Resumo: A presente pesquisa tem por escopo expor a teoria da relativização da coisa julgada e a denominada coisa julgada inconstitucional. Destacam-se, sobretudo, os argumentos utilizados por renomados juristas na defesa na defesa da tese, para ao final expor-se a sua aplicação em caso concreto.
Palavras-chave: Coisa julgada. Relativização. Coisa julgada inconstitucional.
Considerações iniciais
Tem-se observado, hodiernamente, a construção de uma teoria baseada na possibilidade de desfazimento ou “relativização” da coisa julgada, sustentando-se que a res judicata, como corolário do princípio da segurança jurídica, constitui apenas mais um dentre outros princípios constitucionais, que não merece prevalecer quando sopesado com estes. Argumenta-se que o valor da segurança jurídica não subsiste ao confronto com o valor do ideal de justiça.
Nesse sentido, argumenta Carlos Valder do Nascimento que a coisa julgada não possui foro absoluto, de modo que não se deve emprestar a qualidade da impermeabilidade a tal instituto[1]. Por tais razões, aduz o referido autor, baseado em lição de Paulo Otero, que a coisa julgada deve ser desfeita, ou desconsiderada, quando se observar a sua contrariedade aos dispositivos constitucionais, sendo, dessa forma, possível o manuseio de ação visando à desconstituição da decisão transitada em julgada que foi proferida em desacordo com os preceitos constitucionais. Em suma, a decisão desconforme ao texto constitucional poderia ser desfeita independentemente do ajuizamento de ação rescisória, bastando o intento de uma ação autônoma que evidenciasse a afronta aos dispositivos da Constituição[2].
A fim de corroborar a tese da “relativização” da coisa julgada e o seu desfazimento por meio de “remédio jurídico-processual próprio”, Carlos Valder do Nascimento, citando o entendimento de Paulo Roberto de Oliveira Lima, afirma que, não obstante a existência de inúmeras divergências na interpretação das normas jurídicas deve-se garantir a revisão do instituto da coisa julgada por meio de “remédio jurídico-processual próprio”, a fim de se evitar a dualidade nas decisões judiciais[3].
Por outro lado, aduz Cândido Rangel Dinamarco a necessidade de se encontrar um equilíbrio entre a celeridade processual, que favoreceria a estabilidade das relações jurídicas, e a ponderação, que, por sua vez, estimularia a produção de resultados (decisões) justos[4].
Desenvolvendo a concepção supracitada, argumenta o nobre processualista que os princípios não constituem um fim em si mesmo, devendo ser considerados em seu conjunto, a fim de melhor proporcionar um sistema processual justo, de modo a efetivar o acesso à justiça, entendendo-se este como o acesso a uma ordem jurídica justa (soluções justas)[5].
1. Exemplos da relativização da coisa julgada
Um dos exemplos dados por Cândido Rangel Dinamarco, a fim de justificar a hipótese de “relativização” da coisa julgada, é o julgamento proferido pelo Min. José Augusto Delgado e que é assim resumido pelo mencionado processualista:
A Fazenda do Estado de São Paulo havia sido vencida em processo por desapropriação indireta e, depois, feito acordo com os adversários para parcelamento do débito; pagas algumas parcelas, voltou a juízo com uma demanda que denominou ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito. Sua alegação era a de que houvera erro no julgamento da ação expropriatória, causado ou facilitado pela perícia, uma vez que a área supostamente apossada pelo Estado já pertencia a ele próprio e não aos autores. Apesar do trânsito em julgado e do acordo depois celebrado entre as partes, o Min. José Delgado votou no sentido de restabelecer, em sede de recurso especial, a tutela antecipada que o MM. Juiz de primeiro grau concedera à Fazenda e o Tribunal paulista, invocando a autorictas rei judicatae, viera a negar. A tese do Ministro prevaleceu por três votos contra dois e a tutela antecipada foi concedida[6].
Por sua vez, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, pautados na obra de Paulo Otero, aduzem que a inconstitucionalidade é muito enfocada sob a perspectiva dos atos legislativos, sendo que a análise dessa questão deve ser deslocada também para os atos de natureza judicial[7].
Desse modo, da mesma forma como ocorrem com os atos de natureza legislativa, os atos judiciais também são passíveis de controle, de modo que uma decisão judicial quando contrária aos preceitos constitucionais e ainda que transitada em julgado não pode prevalecer, devendo-se admitir a sua desconstituição, mesmo quando não haja a possibilidade do ajuizamento de ação rescisória[8].
