RESUMO: Este trabalho aborda sumariamente a discussão em relação à natureza jurídica da vulnerabilidade dos menores de 14 anos para a prática de atos sexuais, uma vez que o legislador impôs de forma absoluta que estes não teriam o necessário discernimento para a prática do ato, punindo severamente o agente que, mesmo devido a uma relação afetiva, venha a ter um contato íntimo com a vítima menor de 14 anos.
Palavras-chaves: vulnerabilidade. Relativa. Absoluta.
O presente artigo tem como objetivo principal analisar a natureza jurídica da vulnerabilidade fixada pelo legislador quando a vítima é menor de 14 anos, cuja razão principal é a discussão doutrinaria e jurisprudencial travada após a promulgação da Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009.
O ponto principal do debate é a imposição da vulnerabilidade absoluta imposta pela norma supra citada.
A Lei n. 12.015/2009 criou a figura do estupro de vulnerável, conforme o disposto no artigo 217-A do Código Penal - Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. A pena cominada é de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. O § 1° do referido artigo 217-A, estabelece: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”.
Com a criação deste novo dispositivo penal, a figura do estupro mediante violência presumida foi afastada, pondo por fim a discussão jurisprudencial da natureza jurídica desta presunção.
Entretanto, uma nova discussão surgiu, pois como afirmar que o menor de 14 anos é absolutamente incapaz para a vida sexual.
O tema é de relevante importância, uma vez que o legislador impôs, de forma absoluta, que os menores de 14 anos, ou aqueles que por enfermidade ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência, são incapazes de praticar qualquer relação sexual.
Agindo assim, o legislador reconheceu duas situações que são abolidas no Direito Penal, quais sejam, a culpa presumida e a responsabilidade penal objetiva, por conta disso pune severamente o agente que prática qualquer ato sexual com as considerados pelo legislador como vulneráveis, não levando em conta eventual consentimento ou se o ato sexual resulta de uma relação afetiva.
Esta punição, em muitos casos, é desproporcional, chegando a ser maior do que as penas aplicadas nos crimes de furto, roubo ou, até mesmo, o homicídio simples.
2 ESTUPRO DE VULNERÁVEL – ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL
Devido à transformação de alguns costumes, parte dos doutrinadores vinha tentando alterar o termo técnico utilizado para definir os crimes contra os costumes, pois acreditavam que a nomenclatura representava uma visão antiga dos hábitos, que, com a mudança nos costumes sociais, não mais se coadunavam com os novos hábitos, pois no que se referiam à matéria sexual, esses hábitos não encontravam apoio entre os jovens.
Assim, foi criada a Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, que alterou Título VI do Código Penal “dos crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”, desta forma o atual bem jurídico a ser protegido é a dignidade sexual.
Dentro das novidades trazidas pela Lei n. 12.015, está à inserção do tipo penal “estupro de vulnerável”, incluindo o artigo 217-A do Código Penal.
A propósito, vejamos a redação dos dispositivos:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º VETADO
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Com a nova definição deste tipo penal, o legislador procurou encerrar a histórica discussão acerca da presunção de violência, antigamente tipificada no artigo 224 do Código Penal. Como tal controvérsia era no sentido de identificar se a natureza da presunção era relativa ou absoluta, foi criada a figura do estupro de vulnerável, excluindo o elemento objetivo “constranger”, aparentemente pondo fim à polemica.
De uma simples análise do artigo acima transcrito, verifica-se que “pessoa vulnerável” é o menor de 14 anos, bem como alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
Assim, ainda que o contato íntimo seja consentido e dentro de uma relação afetiva com menores de quatorze anos, o simples fato de ser com alguém de tal idade acarretaria a punição com uma pena de oito a quinze anos de reclusão, pena esta maior do que as aplicadas aos crimes de furto, roubo e o de homicídio simples.
Neste quadro, é forçoso reconhecer uma brecha onde pode galgar a velha incerteza sobre o consentimento da vítima, pois, com a nova denominação “estupro” de “vulnerável”, entende-se que o ato foi praticado contra a vontade da vítima, ou que esta não tenha a mínima ideia do que seja uma relação sexual.
3 A FALTA DE ADEQUAÇÃO LEGISLATIVA NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
O conceito de estupro pode ser definido como sendo o ato de coagir alguém, com violência ou ameaças, à prática do ato sexual, coito forçado e violentação[i], ou, na letra da lei, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, art. 213, do Código Penal.
Quanto ao que seja vulnerável, define-se como sendo o sujeito suscetível de ser ferido, ofendido ou tocado[ii].
Verifica-se que, embora o legislador tenha afastado a figura da presunção da violência expressamente mencionada no revogado artigo 224 do Código Penal, o hodierno artigo 217-A do Código Penal, sustenta implicitamente a conjectura da violência com o vocabulário “estupro de vulnerável”, quando se refere aos menores de quatorze anos.
