Resumo: Trata-se de estudo sobre o interesse processual como condição para a regularidade da ação meramente declaratória, na qual se busca uma certeza sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou sobre a autenticidade ou falsidade de um documento.
Palavras-chave: Interesse processual; Interesse de agir; Ação declaratória.
INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo analisar o correto manejo, sob o aspecto do interesse processual, das ações que buscam provimento jurisdicional de mera declaração sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou sobre a autenticidade ou falsidade de um documento.
A prática jurídica demonstra que é comum o uso da ação declaratória para fins distintos daqueles previstos pelo ordenamento jurídico. Assim, um dos maiores problemas na verificação do requisito interesse processual está relacionado à ação meramente declaratória, razão pela qual revela-se necessário o estudo sobre os casos em que o provimento declaratório é útil, necessário e adequado.
O primeiro capítulo trata do interesse de agir como uma das condições do regular exercício do direito de ação, com uma breve exposição sobre a teoria da ação adotada no nosso Código de Processo Civil, das condições da ação e do interesse de agir, sob os prismas do interesse-necessidade, interesse-utilidade e interesse-adequação. Em seguida, serão abordados aspectos gerais da ação meramente declaratória, com destaque para o seu conceito e finalidade. Após essas necessárias considerações, o terceiro capítulo ataca diretamente o cerne fulcral deste trabalho, delimitando o escopo do interesse de agir na ação meramente declaratória.
O Código de Processo Civil (Lei 5.869/1973) adotou a teoria eclética da ação, segundo a qual a ação, vista como um direito autônomo e abstrato, reflete o direito ao julgamento do mérito da causa, desde que preenchidas determinadas condições. O traço distintivo desta teoria em relação às teorias autonomistas que lhe antecederam é justamente a exigência dessas condições do direito de ação, desenvolvidas pelo jurista italiano Enrico Tullio Liebman.
Para Liebman, são três as condições da ação: legitimidade das partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. Essas condições estão previstas no Código de Processo civil no artigo 3º c/c art. 267, VI.
Atualmente, considera-se que essas condições não se referem propriamente ao direito de ação, sendo, na verdade, condições do regular exercício da ação. Em decorrência, no caso de uma sentença terminativa que extingue o processo por ausência de uma dessas condições (art. 267, VI, do CPC), haverá o exercício do direito de ação, porém de forma irregular.
O interesse de agir consiste na exigência de que a tutela judicial pleiteada seja necessária e útil para o demandante, sendo reconhecido pelo binômio necessidade-utilidade. Nesse sentido, Nelson Nery Júnior[1] leciona que:
“Existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade, do ponto de vista prático. Movendo a ação errada ou utilizando-se do procedimento incorreto, o provimento jurisdicional não lhe será útil, razão pela qual a inadequação procedimental acarreta inexistência do interesse processual.”
O interesse-utilidade consiste na utilidade potencial do provimento jurisdicional, ou seja, a Jurisdição deve ser apta a gerar alguma vantagem ou benefício jurídico ao demandante.
Por sua vez, o interesse-necessidade apoia-se na premissa de que a necessidade de Jurisdição se configura quando é a última forma de solução do conflito. Sendo possível o cumprimento espontâneo da obrigação, não haverá necessidade do provimento jurisdicional.
Além disso, a doutrina se refere ao interesse-adequação, defendendo que integra a noção do interesse de agir o dever do autor de valer-se dos meios processuais adequados e pleitear a tutela jurisdicional adequada à sua pretensão.
Convém asseverar que o interesse processual deve existir não só no momento inicial, quando do ajuizamento da demanda, mas também durante toda a tramitação do feito, razão pela qual a falta superveniente do interesse processual acarreta a extinção do feito sem resolução do mérito.
Portanto, o interesse de agir está presente quando a tutela jurisdicional revelar-se necessária, útil e adequada à satisfação da pretensão deduzida em juízo.
Toda sentença de procedência do pedido autoral possui conteúdo declaratório, referente à certificação do direito do autor. Em alguns casos, há ainda um conteúdo condenatório, constitutivo, executivo ou mandamental. Há, porém, sentenças que contêm apenas essa certificação, em decorrência do pedido formulado nas ações meramente declaratórias.
O artigo 4º do Código de Processo Civil prevê expressamente a possibilidade de ajuizamento de ação com o objetivo de apenas obter a declaração sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou sobre a autenticidade ou falsidade de um documento:
“Art. 4º O interesse do autor pode limitar-se à declaração:
I - da existência ou da inexistência de relação jurídica;
II - da autenticidade ou falsidade de documento.
Parágrafo único. É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito.”