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria demonstram preocupação com a idéia de se atribuir um poder absoluto aos juízes, e por consequência às decisões judiciais. Com base nessa premissa, argumentam os autores que os preceitos constitucionais não devem ser o resultado da aplicação do direito pelos tribunais, mas sim o produto da própria força normativa e vinculativa da Constituição, enquanto Lei Fundamental. Nessa trilha, e ainda seguindo a lição de Paulo Otero, sustentam Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria que se deve buscar a conciliação entre segurança e justiça, tendo por norte a idéia de que, assim como as leis, as decisões judiciais não são absolutas, devendo ser qualificado como absoluto apenas a idéia de um Direito Justo[9].
Avançando sobre o tema, discorrem os autores que a Constituição da República de 1988, ao contrário da Constituição Portuguesa, não dispensou tratamento ao instituto da coisa julgada, apenas estando expresso no artigo 5º, inciso XXXVI, que lei nova não poderá atingir a coisa julgada (e também o direito adquirido e o ato jurídico perfeito)[10]. Assim, acerca do instituto da coisa julgada, no entender dos autores, apenas estaria constitucionalizada a impossibilidade do legislador ordinário afrontar a coisa julgada, sendo tudo o mais relativo ao instituto matéria reservada à legislação ordinária.
2. Coisa julgada inconstitucional
De tal modo, o princípio da intangibilidade da coisa julgada estaria em um patamar hierarquicamente inferior aos princípios constitucionais, razão pela qual sequer se justificaria a idéia de contraposição entre princípios constitucionais, quando a (in)constitucionalidade de uma lei estivesse em confronto com a coisa julgada[11]. Aduzem, portanto, Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria que uma decisão acobertada pela coisa julgada jamais poderá prevalecer quando estiver substanciada em uma lei inconstitucional, seja porque se estaria diante de uma “coisa julgada inconstitucional”, seja em razão do fato de que sequer poder-se-ia falar em existência de coisa julgada material, pois o próprio vício da inconstitucionalidade impediria a formação da coisa julgada[12].
Ao defender a teoria da “coisa julgada inconstitucional”, Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria utilizam como exemplos decisões exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça[13], no sentido de que, embora se admitam interpretações diversas às leis, se uma lei é declarada inconstitucional posteriormente a uma decisão judicial que a aplicou, ainda que houvesse interpretação controvertida nos tribunais, tal decisão deve ser desconstituída, por meio de ação rescisória, o mesmo ocorrendo com uma decisão que deixa de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional e que tem a sua constitucionalidade reconhecida posteriormente[14].
Contudo, em se tratando de “coisa julgada inconstitucional”, argúem os autores que não seria necessária a observância do prazo decadencial para a propositura de ação rescisória, por se tratar de um vício de nulidade, sendo que a desconstituição da coisa julgada em tais casos poderia ocorrer independentemente do ajuizamento de ação rescisória, por meio da querela nulitattis, que, a rigor, pode ser proposta a qualquer tempo e também por meio de embargos à execução[15].
Em sentido um pouco diverso do posicionamento supra esposado é a doutrina de Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina para quem a sentença que aplica lei declarada inconstitucional, mesmo que posteriormente à prolação da sentença, é inexistente e não nula, uma vez que, em regra, em sede de controle concentrado, as decisões que reconhecem a inconstitucionalidade das leis possuem efeitos ex tunc, isto é, desde a origem da lei[16]. Assim, Wambier e Medina defendem a possibilidade do ingresso de ação declaratória de inexistência, a fim de desconstituir a coisa julgada, sob o fundamento do não preenchimento de um dos pressupostos da ação, qual seja a impossibilidade jurídica do pedido ou ainda poder-se-ia admitir a alegação de falta de fundamento (art. 485, V, c/c 458, ambos do CPC)[17].