Portanto, a controvérsia a respeito da presunção de violência ainda persiste, se que, atualmente, na forma de imposição de vulnerabilidade, uma vez que o legislador especificou, para que ocorra o crime de estupro de vulnerável, as velhas situações que a lei julgava como presunção de violência.
Sobre o tema, aduz Paulo e Fernando em sua obra Código Penal Comentado:
No entanto, embora revogado o art. 224 do Código Penal, mais do que mantida a presunção de violência, foi ela erigida, apos ser combinada com o art. 213, a condição de crime, com previsão no art. 217-A, ora em exame.
Voltando a ser aplicada sem questionamentos, de forma absoluta, portanto, a violência será sempre presumida em se tratando de menor de catorze anos. Dispensar-se-á a grave ameaça e o emprego da força.
Não acreditamos seja o melhor entendimento o do legislador. Quer-nos parecer que a presunção prevista caberá, sempre que necessária, a relativização que vinham empregando ao artigo nossos tribunais[iii]
Assim, analisando a letra fria da lei, parecer ser fácil, pois qualquer ato sexual praticado contra menores de 14 anos seria crime, não importando se esta ação adveio de uma relação afetiva.
3.1 As relações sexuais entre os inimputáveis
Ao analisar os atos sexuais praticados entre inimputáveis, denota-se uma situação de difícil desenlace, pois, imagine dois adolescentes: “A”, sexo masculino, com 13 anos 11 meses de idade, e “B”, sexo feminino, com cerca da mesma de idade. Depois de se conhecerem no colégio, passam a ter uma amizade. Um dia “A”foi fazer um trabalho escolar na casa de “B” e, depois de algum tempo, se beijaram e praticaram atos sexuais de forma consentida.
Levando-se em conta que no direito penal não se admite a compensação de culpa, na situação apresentada quem seria o vulnerável estuprado?
Ao analisar a letra da lei, que denota a presunção de vulnerabilidade, ambos deveriam ser punidos, pois praticaram um ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável e, assim, com certeza não existiria no Brasil Centros de Internações de adolescentes capazes de suportar a demanda resultado “destes atos infracionais”.
3.2 Atos sexuais consentidos entre imputáveis e inimputáveis
Para estas hipóteses, imaginem-se duas famílias que têm uma amizade de longa data. Cada uma delas tem um filho do sexo oposto e, com o passar dos anos, os jovens decidiram iniciar um namoro consentido pelos pais. Ela tinha 12 anos e ele 17 anos. Devido às carícias progressivas naturais das relações afetivas de hoje e com o passar do tempo, iniciaram a vida sexual. Entretanto, ela tinha apenas 13 anos e ele já possuía a maioridade. Ela engravidou. Será que é correto ele ser punido com uma pena desproporcional, que chega a ser maior do que as penas aplicadas aos crimes de furto, roubo e homicídio simples por uma relação sexual consentida, pelo simples fato de ser o autor menor de 14 anos? Claro que não.
Este também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PRESUNÇÃO RELATIVA.
SITUAÇÃO CONCRETA A AFASTAR A HIPÓTESE DELITIVA. RELACIONAMENTO ENTRE JOVENS IMPÚBERES. ATINGIMENTO DA MAIORIDADE. MANUTENÇÃO DO RELACIONAMENTO AMOROSO.
Em recente decisão da Sexta Turma (HC 88.664/GO), restou afirmado que a violência presumida prevista no núcleo do art. 224, “a”, do Código Penal, deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, cedendo espaço, portanto, a situações da vida das pessoas que afastam a existência da violência do ato consensual quando decorrente de mera relação afetivo-sexual.
No caso dos autos, não se era de esperar que, iniciado o relacionamento entre jovens impúberes, e adquirida a maioridade por um deles, as relações sexuais, a partir daí, passassem a configurar a violência presumida só porque prevista a conduta na norma incriminadora.
Recurso especial do ministério público desprovido para manter a absolvição do Recorrido.
(REsp 430.615/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2009, DJe 01/02/2010)
Neste contexto do exemplo acima mencionado, é importantíssimo algumas ponderações.
Caso um pai se recuse a assumir a paternidade do filho com medo de ser preso pela prática do crime de estupro de vulnerável, ensejaria o choque de duas normas. Em matéria de investigação de paternidade, ocorreria à aplicação da Súmula 301 do STJ: "Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.[iv]
Ocorre que a atual ordem jurídica constitucional, em esfera penal, consagra o direito de qualquer acusado não produzir provas contra si mesmo, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário, que, em seu artigo 8º, inciso 2, alínea 'g',[v] também dispõe sobre a possibilidade de não se produzir provas contra si mesmo.
