RESUMO: Fatores como a superação do modelo liberal clássico, do baseado no acentuado grau dirigismo econômico, bem como a relevância de determinados setores da economia, justificaram a opção brasileira por um mercado onde o Estado assume funções regulatórias e, concomitantemente, prima pela criação de um ambiente competitivo. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a, de forma sucinta, expor, considerações acerca da defesa da concorrência no cenário nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Direito concorrencial. Regulação econômica. Legislação antitruste.
I. Considerações iniciais
A promulgação de uma Constituição alicerçada no sistema econômico capitalista e na livre iniciativa não deixaria margem para que o legislador constituinte, no mesmo diploma, se furtasse de contemplar o princípio da livre concorrência, que restou contemplada como princípio da ordem econômica.
Com efeito, a consolidação de uma economia de mercado consagrou o princípio da livre concorrência, fazendo com que a iniciativa privada se tornasse a propulsora do desenvolvimento econômico, deixando ao Estado a regulamentação do mercado e a participação direta apenas em caráter supletivo, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173 da Constituição Federal.
No entanto a busca pela livre concorrência imprescinde da existência de um aparato estatal capaz de identificar e reprimir o abuso do poder econômico. Assim, no âmbito legislativo buscou-se a criação de mecanismos voltados ao combate do abuso do poder econômico e a consequente proteção do consumidor.
II. O imperativo da competição como sustentáculo de uma economia de mercado: fundamento e exegese da legislação antitruste
A fase embrionária da política da concorrência no Brasil data de 1930, estando já prevista na Constituição de 1934, a preocupação do Estado com a livre iniciativa. Contudo, não houve, na sua vigência, nenhuma promulgação de Lei que regulamentasse o processo competitivo.[1]
Sob a égide da Constituição de 1937, surge a primeira lei antitruste propriamente dita: o Decreto-lei nº 869,[2] de 18/11/1938, que passa a tratar os delitos econômicos como crime contra o Estado, defendendo a economia popular e, consequentemente, o consumidor, cabendo ao Tribunal de Segurança Nacional processar e julgar tais condutas. Nesse Decreto-Lei foram editadas, pela primeira vez, no Sistema Jurídico Brasileiro, algumas normas antitruste que perduram até hoje, tais como coibição do açambarcamento de mercadorias, manipulação da oferta e da procura, fixação de preços por meio de acordo entre empresas (preço predatório) e outras.
Em 1945, surge o Decreto-Lei nº. 7.666, que disciplinava a matéria de forma específica e sistemática, sendo interpretada como um ato de nacionalismo econômico desencorajador da entrada de capitais estrangeiros, semente da regulamentação atual. À administração pública, cabia averiguar as práticas contrárias aos interesses da economia popular e com esse intuito foi criada, em 1945, a CADE – Comissão Administrativa de Defesa Econômica, introduzindo no ordenamento jurídico pátrio, o sistema de autorização prévia para formação, incorporação, transformação e agrupamento de empresas, além do registro de outros ajustes e acordos. Tal Decreto foi revogado em 1945.
A Constituição de 1946 traz pela primeira vez, expressamente, o princípio de repressão ao abuso do poder econômico, originalmente previsto no Decreto-Lei nº 7.666. O artigo 148 da Constituição de 1946 foi regulamentado em 1962, com a edição da Lei nº 4.137, de autoria do deputado Agamennon Magalhães. Foi, então, criado o CADE (na época, Comissão Administrativa de Defesa Econômica), separando-o definitivamente dos dispositivos que tratam da economia popular e do abastecimento.[3]
A Emenda constitucional de 1969, alterando dispositivos da Constituição de 1967, colocou em seu artigo 160, inciso V, como um dos princípios basilar da Ordem econômica e social, a repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário de lucros.
Apesar de a política brasileira de defesa da concorrência existir desde os anos trinta, a atuação do CADE era pouco conhecida e difundida, tendo em vista que a economia era fortemente monitorada e fechada, sofrendo rígido controle de preços, fato este que acarretava reduzida atividade por parte do órgão. Desta forma, nas suas três primeiras décadas, a Lei nº 4.137/62 não encontrou grande efetividade na realidade brasileira.
Foi a partir dos anos noventa, com os fenômenos de abertura da economia nacional, da estabilização da moeda, das privatizações e da crescente globalização, bem como da revolução tecnológica e de comunicação, que se tornou vital o fortalecimento de uma política de defesa da concorrência. Assim, em 1991 foi promulgada a Lei nº 8.158, originária da Medida Provisória nº. 204, de 02 de agosto de 1990, impondo regras para reprimir a ocorrência de abusos de mercado, bem como introduzindo a competência para o controle de atos de concentração.