Apesar de existir uma tendência para o temperamento dos efeitos das ações declaratórias de inconstitucionalidade, sobretudo após a edição da Lei 9.868/1999, a regra geral permanece sendo a atribuição de efeitos ex tunc à decisão que declarada, em sede de controle concentrado, a inconstitucionalidade do diploma legislativo. Em razão de tal circunstância, Teresa Wambier e Garcia Medina defendem a idéia de que mesmo a revogação da lei objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade não implica em prejudicialidade ou perda de objeto desta ação. Argumentam os autores, basicamente, que a ação declaratória pode ser considerada improcedente ou sendo procedente pode-se reconhecer efeitos retroativos a tal decisão (ex tunc), o que não ocorre em caso de revogação do diploma legislativo[18].
Em se tratando de inconstitucionalidade superveniente, e considerando-se o entendimento do STF no sentido de que a ele cabe, em sede de controle concentrado, decidir acerca da constitucionalidade somente de leis editadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e não em relação às leis editadas anteriormente, sendo que em tais casos caberia apenas o controle difuso, defendem Wambier e Medina a possibilidade do ajuizamento de ação rescisória ou, preferencialmente, de ação declaratória de inexistência para corrigir as hipóteses em que lei anterior foi aplicada após a edição da Constituição[19]. Trilham os autores, ainda, o sentido de que quando uma norma deixa de ser aplicada por um juízo em razão desta reputá-la como inconstitucional e sobrevier decisão do STF declarando a constitucionalidade do dispositivo que se deixou de aplicar cabe ação rescisória, aduzindo, ainda, não ser possível a aplicação da súmula 343 do STF, por entender os autores que tal prescrição não se coaduna com a Constituição Federal[20].
Avançando sobre a questão, Wambier e Medina chegam a afirmar que há a violação à literal disposição de lei, na forma como preceitua o artigo 485, inciso V, do CPC, quando se dá interpretação à norma jurídica diversa da interpretação considerada como correta pelo STF ou pelo STJ, cabendo em quaisquer desses casos o ajuizamento de ação rescisória, caso haja a aplicação da interpretação divergente[21]. Sendo assim, sustentam os autores que deve sempre prevalecer o entendimento consolidado no STF, acerca da questão constitucional, e no STJ, a respeito da lei federal, sendo que a adoção de interpretação diversa daquela considerada como correta pelos tribunais superiores implica em violação ao princípio da legalidade[22].
A partir dessa construção, sustentam os juristas a idéia de que a admissão da desconstituição de julgados que adotaram interpretações diversas daquelas consideradas como corretas nos Tribunais Superiores, ainda que no momento da consolidação de tal entendimento, isto é, mesmo durante o processo de “amadurecimento” da decisão predominante, significa privilegiar, a um só tempo, os valores justiça e segurança. Nesse aspecto, a segurança é considerada como a previsibilidade e uniformidade das decisões judiciais, que dessa forma tenderiam a um só sentido, evitando-se, assim, decisões discrepantes[23].
Acerca da regra insculpida no artigo 741, inciso II, do Código de Processo Civil, asseveram Wambier e Medina que tal dispositivo não teria eficácia rescisória, uma vez que se baseando a execução em título judicial fundado em lei considerada como inconstitucional pelo STF, ou em que se adotou interpretação tida como incompatível com a Constituição, levaria à inexistência do próprio título judicial, o que ensejaria no reconhecimento da inexistência jurídica da ação, o que inviabiliza o próprio trânsito em julgado desta. Dessarte poderá haver o reconhecimento de ofício da ausência do título executivo, o que acarretaria em indeferimento da petição inicial, ou ainda o reconhecimento da inexistência por meio do manejo de exceção de pré-executividade[24].
Argumentam, ainda, os autores que a regra do artigo 741, parágrafo único, do CPC, apenas pode ser aplicada quando, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, se atribuem efeitos ex tunc à decisão que reconhece a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, não sendo aplicável nas hipóteses em que há o temperamento dos efeitos da inconstitucionalidade (eficácia ex nunc). Em se tratando de controle incidenter tantum, apenas se poderia aplicar o dispositivo nas hipóteses em que a lei ou o ato normativo são extirpados do ordenamento, na forma expressa no artigo 52, inciso X, da CRFB/88, com o reconhecimento de efeitos ex tunc[25]. Da mesma forma, seria aplicável a regra do artigo 741, parágrafo único, do CPC, quando se reconhecesse que a interpretação do texto legal é incompatível com a Constituição (declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ou nos casos de interpretação conforme a Constituição)[26]. Outrossim, criticam os autores a redação do dispositivo mencionado, mais precisamente a expressão “em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”, pois dessa forma resta margem ao julgador para reconhecer a inexistência do título judicial executivo por afronta a princípio constitucional, o que pode levar a uma exagerada insegurança jurídica. Em face disso, asseveram os autores que, em se tratando de ofensa a princípio, deveria o legislador ter vinculado a decisão judicial à existência de súmula ou jurisprudência pacífica de Tribunal superior[27].
