RESUMO: Há uma controvérsia envolvendo a revogação da suspensão condicional do processo após a expiração do período de prova, caso haja, por parte da acusação, a demonstração de que o contraente do 'sursis processual' descumpriu as condições do termo designado para suspender o feito. Afinal, é ou não possível cassar o benefício e reativar a persecução penal após o alcance do termo estipulado como período de prova? O presente estudo visa apresentar respostas a essas e outras perguntas relacionadas com o instituto da suspensão condicional do processo, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 9.099/95. Serão examinados os posicionamentos doutrinários e a jurisprudência sobre o tema.
Palavras-chave: Suspensão condicional do processo. Cumprimento das condições impostas. Término do período de prova. Extinção da punibilidade.
1. INTRODUÇÃO
A Suspensão Condicional do Processo (SCP) prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, é um instituto de despenalização, uma alternativa à jurisdição penal que tem natureza penal material. Busca evitar o início do processo em crimes cuja pena mínima não ultrapasse 1 ano (pena ≤ 1ano), quando o acusado não for reincidente em crime doloso e não esteja sendo processado por outro crime. Além disso, devem ser observados aspectos subjetivos da personalidade do agente.
Uma vez preenchidos os requisitos legais, a suspensão do processo é um direito do acusado. Logo, o termo utilizado no caput do artigo 89, da Lei 9.099/95, "poderá", indicando que o Ministério Público teria a faculdade de propor ao acusado a suspensão condicional do processo, em verdade deve ser entendido como um "deverá".
Vale dizer que, de acordo com os ensinamentos de Damásio de Jesus[1], o instituto disciplinado no artigo 89 é aplicável dentro e fora do Juizado Especial Criminal. A conclusão n.2 da Comissão Nacional de Interpretação da Lei 9.099 /1995 diz o seguinte: "São aplicáveis pelos juízos comuns (estadual e federal), militar e eleitoral, imediata e retroativamente, respeitada a coisa julgada, os institutos penais da Lei 9099, como a composição civil extinta da punibilidade (art. 74, parágrafo único), transação (arts. 72 e 76), representação (art. 88) e suspensão condicional do processo (art. 89)".
Assim, a SCP se aplica não só ao rito sumaríssimo, mas a qualquer procedimento, podendo ser oferecida inclusive em crimes não considerados de menor potencial ofensivo. A aceitação da proposta pelo acusado não implica confissão, reconhecimento de culpa ou de responsabilidade, assim como na Transação Penal.
Aceita pelo réu a proposta oferecida pelo Ministério Público, o juiz homologa o acordo e pode impor outras condições da suspensão, após, é claro, verificar sua legalidade e se a denúncia seria recebida.
Após a homologação, o acusado entra num período de prova que pode durar entre 2 (dois) e 4 (quatro) anos, no qual ele terá que cumprir certas obrigações impostas no acordo, como a proibição de frequentar certos lugares ou comparecer mensalmente em juízo, para ao final ver decretada a extinção da punibilidade. Justifica-se propor maior período de prova conforme a natureza e gravidade da infração, lembrando ainda que na suspensão do processo o que vale é a pena em abstrato.
2. DESENVOLVIMENTO
A questão controvertida se apresenta quando, expirado o período de prova, a extinção da punibilidade deve ser decretada de forma automática ou apenas depois de verificado o cumprimento das condições impostas na suspensão.
Conveniente atentar para o ensinamento de Nereu Giacomolli[2] (2009, ps. 232-233): “As hipóteses impeditivas de extinção de punibilidade (revogação obrigatória e facultativa) são verificáveis durante o lapso temporal da suspensão. A extinção da punibilidade do imputado, com o término do prazo, sem pedido de revogação, demonstrado em circunstâncias fáticas e jurídicas (fundamentado), insere-se no rol dos direitos e garantias fundamentais do imputado. Cabe ao Estado, detentor do ius puniendi, durante o prazo de suspensão, ser diligente, fiscalizar não só o cumprimento das condições, mas também eventuais causas de revogação. Findo o prazo da suspensão, possíveis situações que acarretariam a revogação, estão consolidadas e superadas pela dinâmica processual e temporal.”
No entanto, não nos parece razoável o entendimento de que o cumprimento das condições possa ser aferido somente dentro do período de prova sendo que, decorrido o prazo do benefício, sem revogação, deve ser declarada a extinção da punibilidade.
A melhor doutrina leciona que o benefício da suspensão condicional do processo pode ser revogado após o período de prova, desde que os fatos que ensejaram a revogação tenham ocorrido antes do término deste período. Com base nesse entendimento, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu habeas corpus em que o denunciado pela prática do crime de estelionato (CP, art. 171 , caput) sustentava que a revogação da suspensão condicional do processo, depois de findo o período de prova, não poderia subsistir. Assentou-se que, na espécie, o paciente não cumprira duas das condições impostas por ocasião da suspensão do seu processo, quais sejam: a) a reparação do dano causado à vítima e b) o pagamento de cesta básica.[3]
Com efeito, se restar verificado que o réu descumpriu alguma condição, deve o Ministério Público requerer a designação de audiência de justificação, a fim de colher as razões do descumprimento e com base nestas, pleitear a prorrogação ou revogação do benefício.
Aliás, conforme entendimento unânime do Supremo Tribunal Federal, por suas duas Turmas, a suspensão condicional do processo pode ser revogada, mesmo após o termo final do seu prazo, e antes que tenha sido proferida sentença extintiva da punibilidade, se constatado o não cumprimento de condição imposta durante o curso do benefício.