Sobre a ação declaratória, Pontes de Miranda leciona que:
“A ação declarativa é a ação a respeito do ser ou não ser da relação jurídica. Supõe a pureza (relativa) do enunciado que se postula; por ele, não se pede condenação, nem constituição, nem mandamento, nem execução. Só se pede que se torne claro (de-clare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para se ver se é, ou se não é, a relação jurídica de que se trata. O enunciado é só enunciado de existência. A prestação jurisdicional em simples clarificação”.[2]
A sentença que julga a ação declaratória tem como finalidade eliminar uma incerteza sobre uma relação jurídica. Desse modo, a tutela declaratória não cria, nem desconstitui uma relação jurídica, tampouco impõe obrigações aos demandantes, limitando-se a solucionar a dúvida se a relação existe ou não.
Podem ser citadas como exemplos de ações meramente declaratórias as ações de investigação de paternidade, a ação de usucapião e a ação de consignação em pagamento.
Nesses casos, o bem da vida que será entregue ao autor será a eliminação da incerteza que recaía sobre a existência ou inexistência da relação jurídica, por meio de pronunciamento judicial imutável e indiscutível, acobertado pelo manto da coisa julgada material.
Como a ação declaratória tem apenas o objetivo de certificar a existência ou inexistência de uma relação jurídica, sem acarretar a efetivação de um direito, não está sujeita a prazo prescricional.
Como visto alhures, a legislação processual civil admite o interesse processual de uma simples declaração judicial para obtenção de certeza sobre uma relação jurídica ou sobre a autenticidade ou falsidade de um documento.
Neste diapasão, o interesse de agir da ação declaratória está relacionado à dúvida concreta sobre uma relação jurídica ou sobre a autenticidade de um documento. Para tanto, deve recair uma dúvida objetiva sobre a relação jurídica, que produza uma insegurança jurídica ao demandante, e não uma dúvida meramente subjetiva. Com efeito, o autor da ação declaratória deve demonstrar que esse provimento é necessário e útil, a ponto de justificar a intervenção do Judiciário, demonstrando, efetivamente, a insegurança que está submetido e a repercussão do provimento jurisdicional almejado na sua esfera jurídica.
Além disso, não se admite a utilização da ação declaratória com objetivo de pronunciamento de direito em tese, referente a uma relação hipotética ou futura, uma vez que o Poder Judiciário não funciona como órgão consultivo, ressalvadas hipóteses expressamente previstas na legislação eleitoral. Nesse sentido, o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS INFRINGENTES. APELAÇÃO JULGADA NA FORMA DO ART. 515, § 3º, DO CPC. ACÓRDÃO NÃO UNÂNIME. CABIMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. PRETENSÃO QUE ABRANGE RELAÇÕES JURÍDICAS FUTURAS. PEDIDO GENÉRICO E ABSTRATO. INVIABILIDADE.
1. O art. 530 deve ser interpretado em harmonia com o art. 515, § 3º, ambos do CPC (um modificado e o outro introduzido pela Lei 10.352/2001), para que seja admitida a apresentação de embargos infringentes em face de acórdão não unânime que, em sede de apelação, tenha reformado a sentença e analisado o mérito da causa, ainda que tal recurso tenha sido interposto em face de sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito (Doutrina de Cândido Rangel Dinamarco). Precedentes citados: REsp 503.073/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 6.10.2003; REsp 832.370/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 13.8.2007.
2. A orientação desta Corte firmou-se no sentido do não cabimento da utilização da ação declaratória quando versar sobre situação hipotética ou futura, contendo pedido genérico e abstrato, sem a delimitação de uma relação jurídica concreta, ou seja, "a ação declaratória não consubstancia via adequada para obter-se pronunciamento judicial acerca da existência ou inexistência de relação jurídica genérica e abstrata, lastreada unicamente na interpretação em tese de dispositivo legal, sem que se indique a repercussão do provimento postulado na esfera jurídica da parte interessada" (REsp 1.041.079/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10.11.2008).
3. Recurso especial não provido
(STJ, S1, REsp 870445 / RS, rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, julg. 16/12/2010, pub. DJe 08/02/2011)
O ordenamento jurídico não admite que o objeto da declaração seja um fato, mas apenas uma relação jurídica concretamente delimitada na ação declaratória. Logo, é totalmente inadequado pleitear, a título declaratório, pronunciamento judicial sobre a ocorrência ou inocorrência de um fato. Não se admite, por exemplo, uma ação ajuizada com o fim de que seja declarado que uma pessoa praticou um determinado ato. Na verdade, a tutela declaratória poderia declarar se daquele fato decorreu ou não uma relação jurídica que interfira na esfera jurídica do demandante, mas jamais poderá limitar-se a declarar se um ato foi praticado ou não. Fredie Didier esclarece, com extrema clareza, que:
“Não se admite, ressalvada a ação sobre a autenticidade do documento, ação meramente declaratória de fato; não se vai ao Poder Judiciário para que ele declare que um fato ocorreu; é possível requerer que o Poder Judiciário certifique a situação jurídica que tenha ou não tenha emergido de um fato, mas jamais pedir a simples declaração da ocorrência ou não de um evento”.[3]
A doutrina aponta que o único fato que pode ser objeto de ação declaratória é a autenticidade ou falsidade de documento, com fulcro no inciso II do art. 4º do CPC. Neste caso, cuida-se da análise da veracidade do documento em si, e não da veracidade das alegações ali contidas, o que provocaria uma declaração sobre a ocorrência de um fato.
