RESUMO: Este artigo tem por primado a análise acerca do conceito de jurisdição, suas características, princípios inerentes e “espécies”, enfatizando ser o exercício dela uma das principais funções do Estado, mediante a qual esse se substitui aos titulares dos interesses em contraposição para, imparcialmente, buscar a pacificação social e a convivência harmoniosa em sociedade. Será abordado, ainda, que a jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, é una e indivisível, de modo que, em tese, seria cientificamente imprópria a sustentação de que aquela comporta divisões ou espécies. No entanto, observar-se-á que a doutrina majoritária as estabelece para fins meramente didáticos, exaltando a relevância da especificação no sentido de melhor apresentar as diferentes possibilidades de manifestação da função jurisdicional.
Palavras-chave: Jurisdição. Características. Princípios inerentes.
1 INTRODUÇÃO
O direito está intimamente ligado ao conceito de sociedade, bem como essa ao conceito de direito. Essa correlação se manifesta justamente na função exercida pelo direito na sociedade, qual seja, a função ordenadora, agindo a ordem jurídica como vetor de organização social, materializando-se na coordenação dos interesses antagônicos manifestados pelos seus membros, harmonizando as relações sociais intersubjetivas, de modo que essa ordem atue como forma de controle social.
Entretanto, a superação dos conflitos sociais intersubjetivos nem sempre se deu pela imposição da ordem jurídica, mediante uma atuação estatal soberana justa, provocada pela parte insatisfeita, seja pela resistência de outrem, seja pelo veto jurídico à resolução voluntária da insatisfação.
Assim, nas fases primitivas da civilização dos povos, esses eram desprovidos de um órgão estatal soberano capaz de pacificar os ímpetos individualistas e fazer valer os interesses do ordenamento jurídico sobrepondo-se ao dos particulares, nem sequer normas gerais e abstratas existiam.
De modo que, num primeiro momento, no que pertine à resolução dos conflitos, tinha-se a fase da autotutela (ou autodefesa), onde quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, buscar a concretização de sua satisfação resistida. Esse regime era precário, pois não assegurava a justiça, mas sim a vitória do mais forte, donde que, ainda que se estivesse diante de um homem a quem deveria ser concedida determinada pretensão, se este fosse fraco estava fadado a ver a injustiça imperar.
Paralela à autotutela, subsistia uma outra forma de resolução de conflito de interesses, qual seja, a autocomposição que, ainda que de forma restrita e não tão explorada quanto se deveria, perdura no ordenamento pátrio, especialmente no que concerne aos direitos disponíveis. Essa forma de solução consiste em uma das partes em conflito, ou ambas, abrir mão do interesse ou de parte dele, de forma a se chegar num consenso.
Entretanto, com o passar do tempo a sociedade sentiu a necessidade de se abstrair desse sistema parcial (ato das próprias partes), para se imiscuir em um sistema consubstanciado na eleição de um terceiro, que seria um árbitro, um ser imparcial e de confiança mútua entre os conflitantes, que resolveria a pendência levada ao mesmo. Em regra, eram escolhidos sacerdotes, cujas ligações com as divindades garantiam soluções acertadas; ou anciãos, que conheciam os costumes do grupo social.
Nesse caminhar, surgiu a arbitragem obrigatória, donde o árbitro passa a ser investido não pelas partes, mas agora pelo Estado, por meio da figura do magistrado que, com o decurso dos conflitos que vão surgindo, passa a preestabelecer, de forma abstrata, critérios objetivos e vinculativos para suas decisões, momento em que o próprio magistrado passa a conhecer do mérito dos litígios entre os particulares proferindo o seu veredicto. É nesse trilhar que surge o processo, que posteriormente nos veio dar o sentido de jurisdição.
2 CONCEITO DE JURISDIÇÃO
Inicialmente, é preciso afirmar, como de costume por toda a doutrina, que a palavra jurisdição vem do latim juris dictio, que significa “dizer o direito”, ou seja, interpretar as leis para solucionar os casos concretos que são trazidos ao Poder Judiciário.
