Introdução
A evolução do conceito de jurisdição pode ser entendido como uma decorrência da influência da ideologia dominante nos períodos da história, sofrendo variações na forma de seu exercício conforme o momento e local, mas sendo possível identificar, não obstante esta variabilidade, um sentido para a publicização cada vez maior, resultante da monopolização da jurisdição pelo Estado e modernamente pela visão preponderante da jurisdição como uma função essencial para se assegurar um Estado Democrático de Direito.
É importante relembrar que no conceito romanístico de ação não havia direito sem ação e a todo direito correspondia uma ação. Nesta época os magistrados romanos somente poderiam atuar dentro das fórmulas predefinidas, ou seja, é possível afirmar que a jurisdição era limitada pelas ações previamente definidas na lei e estava vinculada ao direito subjetivo material a ser tutelado.
Este conceito perdurou por muitos séculos, limitando e restringindo a função jurisdicional do Estado a determinadas situações e de difícil acesso para as classes mais baixas da sociedade, sendo importante destacar que prevalecia uma atuação ainda acanhada do Estado frente ao exercício da jurisdição e uma forma bastante privatista do processo, concebido na forma de um contrato, em que dependia a decisão da aceitação pelas partes.
É importante destacar que a evolução do conceito do direito de ação como um direito autônomo e independente do direito subjetivo material do autor, mas como um direito potestativo em relação ao próprio Estado, teve um papel de suma importância para afastar a visão privatista e afirmar o pensamento publicista no conceito de jurisdição.
Se por um lado passou-se a entender que todo o cidadão possui o direito de levar ao Estado lesão ou ameaça de lesão a direito, para este também se estendeu o poder, a função de dizer o direito naquela situação ou em qualquer outra que lhe seja apresentada importando em seu pronunciamento uma medida eficaz que seja capaz de realizar a justiça e pacificar o conflito.
Esta evolução do pensamento deve-se também a concepção de que o processo é uma relação jurídica pública que vincula o Estado. Essa relação processual não se identifica com as relações jurídicas privadas que constituem matéria do debate judicial.
Desde o momento em que o Estado veda ao particular a autotutela ou autodefesa dos próprios interesses, permitindo-a apenas em algumas hipóteses restritas, assumiu para si a obrigação de solucionar os conflitos de interesses entre duas ou mais pessoas, ou entre pessoas físicas e jurídicas (inclusive o próprio Estado). Mesmo sendo permitida a auto-tutela, a atividade do agente não está fora do âmbito de controle do Estado, que através do Poder Judiciário, o exerce a posteriori. Portanto, o Estado, através de um de seus poderes, assumiu com exclusividade a jurisdição, garantindo-se o monopólio dela.
O direito de ação e a resposta do Estado
A ação é o direito subjetivo público à tutela jurisdicional do Estado, em face de uma lide. Quando o autor se dirige ao juiz, ele não suplica um favor, mas exerce um genuíno direito, direito de ação, que lhe foi outorgado pelo próprio Estado. A este direito corresponde, via de conseqüência, uma obrigação do Estado, de manifestar-se sobre o pedido formulado, para deferi-lo ou indeferi-lo, conforme esteja ou não tutelado pelo direito objetivo. No momento em que o autor se dirige ao juiz, exercendo o direito de ação, nasce aí uma relação jurídica entre o autor e o juiz. Ao direito do primeiro, corresponde a obrigação do segundo de responder. A jurisdição é que dá a resposta ao pedido formulado pelo autor.
Hoje não é mais possível pensar na jurisdição de forma tão limitada tal como ocorria no Direito Romano. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional estendeu a jurisdição a qualquer ameaça ou lesão a direito, assegurando a todos a possibilidade de levar à apreciação do poder judiciário qualquer situação, ainda que não haja uma ação ou remédio processual expressamente previsto na legislação.
A ampliação do acesso à Justiça e a própria expansão da litigiosidade, muito em decorrência da simplificação dos procedimentos verificada com a adoção dos Juizados Especiais, impôs aos tribunais uma posição mais ativa, mais enfática.
Já se disse que "o controle crescente da justiça sobre a vida coletiva é um dos maiores fatos políticos deste final do século XX” (Antoine Garapon)
À medida que a atuação do Estado tornou-se mais intensa, a justiça passou a sofrer a pressão de uma demanda crescente, não existindo nenhuma intervenção pública que possa ser subtraída da apreciação do juiz, agindo não só para resolver os litígios, mas também em encontrar soluções aos problemas que as outras instituições não puderam resolver.