O advento da Constituição Federal de 1988, e das Emendas Constitucionais que determinaram seu atual formato, consolidaram a opção por uma economia de mercado e consagraram o princípio da livre concorrência. Com efeito, a iniciativa privada tornou-se propulsora do desenvolvimento econômico, deixando ao Estado a regulamentação do mercado e a participação direta apenas em caráter supletivo, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173 da Constituição Federal. Paralelamente, buscou-se viabilizar o combate ao abuso do poder econômico e a proteção do consumidor. Isso gerou, paulatinamente, a saída do Estado do cenário econômico, acelerada pelas políticas de privatização e de diminuição da máquina estatal aqui implementadas.
Nesse contexto, a iniciativa privada encontrou campo fértil para se desenvolver e, logicamente, os mecanismos de tutela dos interesses dos empresários, bem como dos consumidores, passaram a ter um enfoque mais efetivo. Com matriz constitucional, surgiram, então, diversos diplomas legislativos como o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) e a Lei nº 8.158 de 08 de janeiro de 1991, posteriormente revogada pela Lei nº 8.884 de 11 de junho de 1994,[4] a atual Lei Antitruste brasileira (LA).[5]
Tais instrumentos legais seguem a atual tendência de criação de microssistemas jurídicos - que se contrapõe à antiga técnica legislativa de codificação - por meio da reunião completa de toda a matéria pertinente a um ramo jurídico num único estatuto normativo. A terminologia microssistema decorre do fato de se constituir em um sistema menor, com particularidades próprias, lógica autônoma e princípios peculiares para sua interpretação e aplicação, utilizando a regra geral em caráter subsidiário.
André Ramos Tavares acena para duas perspectivas no que tange à tutela da livre concorrência. Destaca que numa primeira concepção, a livre concorrência tem como centro de suas atenções o consumidor [...] Numa segunda concepção, a tutela da concorrência presta-se pela garantia de um eficiente e legítimo sistema econômico de mercado.[6] No dizer de Fábio Ulhoa Coelho:
A rigor, a legislação antitruste visa a tutelar a própria estruturação do mercado. No sistema capitalista, a liberdade de iniciativa e a competição se relacionam com aspectos fundamentais da estrutura econômica. O direito, no contexto, deve coibir as infrações contra a ordem econômica com vistas a garantir o funcionamento do livre mercado. Claro que, ao zelar pelas estruturas fundamentais do sistema econômico de liberdade de mercado, o direito da concorrência acaba refletindo não apenas sobre os interesses dos empresários vitimados pelas práticas lesivas à constituição econômica, como também sobre os consumidores, trabalhadores e, através da geração de riqueza e aumento dos tributos, os interesses da própria sociedade em geral.[7]
A LA constitui estatuto regulamentar do art. 173, § 4º da Magna Carta, que determina a necessidade de repressão ao [...] abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros[8] que são formas de abuso do poder econômico e estão, via de regra, intimamente ligados. Note-se que a lei visa a reprimir o abuso do poder econômico e não o poder econômico por si só.[9] Calixto Salomão Filho afirma que o poder econômico no mercado deve ser fiscalizado e, quando excessivo ou abusivo, reprimido.[10] O controle do Poder Econômico de mercado constitui a viga mestra do Direito Concorrencial.[11]
Assim, a dominação de mercados ocorre quando uma ou mais empresas, usando de meios ardilosos, obsta a entrada ou expansão de novos agentes econômicos em um determinado mercado. A eliminação da concorrência é caracterizada quando for vilipendiado o princípio da livre concorrência através, v.g., controlando a oferta, recorrendo a acordos e convênios destinados a impor soluções artificiais condizentes com o interesse de um grupo, retendo mercadorias ou adquirindo-as em excesso para provocar escassez ou alta. No tocante ao aumento arbitrário de lucros, tem-se como arbitrário o lucro que não se justifica sob o ponto de vista tecnológico, econômico ou financeiro.
José Cretella Júnior define o aumento arbitrário de lucros como sendo decorrência do aumento abusivo de preços, quando existe número exíguo de empresas que não em condições de fazer-lhe concorrência em determinado segmento de mercado ou de prestação de serviços.[12]
A Lei 8884/94 (hoje substituída pela Lei 12.529 de 2011), no artigo 20, tratava dos efeitos caracterizadores de infrações à ordem econômica, redação que se manteve na nova legislação. O art. 21, por sua vez, arrolava as condutas tendentes a produzir tais efeitos. Esta era a redação dos aludidos artigos, in verbis:
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros;
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.
