em sede doutrinária, que é saber se é possível tratar de direitos e interesses individuais homogêneos em ação civil pública. A corrente mais tradicionalista afirma que não é possível, uma vez que o artigo 127 da Constituição fala que o Ministério Público só pode agir se houver interesse indisponível. Já, a corrente mais avançada alega que é possível, até mesmo se tratar de interesses patrimoniais que envolvam parcela significativa da população, pois deixa de ser interesse individual e passa a ser interesse social. Este é o entendimento do STF exposto na súmula 643 que autoriza o Ministério Público propor ação civil pública em relação à mensalidade escolar.
III – CONCLUSÃO.
Diante do que foi exposto acima, observa que no Brasil os interesses metaindividuais e indivisíveis não permitem a utilização das regras individualistas do CPC. Portanto, há um sistema processual paralelo para processar e julgar demandas envolvendo os novos direitos e interesses. Fala-se que são indivisíveis porque o interesse não pode ser dividido para fins de aproveitamento ou fruição, ou seja, ele será aproveitado de forma coletiva, ou todos ou ninguém pode fruí-lo.
IV – REFERÊNCIAS.
BATISTA, Roberto Carlos. Coisa Julgada Nas Ações Civis Públicas: Direitos Humanos e Garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 182 p.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 10. ed. rev. atual. vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 492 p.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 13. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 905 p.
__________. Ação Civil Pública. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 399 p.
DIDIER Jr, Fredie. ZANETI Jr, Hermes. Curso de Direito Processual Civil, Processo Coletivo. vol. 4. Bahia: Podivm, 2007.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5. ed. rev. atual. vol. II. São Paulo: Malheiros, 2005. 303 p.
__________. Instituições de direito processual civil. 5. ed. rev. atual. vol. III. São Paulo: Malheiros, 2005. 695 p.
LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 362 p.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 18. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2005. 656 p.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 169 p.
Procuradora Federal lotada na PFE/Anatel, pertencente à Gerência de Contenciosa desta Agência. Sou Especialista em Direito Administrativo e em Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORELO, Ludimila Carvalho Bitar. Panorama da Ação Civil Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2014, 16:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39509/panorama-da-acao-civil-publica. Acesso em: 22 nov 2024.
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