Por sua vez, o processualista Cândido Rangel Dinamarco afirma que as decisões judiciais devem visar o equilíbrio entre segurança (jurídica) e justiça, de modo que a injustiça de uma decisão pode servir como fundamento para a sua desconstituição, ainda que em detrimento da idéia de segurança[28]. Assim, sustenta Dinamarco, com base em lição de José Augusto Delgado, que a autoridade da coisa julgada está sempre condicionada à observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Dinamarco faz um panorama do entendimento de diversos autores, tanto da doutrina nacional quanto estrangeira, que defendem a idéia da “relativização” da coisa julgada. Porém ao analisar o entendimento da Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria, revela um entendimento um pouco diverso desses autores. Isso porque, conforme já esposado, Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria sustentam que a coisa julgada deve ser desfeita em todos os casos em que a decisão judicial contenha o vício da inconstitucionalidade, enquanto que para o entendimento de Dinamarco a inconstitucionalidade não é suficiente, admitindo-se a desconstituição da coisa julgada somente em casos excepcionais, em que há afronta a um princípio constitucional de maior envergadura que a segurança jurídica[29].
A partir dessa concepção Dinamarco formula uma proposta de sistematização para os casos em que a coisa julgada mereceria ser afastada, a fim de se assegurar a aplicação de princípios/valores considerados como de maior grandeza em cotejo com o princípio da segurança jurídica e, por consequência, da coisa julgada. Admitindo o casuísmo dos exemplos dados em doutrina para a hipótese de desconstituição da coisa julgada, constata o autor que o ponto de convergência entre os exemplos e teorias esposadas está na idéia de prevalência do substancial sobre o processual, entendido como a prevalência ao valor do justo em detrimento do regramento processual da coisa julgada[30].
Interessante é a construção de Dinamarco no sentido de que há decisões judiciais que embora abordem o mérito da causa, ou a relação substancial da causa ligada aos bens da vida postulados, assemelham-se as decisões terminativas (isto é, as decisões que não tratam acerca do mérito da causa e por isso não são acobertadas pela coisa julgada material, apenas pela formal), por conterem preceitos juridicamente impossíveis[31]. Exemplo disso seriam os casos em que uma decisão judicial é proferida em completa afronta a princípios constitucionais como o caso de reconhecimento em sentença da separação de um Estado-membro da federação, a condenação de uma seguradora a pagar o seguro de vida aos familiares de uma pessoa que estivesse viva, ou a disposição de uma parte do próprio corpo para o pagamento de uma dívida, entre outros casos. Sendo assim, não haveria que falar em coisa julgada ante a ineficácia e impossibilidade de execução dos efeitos da sentença[32].
Um dos critérios defendidos por Dinamarco é a observância ao princípio da moralidade administrativa, dando o exemplo das hipóteses de expropriação de um bem particular pelos entes públicos, cabendo em tais casos o pagamento de uma justa indenização, que não deve corresponder ao arbitramento de um valor excessivo (proteção ao Estado – afronta à moralidade administrativa), tampouco um valor aquém do valor de mercado (proteção ao particular – violação ao direito de propriedade), afirmando, assim, o caráter não absoluto da coisa julgada[33]. Noutro giro, reitera Dinamarco a concepção de que não basta a inconstitucionalidade para a desconstituição da coisa julgada, sendo imperiosa a produção de um mau resultado pela decisão judicial, que, além disso, deverá colidir com algum preceito constitucional. Ao propor a excepcionalidade da flexibilização da coisa julgada (apenas admitida em casos absurdos, injustiças graves, transgressões constitucionais), assevera Dinamarco a adoção da razoabilidade interpretativa como critério para a desconstituição da coisa julgada, para que assim se evite a perpetuação de “injustiças” a pretexto de não se eternizar litígios[34]. Ainda, cita como remédios possíveis para se atingir a desconsideração da coisa julgada, com base na doutrina de Pontes de Miranda, a propositura de uma nova demanda idêntica à primeira, resistência à execução (por meio de embargos, impugnação aos embargos ou exceção de pré-executividade), alegação incidenter tantum (inclusive em sede de defesa), além de defender a abertura das hipóteses de cabimento da ação rescisória[35].
