Resumo: O presente artigo visa trazer a relação traçada pelo brilhante jurista Calmon de Passos entre Direito e Poder. Para o autor, como se mostrará, a seguir, o Poder cria o Direito, sendo este “casamento”, apesar de não desejado, o único que se revela possível para a condição humana. Nota-se, então, que para o autor, o Direito nada mais é do que a legitimação das forças de poder. Isso chega a lembrar, inclusive, a concepção sociológica de Constituição desenvolvida por Ferdinand Lassale. Visa-se, assim, mostrar os reflexos de tal posicionamento na sociedade atual.
Palavras chave: Direito, Poder, legitimação, Calmon de Passos.
1- Introdução
Na sociedade atual em que vivemos, é quase impossível dissociar o Direito da Democracia. O artigo primeiro da Constituição aduz que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”. Qualquer faculdade de Direito, quando vai lecionar sobre o momento inicial da formação do Direito, trata da força popular e do papel individual de cada um, quando da eleição dos seus representantes, para a edição de leis que reflitam a vontade do povo.
Sabemos que é chamado de Poder Constituinte Originário, pelos estudiosos do Direito, aquele poder atribuído a um número determinado de seres humanos, que irão exercer um poder soberano em nome de todos os demais integrados numa sociedade política, estável, de âmbito geral e de base territorial tendo por fim governar pessoas e administrar os meios segundo os fins dessa associação, a qual conhecemos como Estado. Nota-se, assim, que a teoria traz o Direito como resultado da vontade popular e coloca como necessária a ideia de que a norma deve ser sempre legítima, ou seja, precisa corresponder a vontade da maioria. Será este poder, então, capaz de estabelecer uma nova ordem constitucional, sendo assim responsável pelas leis fundamentais de sua respectiva nação. É dotado deste poder todo o indivíduo a quem se atribui a tarefa de criar as leis fundamentais do Estado, que servirão de orientadoras para todas as leis infraconstitucionais, ou seja, aquelas subordinadas e convalidadas pela Constituição.
2- Desenvolvimento
Democracia vem da palavra grega “demos”, que significa povo. Nas democracias, é o povo quem detém o poder soberano sobre os Poderes Legislativo e o Executivo. As democracias entendem que uma das suas principais funções é proteger direitos humanos fundamentais como a liberdade de expressão e de religião; o direito a proteção legal igual; e a oportunidade de organizar e participar plenamente na vida política, econômica e cultural da sociedade. As democracias conduzem regularmente eleições livres e justas, abertas a todos os cidadãos. As eleições numa democracia não podem ser fachadas atrás das quais se escondem ditadores ou um partido único, mas verdadeiras competições pelo apoio do povo.
A teoria do estado democrático, como se pode perceber, é encantadora e traz a todos que a conhecem, sejam ou não da área jurídica, uma sensação de justiça e de participação no processo de condução do Estado.
Todavia, o ceticismo do ilustre doutrinador Calmon de Passos parece que joga por água abaixo toda a teoria democrática de participação popular na formação do Direito.
Afirma o autor, em uma de sua obras, que “Esta verdade tão simples e tão irrecusável torna evidente que só o Poder cria o Direito. Por mais que nos repugne este casamento, que talvez seja o casamento que desejaríamos não se consumasse, infelizmente é o único que se revela possível para a condição humana. Todo discurso que tente escamoteá-lo apenas objetiva “ocultar” as relações de poder que estão na matriz de toda e qualquer regulação social.” (CALMON DE PASSOS, Joaquim José, Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo”. Salvador: Editora jusPODIVM, 2012).
Nota-se que para o autor, o Direito nada mais é do que a legitimação das forças de poder. Isso chega a lembrar, inclusive, a concepção sociológica de Constituição desenvolvida por Ferdinand Lassale. Ao contrário de Calmon de Passos, Lassale defendia que o poder de intervenção e transformação sobre uma sociedade não pode, de nenhuma maneira, ser conferido à Constituição, pois para ele “os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar” (LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ªed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001. p.40). Nota-se que Lassale defendia diretamente o papel sociológico da constituição, e para ele os “fatores reais do Poder” seriam a vontade popular. Já Calmon de Passos parece definir poder como classes dominantes, que impõe sua vontade sobre a maioria governada.
Henrique Araújo Costa e Alexandre Araujo Costa, ao publicar artigo sob o título de Os Testamentos Ignorados de Ovídio Baptista e Calmon de Passos, afirmam, citando passagem da obra do autor Calmon de Passos, que “O direito tem a cara do poder (...). Toda a minha linha de pesquisa foi tentar desmistificar essa neutralidade do direito, essa cientificidade do direito, essa isenção do magistrado e tentar compreender o direito em sua dimensão indissoluvelmente política. O direito é o discurso do poder. Toda a minha vida profissional eu voltei para aprofundar essa pesquisa. E de certo modo um livro – que não me satisfaz tanto que estou preparando um outro – que considero meu testamento, traduz essa minha preocupação: direito, poder, justiça e processo” (COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192).
Os autores defendem posição de que o direito seria, em última análise, um instrumento do poder. A lei seria, assim, a forma que os ocupantes da força política utilizariam para impor legitimamente a sua força e vontade sobre a população. Esta, iludida e acreditando ser o direito fruto da soberania popular, obedeceriam aos ditames legais sem resistência, vez que não possuem consciência na realidade em que, de fato, estão inseridas.
Calmon de Passos, nesse contexto, afirmou que “daí sustentar, com tranquilidade, que toda tentativa de apontar um fundamento para o Direito dissociado do poder político nada mais é que inaceitável manipulação ideológica perversa, ou um equívoco epistemológico, ambos pretendendo, em verdade, colocar no lobo uma pele de cordeiro.”(CALMON DE PASSOS, Joaquim José, Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo”. Salvador: Editora jusPODIVM, 2012). Percebe-se, como dito, que, na visão do autor, qualquer teria que tente trazer o aspecto democrático do direito, que discorra, como já abordado acima, sobre o lado popular do Poder Constituinte originário, estaria apenas fantasiando a realidade.
Nota-se, que Calmon de Passos afirma que “Relevante não é saber quem governa, sim como governa. O problema fundamental é, pois, o da organização do poder, com institucionalização de meios de controle de seu exercício pelos governados, o que se faz impossível sem crescente representatividade, informação e participação." (CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pág. 55).
Percebe-se, por fim, que para o autor o Direito não é fruto do sufrágio universal, da vontade popular e de um Estado Democrático, mas sim expressão do Poder. A lei seria instrumento do governo, e não do Estado.
Referências
CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
CALMON DE PASSOS, Joaquim José, Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo”. Salvador: Editora jusPODIVM, 2012.
COSTA, Henrique Araújo. COSTA, Alexandre Araújo. Os testamentos ignorados de Ovídio Batista e Calmon de Passos. In RBDPro 192.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ªed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001.
http://pauloqueiroz.net/jj-calmon-de-passos-citacoes/
http://clebertinoco.blogspot.com.br/2010/08/o-poder-pela-otica-de-j-j-calmon-de.html
Procuradora Federal, Graduada em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais- PUC-MG, e pós graduada em Direito Público pela Universidade de Brasília- UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Mariana Savaget. O Poder e o Direito na concepção de Calmon de Passos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40241/o-poder-e-o-direito-na-concepcao-de-calmon-de-passos. Acesso em: 22 nov 2024.
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