INTRODUÇÃO
O presente artigo discorre acerca das consequências decorrentes da transposição dos servidores públicos federais do regime celetista para o regime jurídico único, inaugurado pela redação original do art. 39, da Constituição Federal e instituído pela Lei nº 8.112/90, no que toca ao pagamento destacado de antecipações salariais decorrentes de planos econômicos.
Muito já se discutiu sobre o assunto. Hoje, porém, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União possuem entendimento pacificado sobre o assunto. A despeito disso, decisões judiciais esparsas, especialmente no âmbito da Justiça do Trabalho, ainda resistem em adotar a orientação dada pelo TCU e o entendimento adotado pelo STF, resultando no enriquecimento ilícito de servidores beneficiados por sentenças, à custa do Erário, sob o equivocado argumento de cumprimento à coisa julgada.
Essa realidade vem trazendo grandes distorções nos quadros de pessoal dos órgãos públicos do Poder Executivo, pois há servidores, com as mesmas atribuições e na mesma posição na carreira, com diferenças salariais de quase 30% (no caso dos 26,05%, da URP), podendo chegar a 84,32% (Plano Collor).[1]
O REGIME JURÍDICO ÚNICO
“Em sua redação originária, dispunha o art. 39, caput, da CF, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deveriam instituir, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.” [2]
“Muita polêmica se originou desse mandamento, porquanto, não tendo sido suficientemente claro, permitiu o entendimento, para uns, de que o único regime deveria ser o estatutário, e para outros o de que a pessoa federativa poderia eleger o regime adequado, desde que fosse único. Na verdade, nunca foi dirimida a dúvida. O certo é que havia entidades políticas em que se adotou o regime estatutário, ao lado de outras (sobretudo Municípios), nas quais adotado foi o regime trabalhista.”[3]
O sistema do regime jurídico único foi abolido pela EC nº 19/98. Contudo, enquanto vigente, adotou-se na esfera federal o regime estatutário para seus servidores, instituído pela Lei nº 8.112/90. Por isso, os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime por ela instituído foram transformados em cargos, culminando na transposição do regime celetista para o estatutário.
“À época, entendeu o legislador, com amplo respaldo na doutrina, que o regime estatutário mostrava-se mais adequado para reger as relações entre os servidores e a Administração, uma vez que esta, não possuindo organização tipicamente empresarial, enfrentaria diversos inconvenientes se adotasse o vínculo de natureza contratual com seus agentes.”[4]
A alteração do regime resultou em inúmeros desdobramentos, especialmente quanto ao pagamento de antecipações salariais decorrentes de planos econômicos, acarretando na propositura de inúmeras ações judiciais em face da União, cujo pleito era obstar a exclusão do pagamento destacado dos reajustes decorrentes de planos econômicos, incorporados aos vencimentos/proventos dos servidores.
DIFERENÇAS SALARIAS. PLANOS ECONÔMICOS. LIMITE.
Os reajustes salariais decorrentes de planos econômicos e URP’s tinham natureza de antecipação salarial e foram criados para que os trabalhadores não se sujeitassem aos efeitos da inflação – na época galopante – no ano inteiro até o reajuste do ano seguinte.
Nesse sentido configura-se o percentual de 26,05%, relativo à URP do Plano Verão/89, cujo dispositivo legal (Medida Provisória nº 32, de 16.01.1989, posteriormente convertida na Lei nº 7.730/89, revogadora do DL nº 2.335/1987) atestava seu caráter de antecipação salarial a ser compensada com reajustes futuros.
Da mesma forma, o índice de 84,32% tinha caráter de antecipação salarial, a ser posteriormente compensada em reajustes futuros, consoante expressa dicção do art. 3º, inciso I, da Lei nº 7.788/89:
“Art. 3º Aos trabalhadores que percebam mais de 3 (três) salários mínimos mensais aplicar-se-á, até o limite referido no artigo anterior, a regra nele contida e, no que exceder, as seguintes normas:
I - até 20 (vinte) salários mínimos mensais será aplicado o reajuste trimestral, a título de antecipação, em percentual igual à variação acumulada do Índice de Preços ao Consumidor - IPC verificada nos três meses anteriores, excluída a percentagem que exceder, dentro de cada mês, a 5% (cinco por cento). A percentagem que exceder a 5% (cinco por cento), dentro de cada mês, implicará reajuste igual a esse excedente no mês seguinte àquele em que ocorrer o excesso.”
Como se vê, em qualquer plano econômico, os percentuais concedidos sempre mantiveram natureza de antecipação salarial, de forma que, a partir da modificação do quadro normativo, sobretudo de índole constitucional, os fatos ulteriores configuram outra realidade, sujeitando-se à incidência da lei nova.[5]
Ou seja, com a transposição do regime celetista para o estatutário, não há se falar em direito adquirido à manutenção de vantagens auferidas naquele regime de direito privado.