É a jurisdição uma das funções do Estado, mediante a qual esse se substitui aos titulares dos interesses em contraposição para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça, sendo que essa, por sua vez, é feita em razão da atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto, tudo isso por intermédio do processo.
O insigne processualista GIUSEPPE CHIOVENDA define a jurisdição como sendo a:
“[...] função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva.”[1]
A teoria de Chiovenda sobre a jurisdição parte da premissa de que a lei, norma abstrata e genérica, regula todas as situações que eventualmente ocorram em concreto, devendo o Estado, no exercício da jurisdição, limitar-se à atuação da vontade concreta, declarando direitos preexistentes e atuando na prática os comandos da lei, caracterizando-se, assim, pelo seu caráter substitutivo.
Destaque-se, por oportuno, a também significante concepção trazida por Carnelutti, segundo a qual a jurisdição seria a busca pela “justa composição da lide”[2], construindo a base de sua teoria no conceito de lide, no sentido de que se um dos interessados manifesta uma pretensão e o outro oferece resistência, o conflito tem lugar, formando-se uma lide, donde adviria o papel da jurisdição consistente em justamente compor este conflito qualificado por uma pretensão resistida.
Pontue-se que, nada obstante a destacada contribuição de CARNELUTTI para a conceituação de jurisdição, parcela significativa da doutrina critica sua posição na medida em que condiciona a atuação da jurisdição à existência de um conflito de interesses. Com efeito, ainda que se admita a presença da lide em grande número de demandas judiciais, não parece correto afirmar que aquela é essencial à prestação jurisdicional, vez que é possível a existência dessa sem aquela, a exemplo do que se dá nas ações constitutivas necessárias e nas ações de controle de constitucionalidade.
A par dessas considerações, pode-se entender a jurisdição como a atividade realizada pelo Estado, objetivando a aplicação do direito objetivo ao caso concreto trazido a juízo, resolvendo-se com caráter de definitividade uma situação de crise jurídica, de modo a alcançar a pacificação social.
Ainda no campo de sua conceituação, deve-se anotar que a doutrina também posiciona o conceito de jurisdição sob três enfoques distintos: como poder, função e atividade.
Como poder, é a manifestação da soberania estatal, consubstanciada na capacidade de decidir imperativamente e impor decisões, não se limitando, assim, a apenas dizer o direito, mas também de, por imperatividade, satisfazer a pretensão perquirida.
Como função, expressa-se no encargo que têm os órgãos estatais de prestar a tutela jurisdicional quando chamado, promovendo a pacificação social, encargo esse atribuído, em regra ao Poder Judiciário – função típica – e, excepcionalmente, a outros Poderes – função atípica –, como se constata nos processos de impeachment do Presidente da República realizados pelo Poder Legislativo (artigos 49, inciso IX, e 52, inciso I, da Constituição Federal).
Nos dizeres de notável doutrinador CELSO ANTÔNIO:
“[...] a função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de ‘coisa julgada’, atributo este que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recuso.”[3]
Por fim, como atividade, a jurisdição consubstancia-se em um complexo de atos praticados pelo agente estatal investido da atividade jurisdicional no processo, forma que a lei criou para que o exercício dessa função se tornasse possível.
Por fim, e ainda dentro do tópico relativo ao conceito de jurisdição, vale destacar que a doutrina do direito processual civil aponta os objetivos buscado pelo exercício da jurisdição: jurídico (aplicação concreta da vontade do direito); social (resolução do conflito de interesses, proporcionando às partes envolvidas a pacificação social); educacional (propagação, por meio das decisões, dos direitos e deveres dos jurisdicionados como um todo); além do escopo político (fortalecimento do Estado), citado por alguns, a exemplo do eminente processualista DANIEL AMORIM[4].
3 CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO
A doutrina tradicional, apoiada em premissas exclusivamente jurídicas, norteia, em tese, a caracterização da jurisdição em alicerces despreocupados do caráter sociopolítico, que é a base do exercício da função jurisdicional nos tempos atuais.
Com efeito, a hodierna perspectiva metodológica e instrumental atribuída ao exercício da jurisdição é substancialmente diferida da defendida pela tradicional doutrina processual, de tal ordem que a preocupação atual está moldada à legitimidade do sistema jurisdicional, especificamente na utilidade que o processo e o exercício da jurisdição possam oferecer à nação e às suas instituições.