§ 1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II.
§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.
§ 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.(Redação dada pela Lei nº 9.069, de 29.6.95)
Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica;
I - fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, preços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços;
II - obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;
III - dividir os mercados de serviços ou produtos, acabados ou semi-acabados, ou as fontes de abastecimento de matérias-primas ou produtos intermediários;
IV - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
V - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;
VI - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
VII - exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nos meios de comunicação de massa;
VIII - combinar previamente preços ou ajustar vantagens na concorrência pública ou administrativa;
IX - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
X - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;
XI - impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes, preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;
XII - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;
XIII - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais;
XIV - dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais;
XV - destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los;
XVI - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia;
XVII - abandonar, fazer abandonar ou destruir lavouras ou plantações, sem justa causa comprovada;
XVIII - vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo;
XIX - importar quaisquer bens abaixo do custo no país exportador, que não seja signatário dos códigos Antidumping e de subsídios do Gatt;
XX - interromper ou reduzir em grande escala a produção, sem justa causa comprovada;
XXI - cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;
XXII - reter bens de produção ou de consumo, exceto para garantir a cobertura dos custos de produção;
XXIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem;
XXIV - impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço.
Parágrafo único. Na caracterização da imposição de preços excessivos ou do aumento injustificado de preços, além de outras circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, considerar-se-á:
I - o preço do produto ou serviço, ou sua elevação, não justificados pelo comportamento do custo dos respectivos insumos, ou pela introdução de melhorias de qualidade;
II - o preço de produto anteriormente produzido, quando se tratar de sucedâneo resultante de alterações não substanciais;
III - o preço de produtos e serviços similares, ou sua evolução, em mercados competitivos comparáveis;
IV - a existência de ajuste ou acordo, sob qualquer forma, que resulte em majoração do preço de bem ou serviço ou dos respectivos custos.[13]
Note-se que as condutas não obedecem a uma tipificação propriamente dita, visto que o art. 20 determina a ilicitude de qualquer conduta que tenha o condão de produzir os efeitos arrolados em seus incisos. Já o art. 21 elenca, exemplificativamente, condutas que não necessariamente constituem ilícitos. Nesse sentido Paula A. Forgioni ressalta que:
É perfeitamente possível que dentro do sistema estabelecido pela Lei 8.884, de 1994, que se verifique algum acordo previsto no art. 21 sem que haja infração à ordem econômica. Basta, para tanto, que não se dê a incidência de qualquer dos incisos do art. 20. Da mesma forma, uma ato não tipificado no referido art. 21 poderá ser ilícito se tiver por objeto ou produzir efeito previsto no art. 20.[14]
Eis a redação da Lei 12.529/11, que sucedeu a Lei 8884/94::
“Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:
a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;
b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;
c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;
d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública;
II - promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;
III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
IV - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;
V - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
VI - exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nos meios de comunicação de massa;
VII - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;
IX - impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;
X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;
XI - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais;
XII - dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais;
XIII - destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los;
XIV - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia;
XV - vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;
XVI - reter bens de produção ou de consumo, exceto para garantir a cobertura dos custos de produção;
XVII - cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;
XVIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem; e
XIX - exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca.”
Cabe ressaltar tratar-se, aqui, em ambos os diplomas, de ilícitos administrativos de mera conduta, pois o caput do art. 20 mencionava que, ainda que não alcançados os efeitos definidos em seus incisos, constituem infrações à ordem econômica os atos que os tenham por objeto ou possam produzi-los. A punição prescinde da obtenção do resultado pelo agente, equiparando-se, portanto, tentativa à consumação.
De outra banda, a LA, também com escopo de promover a livre competição no mercado, adotava, no art. 54 (na legislação atual, art. 53 e seguintes), o controle de estruturas. Assim, devem ser submetidos à apreciação da autoridade antitruste os atos, como fusões, incorporações e aquisições de empresas, que possam limitar ou prejudicar a concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens e serviços.
Não obstante a abrangência e importância da aplicação da Legislação Antitruste, certas circunstâncias reclamam a flexibilização de seu texto normativo a fim de que, compreendidas enquanto instrumento de implementação de políticas públicas, as normas antitruste coadunem-se com as mutações do contexto no qual estão inseridas. Nesse ínterim evidencia-se a existência do que Paula A. Forgioni denomina válvulas de escape.[15]
Consistem estas, pois, em critérios interpretativos e aplicativos da norma, de modo que algumas práticas, embora anticompetitivas, segundo critérios técnico-econômicos, não sejam reprimidas por propiciarem benefícios ao sistema. A ideia parece paradoxal ante ao enaltecimento do sistema competitivo, mas verifica-se na prática através de autorizações, isenções antitruste e pela utilização da regra da razão.