Acerca das críticas em face da teoria da “relativização” da coisa julgada, em razão da ausência de parâmetros objetivos para a sua observância, o que poderia acarretar em um perigoso subjetivismo e personalismo, incompatíveis com o Estado-de-direito e due process of law, argumenta Dinamarco que algum grau de subjetivismo sempre é indispensável, encontrando até mesmo previsão positiva no ordenamento (modulação de efeitos das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, repercussão geral, livre convencimento, máximas de experiência, entre outros)[36]. Prossegue o processualista afirmando que o próprio conceito de due process of law é juridicamente indeterminado, dependendo a sua aplicação dos valores e circunstâncias a serem considerados pelos juízes diante de cada caso concreto[37]. Por outro lado, Dinamarco é crítico à idéia de previsão infraconstitucional das hipóteses em que a coisa julgada poderia ser “relativizada”, uma vez que a extrema excepcionalidade dessas hipóteses não aconselha a sua estereotipação, pois desse modo haveria a própria institucionalização do enfraquecimento da coisa julgada.
Por fim, argúi Dinamarco que o receio da instauração de uma série de casos de flexibilizações e desconsiderações da coisa julgada não se justifica, haja vista os reduzidos casos apreciados pelos tribunais pátrios em que se adotou a tese da “relativização” da coisa julgada[38].
A fim de ilustrar a aplicação da teoria da “relativização” da coisa julgada, merece transcrição a ementa de julgado exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se admitiu o desfazimento da coisa julgada, em caso de desapropriação indireta em que já haviam sido pagas oito parcelas do valor indenizado, por ter sido suscitada a dúvida quanto ao domínio das terras desapropriadas, que, por sua vez, também foi objeto de apreciação pela decisão judicial, observe-se:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DÚVIDAS SOBRE A TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. PRINCÍPIO DA JUSTA INDENIZAÇÃO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.
1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última parcela do precatório (art. 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.
2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.
3. "A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabelecidos na norma jurídica, adequadamente interpretada. "(WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. 'O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses de Relativização', São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 25)
4. "A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade - esse, sim, o problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e do leque de possibilidades que sugere, como: a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo; e c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas. " (DINAMARCO, Cândido Rangel. 'Coisa Julgada Inconstitucional' — Coordenador Carlos Valder do Nascimento - 2ª edição, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, págs. 63-65)
5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.
6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou não presentes no caso dos autos.
7. Recurso especial desprovido.[39]
Destarte, percebe-se que no caso destacado, a fim de fundamentar a aplicação da teoria da “relativização” da coisa julgada, a ministra relatora adotou, preponderantemente, o entendimento sustentado por Wambier e Medina, aqui também já mencionado, no sentido de que há decisões que, por sua natureza, não transitam em julgado, embora se verifique da ementa em apreço, contraditoriamente, a afirmação de que as questões relativas à titularidade do imóvel e ao valor da indenização estariam acobertadas pela coisa julgada.
Conclusão
Por certo, consoante, observa-se da redação do artigo 485, do Código de Processo Civil, a coisa julgada não constitui princípio absoluto, na medida em que há possibilidades previstas no nosso ordenamento que permitem a sua rescisão. No entanto, na forma como cunhada a idéia de “relativização” da coisa julgada, verifica-se que tal concepção teria por escopo a ampliação das hipóteses de rescisão da coisa julgada, bem como a criação de hipóteses em que o referido instituto poderia ser desconsiderado.
Referências bibliográficas
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[1] NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 12.
[2] Ibidem, pp. 16-18.
[3] Ibidem, p. 18.
[4] DINAMARCO, op. cit., p. 217.
[5] Ibidem, p. 218.
[6] Ibidem, pp. 224-225. Conferir: STJ, 1ª Turma, REsp n. 240.712, j. 15.2.2000, rel. José Delgado, m. v.
[7] THEODORO JR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. “A Coisa Julgada Inconstitucional e os Mecanismos para o seu Controle” In: NASCIMENTO, Carlos Valder (coord.). Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, pp. 125-126.
[8] Ibidem, pp. 125-127.