Destarte, a moderna concepção acerca dos caracteres atribuídos à função jurisdicional concentra-se em dois tópicos, considerados primários, dos quais adviriam todos os outros caracteres: caráter substitutivo e escopo de atuação do direito.
Pela natureza substitutiva, tem-se que, ao exercer em concreto a função jurisdicional, o órgão estatal imparcialmente sobrepõe-se aos sujeitos envolvidos na relação jurídica submetida à sua apreciação e torna efetiva a regra legal reguladora do caso, ou seja, o Estado substitui com uma atividade sua (jurisdição) as atividades daqueles que estão envolvidos num antagonismo de interesses.
No que se refere ao escopo jurídico de atuação do direito, tem-se que, com o exercício da função jurisdicional, o que o Estado pretende é que as normas de direito material contidas no ordenamento jurídico se reflitam em resultados práticos, isto é, que efetivamente se materializem, fazendo cumprir o preceito disposto na norma.
Há que se consignar, porém, que o direito processual moderno preconiza que a função jurisdicional é muito maior que a mera efetivação do direito material, tendo, antes de mais nada, uma função social, ou seja, é certo que o direito substancial deve ser cumprido, materializando-se no caso concreto uma pretensão resistida, mas antes disso, o que a jurisdição visa é o escopo da pacificação social, o desejo que impere a atual e denominada ordem jurídica justa.
A doutrina, em geral, traz as outras características que, nesta linha de raciocínio, adviriam das supramencionadas, quais sejam, unidade; secundariedade; atividade estatal provocada; caráter instrumental; função desinteressada; imparcialidade do órgão; e atividade declarativa ou executiva capaz de tornar situações jurídicas imutáveis.
Diz-se que a função jurisdicional é secundária porque o normal é que o direito seja realizado independentemente da atuação da jurisdição, isto é, com a atuação desta o Estado realiza coativamente uma atividade que primeiramente deveria ter sido exercida espontaneamente e de maneira pacífica.
Para que a jurisdição possa atuar, ela deve ser solicitada pela parte interessada, por ocasião de uma pretensão resistida e não resolvida pacificamente, de modo que, a despeito de ser uma atividade pública, a função jurisdicional não atua espontaneamente e de ofício, haja vista que, conforme outra característica sua, é ela desinteressada, mormente porque põe em prática vontades concretas da lei que, em tese, são dirigidas ou relacionadas à relação jurídica substancial trazida a juízo. Há que se consignar, contudo, que, em casos raros e específicos, a própria lei constitui certas exceções à regra da inércia dos órgãos jurisdicionais, anotando-se como exemplo o caso do habeas corpus, que pode ser concedido de ofício.
Deflui-se, ainda, do explanado, que a atividade jurisdicional tem caráter instrumental, posto que não tem outro objetivo senão o de servir de instrumento para dar atuação prática às regras de direito, vale dizer, é o modo de que dispõe o direito para impor obediência aos cidadãos da sociedade.
Corolário da função desinteressada que é exercida pela jurisdição, mostra-se patente o seu caráter imparcial, consubstanciado no fato de que o Estado-Juiz, a despeito de se colocar entre as partes, deve estar ao mesmo tempo em posição equidistante, não podendo pender para algum lado para que o provimento prestado venha a ser justo.
Traz ainda a doutrina que a atividade jurisdicional caracteriza-se por ser declarativa ou executiva, capaz de tornar situações jurídicas imutáveis. Por tal caractere, tem-se que, de fato, o órgão jurisdicional é provocado pelo jurisdicionado e atua no sentido de remover a incerteza ou reparar a transgressão, mediante um juízo que se preste a reafirmar e restabelecer o império do direito, tanto no momento em que declara qual a regra jurídica do caso concreto, quanto no momento em que aplica ulteriores medidas executivas de reparação ou sanção.