Paula A. Forgioni assevera que [...] um sistema antitruste desprovido de válvulas de escape seria análogo ao sistema constituído apenas por regras jurídicas, a que se refere Canotilho, ou seja um sistema jurídico de limitada racionalidade prática.[16] Destarte, sob o viés jurídico, as “válvulas de escape” justificam-se não só por integrarem um microssistema, mas, sobretudo, dentro de uma perspectiva hermenêutica pós-positivista.
Cabe, portanto, aos órgãos responsáveis pela defesa da concorrência no Brasil o desempenho das competências expressas na Lei 12.529/11 e em seus respectivos ordenamentos. A LA implementou o que se convencionou chamar de Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, hoje composto pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda - SEAE.
III. Considerações finais
Não resta dúvida de que a competição no mercado é um instrumento de proteção aos interesses dos usuários dos serviços. No entanto, existem peculiaridades de determinados setores que obstam a implementação da competição apartada da adequada regulamentação do mercado.
Assim, o modelo brasileiro, que mescla a atuação de agentes reguladores de setores específicos com a ação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, deixa de ser um paradoxo aparente, para figurar como uma viável opção política manifestada na órbita legislativa.
Notas:
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à lei antitruste: Lei n. 8.884 de 11.06.1994. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Da abusividade do poder econômico. Revista de Direito Econômico. n. 5, ano 2000.
_____. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 35, ano V, 2002.
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao Direito da Concorrência. São Paulo: Malheiros, 1996.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
MORAES, Alexandre de. Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2003.
SILVA, Américo Luís Martins da. Introdução ao Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e concorrência (estudos e pareceres). São Paulo: Malheiros, 2002.
_____. Direito Concorrencial, as condutas. São Paulo: Malheiros, 2003.
_____. Direito Concorrencial, as estruturas. São Paulo: Malheiros, 2002.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2002.
_____. Fundamentos de Direito Público. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003.
[1] No que tange aos primórdios do antitruste, deve-se destacar a edição do Sherman Act, em 1890, nos Estados Unidos. Segundo Paula A. Forgioni o diploma foi, para muitos, o ponto de partida para o estudo dos problemas jurídicos relacionados à disciplina do poder econômico. Com efeito, essa legislação deve ser entendida como o mais significativo diploma legal que corporificou a reação contra a concentração de poder nas mãos de alguns agentes econômicos, procurando disciplina-la. Não se deve dizer que o Sherman Act foi uma reação ao liberalismo econômico, pois visava, justamente, a corrigir distorções que eram trazidas pela excessiva acumulação do capital, ou seja, corrigir as distorções criadas pelo próprio sistema liberal. (Os Fundamentos do Antitruste. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 69).
[2] Nas palavras de Benjamim Shieber em relação ao Decreto-lei n° 869/38, não obstante a severidade das penas ali impostas, bem como a criação de tribunais especiais e comissões, permaneceu letra morta. Tem-se a notícia de que em um só caso as disposições legislativas vieram a ser aplicadas e, assim mesmo, no plano administrativo apenas. (Apud VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. 1993, p. 245).
[3] Acerca da Lei 4.137/62, Paula A. Forgioni assevera que [...] ao que tudo indica, em seu período de vigência, sem embargo de alguns breves surtos ou ondas de aplicabilidade, a Lei Antitruste de 1962 não encontrou uma maior efetividade na realidade brasileira, não sendo possível identificar qualquer atuação linear e constante de uma política econômica que se tenha corporificado em uma política de concorrência. (Os Fundamentos do Antitruste. 2005, p. 141).
[4]A despeito de alguns autores, como Inácio Gonzaga Franceschini, considerarem-na um diploma penal-econômico, a lei atual não veicula questões referentes à matéria penal, regulada pela Lei nº 8.137/90, que permanece vigente (ver o art. 85 da Lei nº 8.884/94).
[5] Conforme José Marcelo Martins Proença, a nomenclatura Lei Antitruste, apesar de utilizada por muitos Juristas, não é adequada. A Lei 8.884/94 não objetiva apenas reprimir os “trustes” mas sim garantir um mercado concorrencial (Concentração empresarial e o direito da concorrência. 2001, p. 32). No decorrer do presente estudo será utilizada a expressão “Lei Antitruste” para designar a Lei 8.884/94, por meio da sigla LA.
[6] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2003, p. 256.
