INTRODUÇÃO
Muito se tem questionado acerca da responsabilidade do Estado, por meio de sua entidade de proteção e promoção aos índios – Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sobre atos praticados por indígenas.
São inúmeros, nas mais diversas Seções Judiciárias, os processos judiciais nos quais se busca a condenação do Estado ao pagamento de indenização por danos morais e/ou materiais decorrentes de atos atribuídos a índios ou comunidades indígenas.
O presente artigo busca analisar os limites da responsabilidade do Estado, mais especificamente da FUNAI, sobre atos praticados por indígenas.
DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. ATO OMISSIVO.
A responsabilidade civil do Estado passou por várias fases, dentre elas, a da irresponsabilidade, a da responsabilidade subjetiva, e, por fim, a da responsabilidade objetiva, prevista no art. 37, § 6o, da CF, segundo o qual, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso.
Não há dúvidas de que a responsabilidade por atos comissivos do Estado é objetiva. Não é, entretanto, o que ocorre na espécie.
Em caso de atos omissivos estatais, reconhece-se a responsabilidade subjetiva do Estado, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual a omissão do Estado deve ser tratada no âmbito da responsabilidade subjetiva. Confira-se (in (Curso de Direito Administrativo, 17a ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 893):
“Parece-nos que a solução correta do problema, à luz dos princípios inerentes ao Estado de Direito - prescindindo-se, pois, de disposições particulares porventura estabelecidas nos Direitos Positivos Constitucionais -, exige o discrímen de três situações distintas, a saber:
a) Casos em que é o próprio comportamento do Estado que gera o dano. Trata-se, portanto, de conduta positiva, é dizer, comissiva, do Estado.
b) Casos em que não é uma atuação do Estado que produz o dano, mas, por omissão sua, evento alheio ao Estado causa um dano que o Poder Público tinha o dever de evitar. É a hipótese da "falta de serviço", nas modalidades em que o "serviço não funcionou" ou "funcionou tardiamente" ou, ainda, funcionou de modo incapaz de obstar à lesão. Excluiu-se apenas o caso de mau funcionamento do serviço em que o defeito de atuação é o próprio gerador do dano, pois aí estaria configurada conduta comissiva produtora da lesão. Trata-se, aqui, apenas, de conduta omissiva do Estado ensejadora (não causadora) de dano.
c) Casos em que também não é uma atuação do Estado que produz o dano, contudo é por atividade dele que se cria a situação propiciatória do dano, porque expôs alguém a risco (em geral embora nem sempre - em razão da guarda de coisas ou pessoas perigosas). Nestas hipóteses pode-se dizer que não há causação direta e imediata do dano por parte do Estado, mas seu comportamento ativo entra, de modo mediato, porém decisivo, na linha de causação.” (grifo nosso)
Para esse autor, a omissão não causa, enseja o dano. Quer dizer, é condição para que ocorra o dano.
Significa que se o dano ocorreu é porque foi causado por outro evento, e não pelo Estado. A responsabilidade, nesse caso, não é objetiva, eis que a ninguém é dado responder pelo que não fez. Conclui o ilustre autor:
“Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.
Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as conseqüências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabilidade subjetiva.
Não bastará, então, para configurar-se responsabilidade estatal, a simples relação entre ausência do serviço (omissão estatal) e o dano sofrido. Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir um certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada; significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico. (...)
Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão normal tipificador da obrigação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da eficiência há de ser apurada em função do meio social, do estado de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso. (...)
Em síntese: se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos.
Reversamente, descabe responsabilizá-lo se, inobstante atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia.
Compreende-se que a solução indicada deva ser a acolhida. De fato, na hipótese cogitada o Estado não é o autor do dano. Em rigor, não se pode dizer que o causou. Sua omissão ou deficiência haveria sido condição do dano, e não causa. Causa é o fator que positivamente gera um resultado. Condição é o evento que não ocorreu, mas que, se houvera ocorrido, teria impedido o resultado.
É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver de direito obrigado a impedi-los.” (ob. cit., p. 896/7).
Os fundamentos da responsabilidade por omissão são o descumprimento de um dever legal e, consequentemente, a ilicitude.
Com efeito, a responsabilidade subjetiva só ocorre na conduta ilícita. A conduta é ilícita porque não houve cumprimento de um dever legal. O não fazer do Estado gera indenização. O Estado tinha o dever de fazer, mas não fez.
Para haver a responsabilidade subjetiva (culpa do serviço ou culpa do agente), deve haver o descumprimento de um dever legal.
Em suma, só se responsabiliza o Estado quando tiver a obrigação de evitar o dano, obrigação que se verifica quando deveria e poderia atuar, mas não o fez.
Este, por sinal, o entendimento do c. STF. Confira-se:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO: DETENTO FERIDO POR OUTRO DETENTO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º.
I. - Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, em sentido estrito, esta numa de suas três vertentes -- a negligência, a imperícia ou a imprudência -- não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço.
II. - A falta do serviço -- faute du service dos franceses -- não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro.
III. - Detento ferido por outro detento: responsabilidade civil do Estado: ocorrência da falta do serviço, com a culpa genérica do serviço público, por isso que o Estado deve zelar pela integridade física do preso.