Ao efetivar a prestação da jurisdição, o Estado-Juiz faz surgir no mundo jurídico um ato jurisdicional imutável, isto é, um ato provido de coisa julgada, que consiste justamente na imutabilidade dos efeitos de uma sentença, em virtude da qual nem as partes podem repropor a mesma demanda e comportar-se de modo diferente do preceituado, nem os juízes podem voltar a decidir a respeito, nem mesmo o legislador emitir preceitos que contrariem, para as partes, o que já ficou definitivamente julgado. É o caractere da definitividade.
4 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS INERENTES À JURISDIÇÃO
A atividade jurisdicional é informada por princípios fundamentais que, com ou sem expressão na própria lei, fazem parte da substância ou essência deste instituto, fundamentando os alicerces em que esse se finca. São, os princípios, os responsáveis pelo norte a ser dado no desenvolvimento de determinada disciplina ou instituto, servindo ainda de segura orientação para o exercício da interpretação.
No que se relaciona com a função jurisdicional, pode-se citar em primeiro plano o princípio da investidura, que consiste em dizer que a aludida função só será exercida por quem tenha sido regularmente investido na autoridade de Estado-Juiz, não podendo a pessoa destituída de tal prerrogativa exercer a jurisdição. Anote-se que a devida investidura ou ingresso na carreira da magistratura se dá, segundo o artigo 93, inciso I, da CF/88, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se, ainda, do bacharel em direito, no mínimo (conforme emenda constitucional n° 45/2004), três anos de atividade jurídica.
Tem-se, a seguir, o princípio do juiz natural, segundo o qual a jurisdição só pode ser exercida por aquele órgão a que a Constituição Federal atribuiu o poder jurisdicional, órgão este independente e imparcial. De forma que, não é dado ao legislador ordinário criar juízes ou tribunais de exceção para o julgamento de certas causas, na medida em que os organismos judiciários devem preexistir à prática dos fatos a serem apreciados por esse.
Do princípio da aderência ao território ou territorialidade, depreende-se, a priori, que o exercício da função jurisdicional deve estar limitado ao território do próprio país, onde o Estado manifesta a sua soberania nacional, vale dizer, os magistrados só têm autoridade nos limites territoriais do Estado. E, ainda dentro desse, nos limites territoriais impostos pela lei de organização judiciária. Como exemplo, pode-se arrolar a situação da necessidade de citação de um réu que não resida na comarca onde foi proposta a demanda, circunstância essa que exigirá a cooperação do magistrado com exercício jurisdicional na comarca de domicílio do demandado via carta precatória, de forma que o juiz em exercício na comarca onde foi proposta a ação não poderá, pelo princípio da aderência ao território, praticar atos fora dos limites de sua jurisdição estabelecida em lei.
Corolário do anterior princípio, confundindo-se até com o mesmo, tem-se o da improrrogabilidade, que também é trazido pela doutrina, pelo qual se depreende que os limites da jurisdição são os traçados na Constituição Federal, não podendo o legislador ordinário alterá-los, seja para restringir, seja para ampliar.
O princípio da inafastabilidade vem expresso no ordenamento constitucional pátrio, mais precisamente no artigo 5°, inciso XXXV, que, em sua disposição, garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, o qual não pode deixar de atender a quem venha a juízo deduzir uma pretensão fundada no direito e pedir solução para ela. Não se podendo, assim, “excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.” De forma que, quando devidamente provocado, o órgão constitucionalmente investido de jurisdição tem a obrigação de prestar a tutela jurisdicional e não a simples faculdade.
Princípio de ordem constitucional, segundo o qual é defeso a qualquer dos Poderes a delegação de atribuições, é o princípio da indelegabilidade. Desse modo, não pode o magistrado segundo critérios próprios de conveniência ou oportunidade delegar o exercício de suas funções a outros órgãos, especialmente pelo fato de que o juiz, ao exercer a função jurisdicional, não o faz em nome próprio, mas em nome do Estado que o escolheu mediante critérios legais para o cumprimento de uma função pública.