Além dessa hipótese, convém ressalvar que o Superior Tribunal de Justiça também admite ação declaratória para reconhecimento de tempo de serviço para fins previdenciários, bem como para obter certeza quanto à exata interpretação de cláusula contratual, conforme as súmulas 242[4] e 181[5] daquela corte.
Por fim, é importante asseverar que, ainda que seja possível ajuizar ação de cunho condenatório, constitutivo, mandamental ou executivo sobre o mesmo objeto, é admitida a ação meramente declaratória, conforme dispõe o § único do art. 4º do CPC: “É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito”.
Destarte, há interesse de agir na ação meramente declaratória mesmo que o demandante tenha optado pela simples declaração ao invés de ajuizar demanda que poderia acarretar ao réu uma obrigação de dar, de fazer ou de não fazer. Fredie Didier[6] relembra caso emblemático sobre esse tema, referente ao processo movido pela família do jornalista Wladmir Herzog, assassinado durante o período da Ditadura Militar no Brasil. Naquele caso, optou-se por não ajuizar ação de natureza condenatória de reparação civil em face da União Federal, mas sim pelo ajuizamento de ação declaratória. O que se buscava era a declaração da responsabilidade da União pela morte do jornalista. Neste caso, o extinto Tribunal Federal de Recursos admitiu a ação, reconhecendo estar presente o interesse de agir, com base no supratranscrito § único do art. 4º do CPC. (TFR, 1ªT., Ap. cív. N. 59.873-SP, rel Min. Leitão Krieger, j. em 21.06.1983).
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, é possível concluir que a ação meramente declaratória é o instrumento adequado para obter a certificação sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica, ou para declarar a autenticidade ou falsidade de um documento.
Contudo, para ser regularmente exercido o direito de ação, devem ser observadas certas condições, entre as quais destaca-se o interesse de agir, que determina que a ação deve ser útil e necessária ao demandante. Por esse motivo, não se admite que sejam veiculadas pretensões declaratórias sobre fatos, visando a mera declaração se alguém praticou ou não um certo ato. Do mesmo modo, não se admite uma pretensão para declaração de um direito em tese, referente a uma relação hipotética ou futura.
No caso da ação meramente declaratória, o interesse de agir manifesta-se na existência de uma dúvida objetiva sobre uma relação concreta e delimitada que provoque uma insegurança jurídica ao demandante. Logo, para que haja interesse processual, o provimento pleiteado deve ser apto a repercutir na esfera jurídica do demandante eliminando a situação de incerteza a que estava submetido. Além disso, admite-se o interesse processual na obtenção de declaração de autenticidade ou falsidade de um documento e ainda na hipótese em que tenha ocorrido violação do direito, facultando ao interessado pleitear apenas o provimento declaratório.
Portanto, é extremamente importante a compreensão das hipóteses em que há interesse processual na ação declaratória, evitando-se que o Estado exerça a atividade jurisdicional de forma desnecessária, acarretando desarrazoado acúmulo de processos no Judiciário e, consequentemente, prejudicando aqueles que aguardam por um provimento útil e necessário.
REFERÊNCIAS
ALVIM, Carreira. Código de Processo Civil Reformado, 2004.
CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v.1. 15.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V. 1. 9.ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. t. 1. Campinas: Bookseller, 1998.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 9. ed. rev., ampl. São Paulo: RT, 2006.
SILVA, Ovídio Baptista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 3 ed. rev e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[1] Código de Processo Civil Comentado, 6a Ed, RT, 2002, p. 594.
[2] Tratado das ações . t. 1. Campinas: Bookseller, 1998. p. 132
[3] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 9 ed. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2008, pg. 198.
[4] Súmula 242, STJ: Cabe ação declaratoria para reconhecimento de tempo de serviço para fins previdenciários.
[5] Súmula 181, STJ: É admissível ação declaratória, visando a obter certeza quanto à exata interpretação de cláusula contratual.
[6] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 9 ed. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2008, pg. 197/198.
Procurador Federal. Graduado pela UFRJ, Pós-Graduado em Direito Público, Pós-Graduado em Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUARTE, Guido Arrien. O interesse de agir na ação meramente declaratória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41003/o-interesse-de-agir-na-acao-meramente-declaratoria. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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