[9] Ibidem, pp. 129-130.
[10] Ibidem, pp. 139-140.
[11] Ibidem, p. 141.
[12] Ibidem, pp. 145-146. Quanto à impossibilidade de formação de coisa julgada em decorrência do vício de inconstitucionalidade da lei que embasou a decisão judicial os autores reproduzem o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco, ressalvando que a posição de Theodor Júnior e Cordeiro de Faria é pela existência de “coisa julgada inconstitucional”, na esteira da lição de Paulo Otero.
[13] Ibidem, pp. 150-151.
[14] THEODORO JR; FARIA, op. cit., pp. 150-151. Quanto à hipótese de se deixar de aplicar uma determinada lei por questão de ordem constitucional, que posteriormente vem a ser afastada por alteração de orientação jurisprudencial, Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria argumentam que não se trata de uma inconstitucionalidade direta, mas sim reflexa, de modo que em tais casos deve haver a submissão ao regime comum das rescisórias. (Ibidem, pp. 156-157).
[15] Ibidem, pp. 152-153.
[16] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 39-43.
[17] Ibidem, p. 43. Para Teresa Wambier e Medina a lei declarada inconstitucional em sede de controle concentrado de constitucionalidade, quando não há restrição aos efeitos de tal declaração, deve ser considerada como inexistente e não nula. Apesar disso, admitem os autores que mesmo inexistentes tais leis podem produzir efeitos, em razão de princípios relevantes, citando como exemplos a segurança jurídica e a boa-fé. (Ibidem, pp. 46-47).
[18] Ibidem, pp. 51-52.
[19] Ibidem, p. 53.
[20] Ibidem, pp. 54-55. Em verdade, sustentam Wambier e Medina que tal verbete sumular atenta aos princípios da legalidade e da isonomia. Da legalidade porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser por força de lei, entendendo-se a legalidade como a vinculação do juiz ao sistema, isto é, não apenas à lei, mas a esta em conjunto com a doutrina e a jurisprudência, e desse modo a decisão diversa, discrepante de um entendimento consolidado, representaria ofensa à legalidade, e da isonomia, pois no entender dos autores permitir que subsistam, num mesmo momento histórico, decisões judiciais que dão interpretações diversas à lei em casos idênticos ofende o princípio da isonomia. Ibidem, pp. 58-63.
[21] Ibidem, p. 55. Sustentam os autores que, nesses casos, não seria adequado exigir-se que não haja controvérsia acerca do sentido da lei, na forma como propõe a súmula 343 do STF, sendo que a violação a “literal” disposição de lei é resquício da dogmática rígida praticada à época da promulgação do CPC. Por tais razões, justificar-se-ia o afastamento do teor da súmula 343 do STF, de modo a se permitir o ajuizamento de ação rescisória para a desconstituição de julgados que tivessem aplicado interpretação divergente daquela considerada como correta. Ibidem, pp. 56-57.
[22] Ibidem, pp. 60-70.
[23] Ibidem, p. 71.
[24] Ibidem, pp. 72-73.
[25] Ibidem, pp. 74-75.
[26] Ibidem, p. 75.
[27] Ibidem, pp. 76-78.
[28] DINAMARCO, op. cit., pp. 216-228.
[29] Ibidem, p. 238.
[30] Ibidem, pp. 240-243.
[31] Ibidem, pp. 244-245.
[32] Ibidem, pp. 244-248. Com base em tais preceitos, afirma Dinamarco a propriedade da expressão “coisa julgada inconstitucional”.
[33] Ibidem, pp. 249-252.
[34] Ibidem, p. 254.
[35] Ibidem, pp. 256-259.
[36] Ibidem, pp. 262-264.
[37] Ibidem, p. 266.
[38] Ibidem, pp. 267-268.
[39] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n.º 622.405/SP. Relator(a): Ministra Denise Arruda. Brasília, DF, 14-08-2007. Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=REsp+622405&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=4>. Acesso em: 26-06-2010.
Bacharel em Direito pelo UNIRITTER/RS. Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB/CEAD.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DALMAS, Samir Bahlis. A teoria da "relativização" da coisa julgada e a "coisa julgada inconstitucional" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40858/a-teoria-da-quot-relativizacao-quot-da-coisa-julgada-e-a-quot-coisa-julgada-inconstitucional-quot. Acesso em: 22 nov 2024.
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