Por fim, a doutrina traz o princípio da inevitabilidade, pelo qual se extrai que, uma vez provocada a função jurisdicional, as autoridades competentes para o seu exercício tornam-se inevitáveis, impõem-se por si mesmas em virtude do poder estatal soberano do qual são investidas, independentemente da vontade das partes, de forma que essas se colocam em posição de sujeição, consistente na impossibilidade de evitarem que sobre elas ou sobre sua esfera de direitos se exerça a autoridade estatal. Quanto ao ponto, pertinente a exceção trazida pelo eminente DANIEL AMORIM:
“Esse princípio da inevitabilidade, entretanto, e por incrível que possa parecer, tem uma exceção. Trata-se da previsão contida no art. 67 do CPC, que permite ao terceiro, quando citado em razão de sua nomeação à autoria, simplesmente recusar a sua qualidade de parte, negando-se pura e simplesmente, por sua própria vontade, a integrar a relação jurídica processual. Ao rejeitar a sua integração ao processo, mesmo tendo sido citado, o nomeado à autoria, por sua própria opção, se exclui dos efeitos da jurisdição a serem gerados pela decisão judicial em processo do qual não participará. É caso isolado, e de duvidosa constitucionalidade, de não aplicação do princípio da inevitabilidade da jurisdição.”[5]
5 “ESPÉCIES” DE JURISDIÇÃO
A jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, é una e indivisível, de modo que, em tese, a sustentação de que a jurisdição comporta divisões ou espécies seria cientificamente imprópria, na medida em que, assim afirmando, estar-se-ia aceitando em um mesmo Estado uma pluralidade de soberanias, o que seria incompatível com a nossa ordem jurídica.
Nada obstante tal consideração, a doutrina majoritária estabelece essas especificidades para fins meramente didáticos, exaltando a relevância da especificação no sentido de melhor apresentar as diferentes possibilidades de manifestação da função jurisdicional estatal. De tal ordem que, a diferença de matéria jurídica a ser manipulada pelos juízes, na composição dos litígios, ressalta essa necessidade prática (conveniência de trabalho) da especialização não só para os julgadores, como também para as próprias leis que regulam a atividade jurisdicional.
Destarte, os conflitos de interesses trazidos a juízo variam de natureza conforme o direito objetivo material em que se fundamenta, podendo a causa versar acerca de direitos penal, civil, administrativo, tributário etc., tendo a doutrina, com relação ao objeto da pretensão, fixado a primeira forma de classificação, qual seja, em Jurisdição Penal ou Cível.
Falar de jurisdição penal, corresponde aduzir que o Estado-Juiz exercerá esta função quando estiver diante de causas de natureza penal, isto é, causas que, em regra, têm natureza punitiva, sendo tal estudo levado a efeito pelo direito processual penal. No outro polo, localiza-se a jurisdição civil, que poderia ser definida como a “não penal”, sendo empregada, assim, em sentido bem amplo e residual, uma vez que o Estado exerce esse tipo de jurisdição diante de todas as outras espécies de pretensão, tenham elas natureza civil, comercial, administrativa, trabalhista, constitucional etc.
Quanto a essa especificação, há de se registrar ainda que ela não coloca a jurisdição penal e a cível em compartimentos estanques, de forma que em nosso ordenamento jurídico casos existem que revelam uma verdadeira interação entre as aludidas espécies. Tome-se como exemplificação o caso de alguém que está sendo processado criminalmente e para o julgamento dessa acusação seja relevante o deslinde de uma questão civil, circunstância em que se defere a suspensão do processo criminal para aguardar a solução do caso no cível (artigos 92 ao 94 do Código de Processo Penal).
Deve-se atentar também à eficácia que a sentença penal condenatória transitada em julgado pode vir a ter no âmbito da jurisdição cível. Outra não é a dicção do artigo 91, inciso I, do Código Penal, ao “tornar certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime”. Como ponto de contato pode-se citar, por fim, a questão da prova emprestada, que pode ser utilizada em outro processo, desde que este aproveitamento não venha a surpreender uma pessoa que não foi parte no processo em que a prova foi produzida, especialmente em atenção ao princípio do contraditório.
Outra forma de classificação jurisdicional trazida pelos trabalhos doutrinários, leva em consideração o órgão que a exerce, sendo possível falar, dessa maneira, em Jurisdição Especial e Jurisdição Comum.