Os percentuais relativos a planos econômicos tinham natureza de antecipação salarial, conforme entendimento pacificado no âmbito do TST – Enunciado nº 322, segundo o qual “os reajustes salariais decorrentes dos chamados ‘gatilhos’ e URPs, previstos legalmente como antecipação, são devidos tão-somente até a data-base de cada categoria.” Ou seja, os índices consistem em simples antecipações, não se incorporando à remuneração dos servidores.
DA AUSÊNCIA DE OFENSA À COISA JULGADA
A ofensa à coisa julgada é um dos argumentos utilizados para manutenção das vantagens pecuniárias, decorrentes dos planos econômicos, após a edição da Lei nº 8.112/90.
A coisa julgada pressupõe a mesma base fática, situação inexistente ante a alteração de regime. O regime jurídico, por decorrer de lei, pode ser alterado e as verbas anteriores podem ser suprimidas, ter sua nomenclatura modificada ou serem incorporadas pelo novo padrão de vencimentos.
Desse modo, a sentença judicial que reconheceu, sob a égide celetista, o direito a percepção de reajustes devidos em razão do contrato de trabalho, tem força de lei apenas e tão-somente nos limites da lide e das questões decididas, por força do art. 468 do CPC, sendo que os efeitos da coisa julgada se protraem somente enquanto durarem as circunstâncias presentes quando de sua formação.[6]
Por isso, a coisa julgada trabalhista não pode prevalecer após mudança do regime celetista para o regime jurídico único, já que, extinto o contrato de trabalho por força de lei, impõe-se o acolhimento do novo regime jurídico como o único a regular a matéria.
Nesse sentido é a jurisprudência pacífica do col. STF, segundo o qual, com o advento da lei nº 8.112/90, não há direito adquirido ao regime jurídico e às vantagens concedidas sob a égide da CLT, pois não é possível a coexistência de vantagens pertencentes a regimes jurídicos distintos:
“(...) 5. Ausência de omissão. O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se quanto à redução nominal, afirmando que, com a conversão do regime celetista para o estatutário, operou-se a extinção do contrato de trabalho, não sendo possível invocar a coisa julgada nem direito adquirido (CF, art. 5º, XXXV).
(...)
7. Embargos de Declaração rejeitados.” (ED no MS nº 24.381/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 03/08/2006, DJ de 01/09/2006, p. 48) (grifei)
“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS. CELETISTAS CONVERTIDOS EM ESTATUTÁRIOS. DIREITO ADQUIRIDO: AUSÊNCIA EM RELAÇÃO A VANTAGENS DE REGIME DIVERSO. DECESSO REMUNERATÓRIO NÃO COMPROVADO. GARANTIA DA CONTAGEM RECÍPROCA DO TEMPO DE SERVIÇO. LEI Nº 8.112/90, ART. 67 E 100. LEI Nº 1.162/91, ART. 7º, INCISOS I E III. 1. Constata-se a legitimidade passiva do TCU, quando aquela corte baixa em diligência ato de aposentadoria, o qual, uma vez revisto, merece a aprovação da Corte de Contas. 2. O cômputo do prazo decadencial conta-se da edição do 2º ato de aposentadoria, pois é contra este que se rebela o impetrante. 3. Cristalizou-se o direito do impetrante à contagem do tempo de serviço para todos os fins, na forma do art. 100 da Lei nº 8.112/90. Daí decorre o reconhecimento do direito à percepção de anuênios. No RE 221.946, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 26/2/99, o Plenário reconheceu a inconstitucionalidade dos incisos I e III do art. 7º, da Lei nº 8.162/91. Pedido deferido para este efeito. 4. Não há direito adquirido a regime jurídico. Não ocorrendo diminuição da remuneração global recebida, não há se falar que as parcelas percebidas ao tempo de seu ingresso regime jurídico único da Lei nº 8.112/90 tenham se incorporado ao patrimônio jurídico do servidor. Não tendo o impetrante se desincumbido de comprovar o decesso remuneratório que ocorreria se a gratificação fosse suprimida ao tempo de seu ingresso no regime jurídico único, não há como se deferir o pedido de incorporação do que recebido a título de gratificação especial com base no princípio da irredutibilidade de vencimentos (art. 37, XV da CF). 5. Mandado de Segurança parcialmente concedido.” (STF: MS nº 22.094/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, j. 02/02/2005, DJU de 25/02/2005, p. 06).
“TRABALHISTA. ACÓRDÃO QUE AFASTOU O DIREITO DE REAJUSTE SALARIAL COM BASE NO IPC DE ABRIL/90 EM PERCENTUAL DE 84, 32%; NA URP DE FEVEREIRO DE 1989, EM PERCENTUAL DE 26,06%; E NO IPC DE JUNHO DE 1987 (PLANO BRESSER), COM BASE EM 26,05%. Matérias já pacificadas no STF no sentido de que não cabe a garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, para a invocação dos aludidos reajustes salariais. Agravo regimental improvido.” (AI 184853 AgR / MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, Julgamento 03.09.1996, Primeira Turma, DJ 22.11.1996).
Portanto, a percepção de reajustes ou acréscimos reconhecidos como devidos em razão dos contratos de trabalho, sob a égide celetista, somente devem integrar o vencimento até a transformação do emprego em cargo público, não havendo se cogitar de autoridade da coisa julgada.