Para o Direito de Família presume-se que ele é o pai. Se ele é o pai presumido, consequentemente ele é o culpado do crime de estupro de vulnerável. É obvio que este tipo de prova não deveria ser aceito no Direito Penal.
Nota-se, portanto, um certo choque da norma penal com o direito de família e, concomitantemente, o tamanho do problema que a imposição de vulnerabilidade acarretaria ao agente, pois não adiantaria o pai da criança casar com a menor grávida, como forma de extinção da punibilidade, já que a Lei n. 11.106 de 28 de março de 2005, revogou o inciso VII, do artigo 107, do Código Penal.
CONCLUSÃO
Do quanto foi visto linhas acima, independentemente da boa intenção do legislador ao instituir a Lei n. 12.015 com o intuito de punir aqueles que exploram e abusam de crianças, a vulnerabilidade deve ser analisada no caso concreto, pois, com o passar dos anos, a forma com que as pessoas encaram a sexualidade se transformou e o contato sexual extemporâneo é uma particularidade dos relacionamentos afetivos de hoje.
Desta forma, a atual imposição de vulnerabilidade àqueles especificados na norma penal não deve ser reconhecidas sem as peculiaridades do caso concreto, devendo o aplicador do direito, á luz de cada caso concreto, analisar cada caso, sob pena de ofender princípios balizadores do Ordenamento Penal, tais como os da proporcionalidade, presunção de inocência e da responsabilidade penal objetiva.
Com certeza não é fácil para o julgador aplicar o direito em virtude das repercussões que o caso pode gerar, porém, na busca pela tutela dos vulneráveis, o juiz não pode fechar os olhos para situações do caso concreto que afastam a tipicidade.
Por todo o exposto, em se tratando de crimes contra a dignidade sexual, é incontestável o dever do Estado de punir o abuso, a exploração ou a violência. Entretanto, em se tratando de atos sexuais consentidos decorrentes das caricias progressivas dos contatos afetivos precoces, a tutela, em matéria penal, não deve ser dirigida a todos os menores de 14 anos, mas àquele que, efetivamente, sofreu um desvirtuamento ou uma certa corrupção.
REFERÊNCIAS
Brasil. Lei Nº 11.106, de 28 de Março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso em jun. 2014.
Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em jun. 2014.
Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em jun. 2014.
Dicionário online de Português. Disponível em <http://www.dicio.com.br>. Acesso em jun. 2014.
ESTEFAM, André. Direito Penal 3, Parte Especial (ARTS. 184 A 285), 1ª EDIÇÃO. 1. Vital Source Bookshelf. Editora Saraiva, 2010.
HABEAS CORPUS n.º 73.662 - MG, D.J.U. 20.09.96:15/05/2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jspdocTP=AC&docID=74663>. Acesso em: jun. 2014.
JR. Paulo José da Costa e COSTA. Fernando José. Código penal comentado, 10ª edição. 1. VitalSource Bookshelf. Editora Saraiva, 2011.
LAKATOS, Suzana. Sexo cada vez mais cedo!. Disponível em: <http://tribunaregiao.com.br/mulher/noticias.php?idNot=25115>. Acesso em jun. 2014.
MARCÃO, Renato, PLINIO, Antonio Britto Gentil. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL, 1ª EDIÇÃO. 0. Vital. Source Bookshelf. Editora Saraiva, 2011-01-12, quarta-feira, 9 de maio de 2012.
Notas:
[i] [i] Disponível em: <http://www.dicio.com.br/estupro/>. Acesso em jun. 2014.
[ii] Idem, Acesso em jun. 2014.
[iii] JR. Paulo José da Costa e COSTA. Fernando José. Código Penal Comentado, 10ª edição. 1. VitalSource Bookshelf. Editora Saraiva, 2011.
[iv] Disponível em: <http:www.dji.com.br/normas inferiores interno e sumula stj/stj 0301a0330.htm>. Acesso em jun. 2014.
[v] Pacto de São José da Costa Rica Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em jun. 2014.
[v] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso em jun. 2014
Pos-graduado em direito público pela UnB. Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza/UNIFOR. Vasta experiência na advocacia privada. Foi Defensor Público no Estado do Ceará após aprovação em Concurso Público. Foi também aprovado em concurso público para o cargo de Defensor Público da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, não tendo assumido o cargo devido a aprovação para o mesmo cargo na Defensoria Pública do Estado do Ceará. Aprovado no Concurso Público para a Advocacia Geral da União para o cargo de Procurador Federal. Atualmente é Procurador Federal responsável pela coordenação de Consultoria da Procuradoria Geral Federal Especializada do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes/DNIT, na Cidade de Brasília/DF.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, José Alves de. Breves considerações acerca da tipificação do crime de estupro de vulnerável Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40161/breves-consideracoes-acerca-da-tipificacao-do-crime-de-estupro-de-vulneravel. Acesso em: 24 nov 2024.
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