Com efeito a Constituição Federal institui vários órgãos judiciários, constituindo cada um deles uma unidade administrativa autônoma, recebendo da própria Lei Maior os limites de sua competência. Levando em conta tais preceitos, tem-se que a jurisdição especial é exercida por órgãos que julgam apenas pretensões de natureza determinada, tais como a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar. Já no que pertine à jurisdição comum, tem-se que esta é exercida pela Justiça Estadual e a Federal, julgando pretensões de quaisquer naturezas, salvo as submetidas às Justiças Especiais.
Há também entre as jurisdições especiais e as comuns pontos de contato, não estando as mesmas absolutamente isoladas, mormente pelo fato de o nosso ordenamento jurídico ser sistêmico em seu conteúdo. De modo que circunstâncias existem em que os atos processuais realizados perante uma são aproveitados em outra, como no caso de um reconhecimento de competência absoluta, em que, após declarada essa, os autos serão remetidos ao órgão competente, só se prejudicando os atos decisórios, aproveitando-se os demais que não forem incompatíveis.
Outra forma de classificar a jurisdição se faz quanto ao grau em que a mesma é exercida, falando-se aí em Jurisdição Superior ou Jurisdição Inferior.
É de se salientar, falando dessa especificação, que a legislação processual traz fincada em suas raízes o fundamental princípio do duplo grau de jurisdição, que corresponde justamente à possibilidade de um mesmo processo, após julgamento pelo juiz inferior perante o qual teve início, voltar a ser objeto de julgamento, agora por órgãos de jurisdição superior, sendo este o que conhece a causa em grau de recurso, dizendo-se então que tem competência recursal ou que exerce segundo grau de jurisdição. Vale dizer, a jurisdição inferior é exercida pelo órgão jurisdicional que enfrenta o processo desde o início, ou seja, aquele que tem competência originária para a demanda, enquanto a jurisdição superior é exercida em hipótese de atuação recursal dos tribunais.
Há de se registrar, ainda em tema de jurisdição superior e inferior, a diferença existente, por alguns autores desprezada, entre instância e grau de jurisdição. O primeiro termo guarda relação com a organização judiciária, sendo certo que na estrutura do Poder Judiciário existem órgãos hierarquicamente inferiores, chamados de primeira instância, e órgãos superiores, os de segunda instância.
Contudo, ainda que na maioria das vezes seja o primeiro grau de jurisdição exercido por órgãos de primeira instância, e o segundo grau pelos de segunda instância, existem casos em que a competência originária é determinada a Tribunais, exercendo estes, pois, primeiro grau de jurisdição, quando, em tese, seriam de segunda instância. Noutro ponto, pode-se admitir a hipótese de um órgão de primeira instância exercer segundo grau de jurisdição, como no caso dos juizados especiais cíveis, onde a competência recursal é exercida por um órgão colegiado de primeira instância.
Traz a doutrina, também, uma especificação que leva em conta a submissão da jurisdição ao direito positivado, distinguindo-a em Jurisdição de Direito e Jurisdição de Equidade.
Em palavras claras e objetivas, tem-se que na primeira o magistrado, no exercício da função jurisdicional, fica vinculado aos limites legais estabelecidos, não podendo deixar de aplicá-los. Já no que se relaciona com a jurisdição de equidade, o Estado-Juiz se liberta dos critérios de legalidade estrita, permitindo-se que ao caso seja dada a solução que o magistrado reputar a mais justa para a hipótese concreta, ainda que se deixe de aplicar o direito positivo.
O sistema processual pátrio adota a jurisdição de direito, só sendo lícito ao Estado-Juiz julgar por equidade quando expressamente autorizado. Por outro motivo não é que no artigo 127 do Código de Processo Civil vem estampado que “o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”.
Uma última forma de classificação da jurisdição, que figura entre uma das mais relevantes, senão a de maior relevância, é a que especifica a jurisdição em Contenciosa e Voluntária, inclusive sendo a única expressamente consagrada no Código de Processo Civil.