[7] Apud TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2003, p. 256.
[8] Essas três modalidades de infrações estão previstas em todas as Constituições brasileiras, desde a Carta de 1946.
[9] Benjamin M. Shieber afirma que [...] o poder econômico resulta da posse dos meios de produção. Quando esses meios de produção, em certos setores da atividade, são dominados por um indivíduo ou um grupo de indivíduos, são dominados por uma empresa ou um grupo de empresas, evitando que outros deles também possam dispor, há abuso do poder econômico. (Abusos do Poder Econômico – Direito e experiência Antitruste no Brasil e nos E.U.A. 1966, p. 3).
[10] SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial as estruturas. 2002, p. 50.
[11] Segundo a Cartilha do CADE, O abuso do poder econômico ocorre toda a vez que uma empresa se aproveita de sua condição de superioridade econômica para prejudicar a concorrência, inibir o funcionamento do mercado ou ainda, aumentar arbitrariamente seus lucros. Em outras palavras, poderíamos dizer que o agente abusivo faz mau uso ou o uso ilegítimo do poder que detém no mercado. Este abuso não se dá a partir de práticas específicas, mas sim, quando o detentor de substancial parcela do mercado age em desconformidade com os seus fins, desvirtuando, ultrapassando as fronteiras da razoabilidade. Por prejudicar a ordem econômica e os consumidores, o abuso não encontra qualquer amparo legal, até porque é ato praticado com exercício irregular do direito de livre iniciativa e de propriedade. (Cartilha do CADE, sob coordenação do Ex-Conselheiro Fernando de Oliveira Marques).
[12] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentarios à Lei Antitruste. 1995, p.35.
[13] No âmbito dos acordos verticais ou horizontais, a Cartilha do CADE destaca as seguintes práticas: Formação de Cartel - As empresas nem sempre apreciam o jogo da livre concorrência. Elas preferem, às vezes, cooperar entre si, combinando preços, restringindo a variedade de produtos e dividindo os mercados para manter suas receitas sempre estáveis. Para o consumidor e para outras empresas isto significa ter que pagar um preço muito maior se comparado ao valor que o produto realmente custa e ainda ter o seu leque de opções de compra diminuído. Para a fiel configuração desta infração, se faz mister que haja efetivo acordo entre os agentes envolvidos, pois pode ocorrer que diversas empresas, praticantes da mesma atividade econômica, venham a utilizar-se de preços semelhantes sem que tenha ocorrido qualquer ajuste prévio, cessando, assim, a idéia de abusividade;Venda Casada - Consiste na prática de subordinar a venda de um bem ou serviço à aquisição de outro. O praticante da venda casada produz barreiras à entrada de concorrentes potenciais no mercado ou empecilhos à expansão dos concorrentes já presentes. A subordinação proporcionada pela venda casada, gera uma restrição de liberdade de comprar e vender por pressão, por coação, sem que haja qualquer benefício para o consumidor na aquisição vinculada. Sistemas Seletivos de Distribuição: São restrições impostas, injustificadamente, pelo fabricante ao distribuidor, utilizadas de forma a discriminar distribuidores, vendedores e consumidores, que acabam por ser prejudiciais à livre concorrência. As restrições apenas são justificáveis se apresentarem o escopo de manter um padrão eficiente de distribuição, oferecerem serviços de manutenção e garantias ao consumidor. A legislação antitruste reprimirá o agente sempre que o mesmo, sem motivação plausível, impedir o acesso do consumidor a uma determinada mercadoria; Preços Predatórios - Muitas vezes, as empresas se utilizam da estratégia de baixar propositadamente os preços de seus produtos a valores inferiores ao seu preço de custo, esperando, com isso, que os concorrentes desistam do mercado daquele setor. No início, o consumidor pode até ficar satisfeito em poder adquirir o produto a preço baixo, mas, posteriormente, se verá prejudicado pela falta de concorrência entre os fabricantes, fato este que afastará os benefícios inerentes à concorrência já analisados neste trabalho. (Cartilha do CADE, sob orientação do Ex-Conselheiro Fernando de Oliveira Marques).
[14] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 2005, p. 349.
[15] FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 2005, p 200.
[16] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.
Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público. Especialista em Direito Tributário. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CONSTANTINO, Giuseppe Luigi Pantoja. O imperativo da competição como sustentáculo de uma economia de mercado: fundamento e exegese da legislação antitruste Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40500/o-imperativo-da-competicao-como-sustentaculo-de-uma-economia-de-mercado-fundamento-e-exegese-da-legislacao-antitruste. Acesso em: 22 nov 2024.
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