1. Princípios: as suas funções e sua importância para o Sistema Normativo.
Segundo José Augusto Delgado, princípios são "preposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado"[1]. Miguel Reale, mencionado por José Augusto Delgado em seu texto, afirma que os princípios são enunciados normativos de valor genérico que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento para sua aplicação e integração. Nessa mesma linha de raciocínio, Canotilho, citado por Floriano de Azevedo Marques Neto, ensina que princípios são normas de grau maior de abstração, que se prestam a mediações concretizadoras a cumprir um papel fundamental: são fundamento das regras[2].
No que concerne às funções gerais e basilares dos princípios, dignas de transcrição são as palavras de Tereza Aparecida Asta Gemignani:
É por isso que, quando os níveis de ambivalência são aumentados, como ocorre na contemporaneidade, o Parlamento, sozinho, se torna incapaz de traçar os parâmetros de um padrão ordinatório, pois o modelo unívoco não oferece mais respostas satisfatórias, num ambiente de multiplicidade crescente. É por isso que as novas normas, postas pelo legislativo, são pautadas por um modelo de cláusulas abertas, como recentemente se tornou bem evidente, com a promulgação do novo Código Civil. Ou seja, o Parlamento estabelece as regras gerais, traça as diretrizes, porém não as fixa mais em numerus clausus, abrindo caminho para uma atuação jurisdicional mais ampla, não apenas para interpretar, mas também para complementar
o próprio enunciado da norma. Neste passo, esta interpretação só terá eficácia se for pautada pela aplicação dos princípios[3]. (...)
A sobrevivência da sociedade depende da existência de normas, que atuam como bússolas e sinalizadores, que permitem navegar no ambiente agitado dos conflitos, notadamente os que nascem das necessidades humanas mais primárias. Assim, se ao Parlamento compete fixar as regras diretivas gerais, ao Judiciário cabe completar os padrões de fixação da própria norma, para poder proceder a sua eficaz aplicação. Essa interrelação exige novas ferramentas de hermenêutica, que possibilitem a adequada subsunção do fato à norma, o que vem sendo obtido com a aplicação dos princípios, notadamente quanto à proporcionalidade e razoabilidade, a fim de evitar que a crescente pluralidade e ambivalência levem à perda de orientação, e à situação de anomia, combustível para o recrudescimento da conflitualidade social.
Realmente, quando os instrumentos jurídicos, até então utilizados para disciplinar comportamentos, a fim de possibilitar a vida em sociedade, se mostram inadequados para garantir a necessária solução do conflito posto, passando para a sociedade uma sensação de impotência, e perda de controle, ganha relevância o estudo dos princípios e a necessidade de se guiar por eles. É justamente com base nesse fato que Doutrina e Jurisprudência atribuem especial importância ao estudo dos princípios como meio dimensionador da compreensão e da aplicação do direito.
Diante desse quadro, pode-se afirmar que os princípios assumem para o direito administrativo uma relevância especial, pois servem de norte para a ativação do administrador e de parâmetro para o juiz[4] (se provocado a controlar os atos praticados ou decorrentes da atividade administrativa).
2. Princípios do regime jurídico administrativo
A maioria dos doutrinadores elenca, como princípios do regime jurídico administrativo, os da legalidade, igualdade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, supremacia do interesse público, razoabilidade, proporcionalidade, motivação e controle da Administração[5]. A doutrina clássica, nada obstante, aponta os princípios da legalidade, supremacia e indisponibilidade do interesse público como os fundantes do regime jurídico administrativo. Na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello[6], como o Direito Administrativo é consequência do Estado de Direito, sendo fruto da submissão do Estado à lei, os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público possuem mesmo função basilar no regime jurídico-administrativo.
A professora Raquel Melo Urbano de Carvalho[7], narra, apoiada nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, que “de um lado indica-se a necessidade de uma autoridade da Administração como fundamento das prerrogativas públicas embasadas na supremacia dos interesses estatais primários. De outro surge a necessidade de preservar a liberdade do indivíduo e, em consequência, de se impor limitações aos agentes públicos, destacando-se o princípio da legalidade, verdadeira ‘tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos’”.
Essa mesma autora, destaca, porém, que a necessidade de desenvolvimento de técnicas de gestão pública neutras, com simplificação de procedimentos (desburocratização), flexibilização na execução de políticas públicas, uso preferencial de processos convencionais (contratualização) e garantia de estabilização mínima nas relações jurídicas daí oriundas, acabou ampliando a relevância de outros princípios e, por consequência, alterando as bases sobre as quais se assentam as normas reguladoras da Administração Pública.