Dentre os caracteres apontados pela doutrina para identificar a jurisdição voluntária, pode-se citar: a obrigatoriedade, em regra (apesar da nomenclatura, na maioria dos casos a intervenção do Judiciário é necessária à obtenção da tutela perquirida); maior incidência do princípio inquisitivo (difícil se imaginar um sistema puramente dispositivo ou inquisitivo, mas na jurisdição voluntária, diferentemente da contenciosa, o último tem maior incidência); observância de um juízo de equidade (previsão expressa do art. 1.109 do CPC); participação do Ministério Público como fiscal da lei (porém, apesar da previsão expressa do art. 1.105 do CPC, o Superior Tribunal de Justiça adota a teoria restritiva da participação do Parquet, exigindo a comprovação concreta de uma das causas do art. 82 do CPC).
A maior discussão a respeito da jurisdição voluntária reside na identificação da sua natureza jurídica. Para os defensores da teoria clássica, e aqui pode-se citar ARRUDA ALVIM[6], também chamada de teoria administrativista, no exercício da jurisdição voluntária o magistrado não realiza atividade jurisdicional, senão a mera administração pública de interesses privados; já para os adeptos da teoria jurisdicionalista ou revisionista, o juiz, na jurisdição voluntária, exerce atividade jurisdicional, nada obstante apresente essa elementos particulares que a distinguem da atividade exercida na jurisdição contenciosa. Essa última, conquanto incipiente, tem ganhado cada vez mais espaço no cenário acadêmico, contando com a adesão dos eminentes Calmon de Passos, Ovídio Baptista e Leonardo Greco.
Por fim, tem-se na outra extremidade dessa classificação a jurisdição contenciosa, que é a jurisdição propriamente dita, vale dizer, a função que o Estado desempenha na pacificação ou composição dos litígios, tendo como características principais a existência de um litígio, lide ou conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita, havendo, ainda, a presença de partes, uma inércia inicial, o processo e a coisa julgada material, circunstâncias que a diferenciam da tutela prestada com o exercício da jurisdição voluntária.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A jurisdição surgiu da necessidade de se resolver os conflitos decorrentes da vida em sociedade de forma justa e eficaz. Conforme a sociedade foi se politizando e se desenvolvendo intelectualmente, viu-se a necessidade de uma forma de resolução de conflitos que não se desse pela submissão do mais fraco ao mais forte.
Sendo função do Estado, a atividade jurisdicional proporciona aos litigantes maior grau de certeza e segurança, visto que terão suas pretensões decididas por juízes imparciais e sem interesse na causa. Além disso, há os princípios que guiam a atividade jurisdicional, garantindo sua imparcialidade, funcionamento e justiça das decisões.
Desse modo, conclui-se ser a jurisdição uma das principais funções estatais, mediante a qual o Estado se substitui aos titulares dos interesses em contraposição para, imparcialmente, buscar a pacificação social e a convivência harmoniosa em sociedade. Em outras palavras, consubstancia-se na atividade realizada pelo Estado, objetivando a aplicação do direito objetivo ao caso concreto trazido a juízo, resolvendo-se com caráter de definitividade uma situação de crise jurídica, de modo a alcançar a pacificação social.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Alvim. Manual de Direito Processual Civil – Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República, 1940.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República, 1941.
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de novembro de 1973. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, 1973.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil – Vol. II. Campinas: Bookseller, 2000, p. 3.
CARNELUTTI, Francisco. Estudios de Derecho Procesal, vol. II, trad, esp. de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1952. p. 5.
BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.
[1] Instituições de Direito Processual Civil – Vol. II. Campinas: Bookseller, 2000, p. 3.
[2] Estudios de Derecho Procesal – Vol. II, trad. esp. de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1952. p. 5.
[3] Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 34.
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 11.
[5] Passim, p. 20.
[6] Manual de Direito Processual Civil – Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 251-257.
Assessor Jurídico Ministerial da 15ª Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Bacharel em Direito e Pós-graduado em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar - UnP. Autor do livro "O Ministério Público e a Investigação Criminal: aspectos constitucionais legitimadores".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Pablo de Oliveira. Jurisdição: considerações acerca do seu conceito, características, princípios inerentes e "espécies" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 ago 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40549/jurisdicao-consideracoes-acerca-do-seu-conceito-caracteristicas-principios-inerentes-e-quot-especies-quot. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
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