IV. - RE conhecido e provido.” (RE 382054/RJ, relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 1.10.04).
É certo, por conseguinte, que nem toda conduta omissiva da Administração constitui fato gerador da responsabilidade civil do Estado.
A responsabilidade, em tal caso, é subjetiva, e requer a comprovação da culpa do réu – Estado, consubstanciada na omissão no cumprimento de um dever legal.
Na hipótese sob exame, portanto, a responsabilidade do Estado, acaso configurada, é subjetiva, eis que decorrente de suposto ato omissivo.
DA INEXISTÊNCIA DE CULPA IN VIGILANDO. REGIME TUTELAR NÃO RECEPCIONADO PELA CF/88.
A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, ente estatal responsável pela proteção e promoção dos direitos de indígenas, teve sua instituição autorizada pela Lei 5.371/67, a qual, em seu art. 1º, estabeleceu suas finalidades, verbis:
“I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir enumerados:
a) respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais;
b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existentes;
c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional;
d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas;
II - gerir o Patrimônio Indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e valorização;
III - promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sôbre o índio e os grupos sociais indígenas;
IV - promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios;
V - promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional;
VI - despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indigenista;
VII - exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.” (grifo nosso)
Observa-se, da leitura da lei instituidora, que as atribuições da FUNAI são direcionadas, em suma, à proteção e ao progresso dos indígenas, de suas respectivas comunidades e de seu patrimônio.
Merece destaque o “poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio”. Neste sentido, o art. 35 do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) estabelece que cabe à FUNAI a defesa judicial e extrajudicial dos direitos dos indígenas, sendo admissível, inclusive, a solicitação de auxílio às Forças Armadas e à Polícia Federal para assegurar a proteção de suas terras (arts. 34 e 36 da Lei 6.001/73).
A missão institucional da Fundação é, por conseguinte, a defesa dos direitos dos índios, que enseja o exercício do poder de polícia para sua proteção e de suas terras.
Com efeito, nos termos das Leis 5.371/67 e 6.001/73, a FUNAI não possui a atribuição de proteção de brancos por fatos praticados por indígenas. Entender de modo contrário significa subverter a ordem legal, que impõe à fundação o dever de proteger os índios e preservar seus direitos.
Inexiste previsão legal de responsabilidade subsidiária da FUNAI – e, portanto, do Estado – por danos decorrentes de atos praticados por indígenas, ou seja, de responsabilidade por culpa in vigilando.
Consoante dispõe o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, a responsabilidade por danos atribuídos a terceiros requer expressa previsão em lei, que inexiste para o Estado nas hipóteses de atos praticados por indígenas.
Observe-se, neste ponto, que não se aplica ao Estado, por meio da FUNAI, a responsabilidade indireta do tutor por negligência na guarda do tutelado, estabelecida no art. 932, II, do Código Civil. É que o art. 7º da Lei 6.001/73, que impõe aos índios não integrados à comunhão nacional a submissão ao regime tutelar, exercido pela Fundação Nacional do Índio, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
O art. 232 da Constituição Federal reconheceu expressamente aos indígenas, suas comunidades e organizações a capacidade processual, ou seja, a possibilidade de ser parte legítima para ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses.
Desta forma, uma vez reconhecida pela Constituição Federal a capacidade processual das comunidades indígenas, claro está o reconhecimento, de forma geral, à capacidade jurídica plena dos índios, prejudicando-se, via de conseqüência, o regime tutelar, o qual deixou de existir.
O Estatuto do Índio, ao ser tratado como norma regulamentadora da capacidade civil dos índios, prevendo a tutela dos índios não-integrados, afronta flagrantemente a Constituição Federal de 1988. É ilegítimo e até mesmo discriminador, violando o princípio da igualdade, razoabilidade e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, ao tratar o índio como incapaz.
Assim, uma vez que o regime tutelar dos indígenas não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, não há falar em culpa in vigilando, e, consequentemente, em responsabilidade solidária ou subsidiária do Estado por atos praticados por índios.
A solidariedade não se presume, pois resulta da lei ou da vontade das partes, conforme dispõe o art. 896 do Código Civil. A obrigação solidária possui verdadeiro caráter de exceção dentro do sistema, não se admitindo responsabilidade solidária fora da lei ou do contrato. Por conseguinte, não havendo expressa menção em eventual título constitutivo e/ou não havendo previsão legal, prevalece a presunção contrária à solidariedade.
CONCLUSÃO
Assim, uma vez que o regime tutelar dos indígenas não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, não há falar em culpa in vigilando, e, consequentemente, em responsabilidade solidária ou subsidiária do Estado por atos praticados por índios.
A solidariedade não se presume, pois resulta da lei ou da vontade das partes, conforme dispõe o art. 896 do Código Civil. A obrigação solidária possui verdadeiro caráter de exceção dentro do sistema, não se admitindo responsabilidade solidária fora da lei ou do contrato. Por conseguinte, não havendo expressa menção em eventual título constitutivo e/ou não havendo previsão legal, prevalece a presunção contrária à solidariedade.
Inafastável, por conseguinte, o entendimento de que não há responsabilidade civil do Estado por atos praticados por indígenas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 17a ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARENSI, Marcela de Andrade Soares. Responsabilidade civil do estado por atos praticados por índios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39912/responsabilidade-civil-do-estado-por-atos-praticados-por-indios. Acesso em: 22 nov 2024.
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