RESUMO: O texto busca analisar a alegada ofensa ao princípio da separação dos poderes pelo propósito constitucional do Mandado de Injunção e como, sob a escusa de salvaguardá-lo, a jurisprudência, por muito tempo, esvaziou de sentido a ação injuncional sob comento. Outrossim, o texto pontua o atual entendimento do STF sobre o assunto e, mais recentemente, o que disciplina o substitutivo ao projeto de Lei no. 6002/90, que regulamenta o Mandado de Injunção.
Segundo Luís Roberto Barroso, a Corte Suprema, quando se decidiu por equiparar os efeitos do mandado de injunção aos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o fez à luz de uma clássica e rígida visão do princípio da Separação dos Poderes[1]. Pode-se depreender o entendimento do autor a partir do julgamento do Ml 191-O-RJ, onde o Ministro Celso de Mello assentou:
“Esse novo writ não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo desempenho de funções que lhe são institucionalmente estranhas. O mandado de injunção não é o sucedâneo constitucional das funções político-jurídicas atribuídas aos órgãos estatais inadimplentes. Não legitima, por isso mesmo, a veiculação de provimentos normativos que se destinem a substituir a faltante norma regulamentadora sujeita a competência, não exercida, dos órgãos públicos. O STF não se substitui ao legislador ou administrador que se hajam abstido de exercer a sua competência normatizadora. A própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico impõe ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do Poder”[2].
Como se pôde perceber, o Supremo Tribunal Federal esvaziou as potencialidades do mandado de injunção sob a escusa de malferir a tripartição do poder com uma sua interferência em atos de exclusiva competência do Legislativo ou da Administração Pública. Entretanto, é de se concluir que os relevantes propósitos do mandado de injunção demandam uma leitura renovada do princípio em questão, a fim de evitar uma inversão de ordem, onde a discricionariedade dos Poderes Públicos se sobreleve à força normativa da Constituição. A respeito do engenho de Montesquieu, Valmir Pontes ponderou:
“Admirável enquanto formulação política, a idéia montesquiana de que a cada atividade governamental (legislativa, executiva e judiciária) deveria corresponder um determinado órgão específico
— de modo que cada órgão govemativo exercesse uma função ‘típica’ — não encontra hoje em dia, entretanto, fundamento jurídico-científico algum. [...] Assim, normalmente são tidos como órgãos govemativos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, a cada qual competindo de uma função preponderante, mas não exclusiva (ou ‘típica’, como se acreditava). Em princípio, ao órgão Executivo cabe a função preponderante de administrar, ao órgão legislativo a função preponderante de legislar e, ao órgão judiciário, a função preponderante de julgar (ou de exercer a jurisdição). Mas nem sempre assim foi, nem assim o é, em todos os lugares e momentos, de acordo com a distribuição de competências protagonizadas pela Constituição. Afora isto, é de ver que uma dada ordem jurídica positivada pode perfeitamente confiar ao Legislativo a tarefa judicante (entre nós, o Senado julga o Presidente da República pela prática de crimes de responsabilidade), ao Executivo a de legislar (editando, v.g., medidas provisórias com força de lei) e a todos, indistintamente o exercício da função administrativa (o ato de promoção de um servidor do Judiciário ou do Legislativo não são, definitivamente, atos jurisdicional e legislativo, respectivamente)”[3].
Dessa maneira, é à luz da sistemática de “freios e contrapesos”, onde os órgãos do Poder são reciprocamente controlados e fiscalizados, que deve se buscar interpretar o mandado de injunção, de molde a visualizá-lo como instrumento que confere ao Judiciário poderes para conter a inércia do Legislativo e da Administração Pública em concretizar, através de normas disciplinadoras, os direitos e garantias fundamentais.
Demais disso, o juiz ou tribunal, quando da concessão de ordem injuntiva, não transcende os seus limites institucionais porque não se requer, no bojo da ação de injunção, seja elaborada norma geral e abstrata, com eficácia erga omnes, mas tão-somente desenvolvida atividade tipicamente jurisdicional, que é assegurar in concreto o exercício de direito, liberdade ou prerrogativa constitucional à míngua de norma regulamentadora. Neste sentido, calha a observação de Sérgio Bermudes:
“Não se espere que, através do mandado de injunção, o Judiciário passe a legislar, substituindo os titulares do poder de expedir a regra regulamentadora, editando, então, ele próprio, normas de caráter geral, oponíveis erga omnes. Se isso acontecesse, se estaria, seguramente, perturbando o sistema de equilíbrio que a Constituição estabelece, e a função jurisdicional estaria maculada por conspícua inconstitucionalidade. Concedendo injunções, os juízes de todas as instâncias estarão exercendo, normalmente, a jurisdição, atuando a vontade concreta da lei, mediante sentenças suscetíveis de fazer coisa julgada somente às partes entre as quais forem dadas, sem nenhuma eficácia extravazante.[4]
Com efeito, repita-se, a criação de norma especial ou adoção de medida idônea a proteger o direito constitucional vindicado em ação injuntiva é solução que guarda conformidade com “a função tradicional da sentença, que é resolver o caso concreto levado ao Poder Judiciário, [...] limitando a eficácia apenas a esse caso”[5].
Afortunadamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu consideravelmente de modo a se firmar no sentido que apontava a melhor doutrina, haurindo, com a adoção da teoria concretista, os objetivos do mandado de injunção previstos pelo legislador constituinte.
Também cumpre registrar que em dezembro próximo passado a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados deliberou acerca da norma regulamentadora do mandado de injunção e, no substitutivo ao Projeto de Lei nº 6.002, de 1990, fez constar expressamente que “a decisão que julgar procedente o pedido declarará a ocorrência da omissão inconstitucional, comunicando a decisão ao órgão ou autoridade em mora, e suprirá a falta de norma regulamentadora, com eficácia inter partes, formulando supletivamente as regras que deverão ser observadas para o cumprimento do preceito constitucional fundamento da impetração, até que o órgão ou autoridade competente supra essa lacuna”.
Vê-se portanto que, finalmente, após mais de 25 anos de promulgada a Constituição em vigência, firmou-se entendimento jurisprudencial e legislativo de que, em sede de mandado de injunção, a efetiva garantia do direito obstado pela omissão legislativa é atividade tipicamente jurisdicional e não constitui qualquer ofensa ao princípio da separação dos poderes.
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[1] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 261-262.
[2] MI 191-0-RJ. Rel. Mim. Celso de Mello, DJU 01.01.90, p. 280
[3] PONTES FILHO, Valmir. Curso Fundamental de Direito Constitucional, São Paulo: Dialética, 2001.
[4] BERMUDES, Sérgio. O Mandado de Injunção. In: RT, no. 642, abr. 1989, p. 24-25.
[5] BARBI, Celso Agrícola. Mandado de Injunção. In: RT, no. 637, nov. 1988.
Procuradora Federal. Membro da Advocacia-Geral da União. Atuou como responsável pela Procuradoria Federal Especializada da FUNAI em Dourados/MS e na Consultoria da sede da Funai em Brasília. Atualmente atua na Procuradoria Seccional Federal em Campina Grande/PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILLOTA, Karine Martins de Izquierdo. Da salvaguarda do princípio da separação dos poderes na decisão que julga o mandado de injunção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39998/da-salvaguarda-do-principio-da-separacao-dos-poderes-na-decisao-que-julga-o-mandado-de-injuncao. Acesso em: 22 nov 2024.
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