O Tribunal de Contas da União, buscando expurgar atos administrativos que, a pretexto de cumprirem sentenças judiciais protegidas sob o manto da coisa julgada, incorporaram – que se diga de forma irregular e ilegal – parcelas não devidas nos vencimentos dos servidores, mantendo os efeitos da incorporação mesmo após o enquadramento dos servidores no novo regime jurídico, expediu determinações contidas no Acórdão nº 2.161/2005, com a seguinte ementa:
“REPRESENTAÇÃO. PAGAMENTO DE VANTAGENS ORIUNDAS DE PLANOS ECÔNOMICOS. DETERMINAÇÃO. Considera-se procedente representação que versa sobre distorções introduzidas na remuneração do serviço público federal, derivadas do incorreto processamento de vantagens oriundas de planos econômicos, deferidas com base em sentenças judiciais transitadas em julgado, para determinar à Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento que, entre outras medidas, promova as modificações no sistema Siape, a fim de que as rubricas referentes às sentenças judiciais sejam pagas em valores nominais, e não com base na aplicação contínua e automática de percentuais parametrizados sobre todas as parcelas salariais do servidor.” (TCU: Acórdão 2161/2005 – Plenário, 07/12/2005)
A recomendação feita pelo TCU teve por finalidade corrigir distorções que, a pretexto de cumprirem decisão judicial, vinham levando a pagamentos indevidos em situação de verdadeiro enriquecimento ilícito de servidores.
Do mesmo modo, o ato do TCU não ofende a coisa julgada, já que não restringiu efeitos já exauridos por decisões judiciais, Apenas buscou-se restringir efeitos de ato administrativo ilegal que, extrapolando os limites de decisões judiciais, vinha concedendo o que não fora deferido, causando enormes distorções nos quadros de pessoal dos órgãos públicos do Poder Executivo, pois há servidores, com as mesmas atribuições e na mesma posição na carreira com diferenças salariais de quase 30% (no caso da URP – 26,05%), podendo a diferença chegar até 84,32% (Plano Collor).
Cumpre transcrever trecho do voto do Min. Relator Walton Alencar Rodrigues, proferido no Processo nº 19.074/2005-0 do TCU:
“Os efeitos deletérios causados aos cofres públicos pelo desvirtuamento dado aos provimentos judiciais relativos a vantagens de planos econômicos fazem-se sentir, principalmente, na aplicação continuada de índices percentuais sobre todas as parcelas integrantes da remuneração dos servidores, mesmo após ocorrerem significativas mudanças da estrutura salarial do funcionalismo público. Tal distorção equivale a reconhecer direito adquirido a regime de vencimentos, o que é veementemente repelido pela jurisprudência, a exemplo do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 241,884/ES, publicado no DJ de 12.09.2003.”
CONCLUSÃO
Diante do que foi aqui exposto, resta claro que os servidores regidos pela CLT, ao serem submetidos ao regime estatutário, não podem conservar, além dos novos direitos, diferenças salariais reconhecidas em sentença trabalhista.
A partir do momento em que houve a transposição para o regime jurídico único, cessaram-se os efeitos da sentença trabalhista, sendo que a coisa julgada, por força do art. 468, do CPC, se estende apenas enquanto durarem as circunstâncias presentes quando da sua formação.
A recomendação do TCU, longe de denotar ofensa à coisa julgada, teve por finalidade corrigir distorções que, a pretexto de cumprir decisão judicial, vinha acarretando pagamentos indevidos em situação de verdadeiro enriquecimento ilícito de servidores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
BRASIL. Tribunal de Contas da União: Acórdão nº 2161/2005 – Plenário. Data: 07/12/2005. Disponível em <http://www.tcu.gov.br>. Acesso em 04.06.2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal: RE 146331 EDv/SP – São Paulo, Rel. Min. Cezar Peluso, Julgamento: 23/11/2006 – Tribunal Pleno. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 05.06.2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça: AgRg no Recurso Especial nº 1.287.201 – MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Julgamento: 08/04/2014 – Primeira Turma. Disponível em <http:www.stj.jus.br>. Acesso em 05.06.2014.
Notas:
[1] TCU: Acórdão nº 2161/2005 – Plenário. Data: 07/12/2005. Disponível em <http://www.tcu.gov.br>. Acesso em 04.06.2014
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 527.
[3] Idem, ibidem
[4] ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 214.
[5] STF: RE 146331 EDv/SP – São Paulo, Rel. Min. Cezar Peluso, Julgamento: 23/11/2006 – Tribunal Pleno. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 05.06.2014.
[6] STJ: AgRg no Recurso Especial nº 1.287.201 – MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Julgamento: 08/04/2014 – Primeira Turma. Disponível em <http:www.stj.jus.br>. Acesso em 05.06.2014.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Flavia de Andrade Soares. A transposição para o regime jurídico único e a ausência de ofensa à coisa julgada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39757/a-transposicao-para-o-regime-juridico-unico-e-a-ausencia-de-ofensa-a-coisa-julgada. Acesso em: 22 nov 2024.
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