Nessa toada, advoga ter ganhado força “o princípio da segurança jurídica, de modo a justificar releitura de institutos como, v.g., o da prescrição administrativa e da decadência. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade vêem-se utilizados largamente, do controle jurisdicional dos atos políticos à análise dos limites ao exercício do poder disciplinar administrativo. Não se pode olvidar a consagração dos princípios da motivação e da moralidade na legislação de regência e na jurisprudência hodierna. Outrossim, princípios como os da publicidade, isonomia, impessoalidade e eficiência têm a si reconhecida eficácia concreta e específica até então raramente concebida. (...) Estes são os aspectos da ciência jurídica que impõem a um Estado Democrático de Direito a obrigação de reconhecer a força coercitiva dos princípios expressos e implícitos que integram o regime jurídico público, de modo que o cumprimento do Direito Administrativo operacionalize e efetive os direitos fundamentais. Para tanto, não se admite uma visão reducionista do regime jurídico administrativo, assentando-o fundamentalmente nos pilares da legalidade e da supremacia do interesse público. É mister assumir a multiplicidade dos princípios integrantes do regime administrativo e a equivalência da sua força coercitiva, delineando-lhes os aspectos conceituais e as respectivas implicações jurídicas”.
Mais do que isso, percebe-se que o próprio princípio da legalidade ganhou roupagem nova, diferente de sua fórmula rígida e formalista original (oriunda do Estado legalista) e chegou a uma expressão muito mais ampla que se ajusta ao Estado de Direito propriamente dito. O princípio da supremacia do interesse público, de igual modo, que surgiu como proposição adequada ao Estado liberal, não intervencionista, admitiu aspecto diverso para moldar-se ao Estado Social e Democrático de Direito, adotado na Constituição da República de 1988.
3. Conclusão.
Concluindo no sentido da importância de todos os mencionados princípios para o sistema normativo, Jorge Miranda, em sua obra Manual de Direito Constitucional, citada no já referenciado artigo de José Augusto Delgado[8], afirma que “o Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de atos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultada de vigência simultânea; é coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor, projeta-se ou traduz-se em princípios, logicamente anteriores aos preceitos. Os princípios não se colocam, pois, além ou acima do Direito (ou do próprio Direito positivo); também eles - numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais - fazem parte do complexo ordenamental. Não se contrapõem às normas, contrapõem-se tão-somente aos preceitos; as normas jurídicas é que se dividem em normas-princípios e normas-disposições”.
O próprio José Augusto dissertou sobre a relevância dos princípios no ordenamento jurídico, defendendo que “é reconhecida a importância dos princípios que, após se articularem com normas de diferentes tipos e características, passam a ser facho que "ilumina" a compreensão das regras processuais constitucionais e as de posição hierárquica menor”[9].
Não é por outro motivo que o multireferido Celso Antônio Bandeira de Melo, em seu Elementos de Direito Administrativo[10], proferiu lição (hoje “clássica”), no sentido de que “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra” (sem negrito no original).
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. 1 ed. Salvador: JusPODIVM, 2008.
DELGADO, José Augusto. A Supremacia dos Princípios Informativos do Direito Administrativo: interpretação e aplicação.
FERREIRA, Sérgio de Andréa. Direito Administrativo Didático. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1985.
GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta. Princípios – Marcos de Resistência. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Princípios do Processo Administrativo. Biblioteca Digital Fórum Administrativo - Direito Público - FA, Belo Horizonte, ano 4, n. 37, mar. 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. Revista dos Tribunais, 1980.
[1] DELGADO, José Augusto. A Supremacia dos Princípios Informativos do Direito Administrativo: interpretação e aplicação. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/16695/Supremacia_Princ%c3%adpios_Informativos.pdf?sequence=3>. Acesso em: 09 de dezembro 2013.
[2] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Princípios do Processo Administrativo. Biblioteca Digital Fórum Administrativo - Direito Público - FA, Belo Horizonte, ano 4, n. 37, mar. 2004. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=4714>. Acesso em: 09 de dezembro de 2013.
[3] GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta. Princípios – Marcos de Resistência. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18809/Princ%c3%adpios_Marcos_de_Resist%c3%aancia.pdf?sequence=2>. Acesso em: 11 de dezembro de 2013.
[4] De fato, o surgimento de instituições sociais e políticas e a garantia de amplo acesso à jurisdição em caso de ameaça ou lesão, revelou um número considerável de controvérsias ao Judiciário, com a consequente necessidade de utilização de novas ferramentas pelo sistema jurídico, a fim de restaurar a eficácia da norma para a solução de conflitos.
[5] Segundo informa Sérgio de Andréa Ferreira, em seu Direito Administrativo Didático, Cretella Júnior, em seu Tratado, X, págs. 55 e ss., aponta, também, o princípio das prerrogativas públicas, compreendendo esse a "potestade pública, a auto- executoriedade dos atos administrativos, a expropriação de bens, a requisição, a autotutela e a imunidade tributária".
[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pág 48/49 e 90/91.
[7] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. 1 ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, págs 43/44.
[8] Op. cit.
[9] Op. cit.
[10] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. Revista dos Tribunais, 1980.
Procurador Federal - Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), bacharel em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva e Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera e Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRENT, Paulo Timponi. Os Princípios e o Direito Administrativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40053/os-principios-e-o-direito-administrativo. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Magalice Cruz de Oliveira
Por: Danilo Eduardo de Souza
Por: maria edligia chaves leite
Por: MARIA EDUARDA DA SILVA BORBA
Por: Luis Felype Fonseca Costa
Precisa estar logado para fazer comentários.