Nesse sentido, vejamos:
HABEAS CORPUS – LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS – TRANSAÇÃO PENAL – DESCUMPRIMENTO: DENÚNCIA – SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – REVOGAÇÃO – AUTORIZAÇÃO LEGAL – 1. Descumprida a transação penal, há de se retornar ao status quo ante a fim de possibilitar ao Ministério Público a persecução penal (Precedentes). 2. A revogação da suspensão condicional decorre de autorização legal, sendo ela passível até mesmo após o prazo final para o cumprimento das condições fixadas, desde que os motivos estejam compreendidos no intervalo temporal delimitado pelo juiz para a suspensão do processo (Precedentes). Ordem denegada. (STF – HC 88785 – SP – 2ª T. – Rel. Min. Eros Grau – DJU 04.08.2006 – p. 78)
SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – REVOGAÇÃO – 1. Nos termos do art. 89, da L. 9.099/95 – cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo plenário, em 16.12.99, no RHC 79.460, Nelson Jobim, DJ 18.5.01 – não cabe a suspensão condicional do processo quando o acusado esteja sendo processado ou já tiver sido condenado por outro crime. 2. Não satisfeito o "pressuposto negativo" imposto pela própria Lei, ainda que o fato objeto do processo e superveniente condenação tenham ocorrido antes do termo inicial da suspensão do processo, pode ser revogado o benefício após o termo final do seu prazo: precedente (HC 80.747, Pertence, DJ 19.10.2001). (STF – HC 84458 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 10.12.2004 – p. 00041)
E o entendimento do Pretório Excelso é seguido pela doutrina. Na obra "Juizados Especiais Criminais - Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995" de Ada Pellegrini Grinover et alii (Ed. RT, 3ª ed., 1999, São Paulo), encontra-se o seguinte:
"Presentes os requisitos legais, o juiz poderá suspender o processo submetendo o acusado a período de prova (art. 89, § 1º). Período de prova consiste no lapso temporal em que o acusado que aceitou a suspensão deve cumprir determinadas condições. É sobretudo durante o período de prova que o acusado deve demonstrar autodisciplina e senso de responsabilidade. Para conquistar seu maior desideratum, que é a extinção da punibilidade, deve dar mostras de sua ressocialização, de seu bom comportamento. O período de prova existe precisamente para isso, é dizer, para mostrar a desnecessidade da pena de prisão no caso concreto. A suspensão tem por fundamento inclusive essa desnecessidade da pena de prisão. É esse pressuposto abstrato que deve ser comprovado em concreto. É durante o período de prova, em síntese, que se pode concretizar o plano acordado na audiência conciliatória (na transação), que foi estabelecido, aprioristicamente, como suficiente para ocupar o lugar da pena de prisão." (p. 310)
E mais adiante afirmam os doutrinadores da referida obra:
“O § 5º do art. 89 diz: "Expirado o prazo sem revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade". Isso não significa que mesmo depois de expirado o prazo não possa o juiz revogar a suspensão. Pode. A melhor leitura do dispositivo invocado é a seguinte, portanto: expirado o prazo sem ter havido motivo para a revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade. Mesmo que descoberto esse motivo após expirado o prazo, pensamos que pode haver revogação." (p. 327)
Assim, com base nos ensinamentos acima transcritos, tem-se que o Juízo, antes de declarar extinta a punibilidade, deve determinar que se comprove o cumprimento de todas as condições estabelecidas quando da aceitação da proposta de suspensão, não sendo suficiente apenas o transcurso do período de prova.
Comprovado que o réu cumpriu todas as condições, aí sim poderá ser declarada extinta a punibilidade nos termos da lei, antes não.
Verificando-se que o réu descumpriu uma das condições, impõe-se a revogação do benefício, nos moldes do art. 89, §§ 4º e 5º, da Lei 9099/95.
3. CONCLUSÃO
A melhor interpretação do art. 89, § 4º, da Lei 9.099/95 leva à conclusão de que não há óbice a que o juiz decida pela revogação da suspensão condicional do processo após o final do período de prova. Embora o instituto da suspensão condicional do processo constitua importante medida despenalizadora — estabelecida por questões de política criminal, com o objetivo de possibilitar, em casos previamente especificados, que o processo não chegasse a iniciar-se —, o acusado deve saber se valer do favor legal que lhe foi conferido, demonstrando o necessário comprometimento com a justiça.
Neste contexto, conclui-se que em havendo o descumprimento das condições impostas, a suspensão poderá ser revogada mesmo após expirado o período de prova, retomando-se o curso do processo penal, vindo o acusado a ocupar novamente a posição de réu.
REFERÊNCIAS
JESUS, Damásio de. “Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada”, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GIACOMOLLI, Nereu José. “Juizados Especiais Criminais: Lei 9.099/95: abordagem crítica” 3ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
GRINOVER, Ada Pelegrini, "Juizados Especiais Criminais - Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995", Ed. RT, 3ª ed., 1999, São Paulo, pp. 310 e 327.
[1] JESUS, Damásio de. “Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada”, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[2] GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados Especiais Criminais: Lei 9.099/95: abordagem crítica. 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
[3] HC 97527/MG , rel. Min. Ellen Gracie, 16.6.2009. (HC-97527)
Procuradora Federal em exercício na Procuradoria-Seccional Federal em Campinas/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BITTENCOURT, Isabela Cristina Pedrosa. Cumprimento das condições na suspensão condicional do processo e a extinção da punibilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39821/cumprimento-das-condicoes-na-suspensao-condicional-do-processo-e-a-extincao-da-punibilidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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