A função do Poder Judiciário na atualidade
A sociedade hoje espera da justiça o dever de defesa da liberdade, de aplacar as tensões sociais, de tutelar o meio ambiente, de conter as tendências de abuso do poder, de impor penas, de defender os cidadãos, muitas das vezes interferindo o judiciário nas demais funções estatais, seja legislando, seja substituindo o administrador público em suas atribuições legais.
A justiça hoje vem crescentemente influenciando a vida cotidiana.
Hoje cabe ao juiz encontrar soluções, ainda que nas lacunas da lei, para a solução dos inúmeros casos que lhe são diariamente apresentados, aproximando-se da sociedade e buscando assegurar uma efetiva prestação jurisidicional, que ainda que não se encaixe em nenhuma definição prevista na legislação.
Ainda que a legislação preveja limites formais para a apresentação das demandas ao Judiciário, e as condições da ação são exemplos hoje para se justificar uma seletividade para a atuação do Judiciário na legislação brasileira, a publicização da jurisdição e o princípio da inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário relativizaram e muito estes limites formais.
A publicização do processo e a socialização do direito, acabaram por mitigar e muito a aplicação do princípio da inércia e o da busca da verdade formal, impondo-se aos juízes que atuem de forma proativa na busca da verdade real, já não mais se posicionando como meros espectadores do embate jurídico entre as partes, imparciais mas atuantes em prol da realização da justiça.
Se por um lado é bom que os cidadãos tenham o acesso à justiça facilitado, o ativismo judicial, que tem levado a uma judicialização exacerbada na sociedade, permite perceber claramente uma "invasão" do Judiciário na esfera administrativa, atuando no lugar do gestor/administrador.
Hoje, por alguns exemplos, pode-se afirmar que muitos magistrados se preocupam mais em questões sociais do que com a função originária da jurisdição que seria dizer, aplicar o direito, atuando mesmo em algumas situações contra a vontade da lei, mas de acordo com seu convencimento.
Conclusão
Alegando-se a inércia do Legislativo em diversas questões e a má administração pelo Executivo, o Judiciário vem atuando em substituição a estes Poderes.
Entendo que esta não foi a intenção do Poder Constituinte ao prever situações de exceção a atuação predominante dos poderes, pois hoje vemos um judiciário que legisla, ante a ausência de uma norma positivada ou que exerce atribuições do Executivo, quando este, no seu entendimento, falha.
Apesar de entender importante o princípio do acesso universal à jurisdição e da inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário, entendo que deveriam existir limites para a atuação do Poder Judiciário quando atuasse contra atos do Poder Executivo ou por omissão do Poder Legislativo, de forma a não comprometer a harmonia que deve existir entre estes Poderes e que hoje entendo encontrar-se abalada, pois nitidamente o Poder Judiciário vem extrapolando suas funções constitucionais.
É importante uma definição mais clara e objetiva de limites para a atuação judicial, pois hoje o Judiciário é que detém o poder de decisão no Estado Brasileiro e muitas das vezes estas decisões se apresentam mais políticas que jurídicas, gerando uma sensação de insegurança e imprevisibilidade em relação ao que está previsto na lei e a forma como será interpretado e aplicado pelos tribunais.
Referências
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. 2ª ed., Rio
de Janeiro: Revan, 2001
MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Jurisdição, ação e processo à luz da processualística moderna: para onde caminha o processo?. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 64, 1abr. 2003 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3902>. Acesso em: 25 nov. 2012.
PEGORARO JUNIOR, Paulo Roberto. O neoprocessualismo e a publicização normativa como corolário da unidade processual sistêmica. Uma afirmativa da jurisdição constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2650, 3 out.2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17540>. Acesso em: 25 nov. 2012.
VIEIRA, Anderson Novaes; PILZ, Nina Zinngraf et al. Natureza jurídica da ação e do processo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1ago. 2002 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3078>. Acesso em: 25 nov. 2012.
Procurador Federal desde 2003. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB. Atualmente cursando Mestrado em Políticas Públicas pelo IPEA/ESAF. É o Chefe da Divisão de Pessoal da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Brasília, órgão da Advocacia Geral da União - AGU, com atuação na consultoria e assessoramento jurídicos do INSS em matéria de pessoal - servidor público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALEX DA COSTA GRAçANO, . O conceito de jurisdição e o ativismo judicial no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39707/o-conceito-de-jurisdicao-e-o-ativismo-judicial-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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