RESUMO: Este artigo trata do crime de discriminação dos portadores de HIV ou doentes de AIDS, criado pela Lei 12.984/2014, à luz do princípio da codificação, situando sistematicamente o tipo penal e demonstrando suas incongruências.
Palavras-chave: Lei 12.984/2014. AIDS. HIV. Discriminação.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Brasil tem visto uma plêiade de normas penais promulgadas. À título de exemplo, citamos a Lei 12.720/2012, que em sua ementa afirmar dispor “sobre o crime de extermínio de seres humanos”, mas de modo algum cria essa modalidade de delito; a Lei 12.737/2012, que “dispõe sobre a tipificação de delitos informáticos”; a Lei 12.850/2013, chamada Lei de Organizações Criminosas; a Lei 12.971/2014, que alterou parte dos crimes de trânsito; a Lei 12.978/2014, que passou a classificar como hediondo o crimes de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável.
Das mais recentes é a Lei 12.984/2014. Este diploma normativo, além de outras questões, traz à baila o problema técnico-jurídico da codificação, que se buscará abordar neste trabalho.
O CRIME DE DISCRIMINAÇÃO DOS PORTADORES DE HIV OU DOENTES DE AIDS
A Lei 12.984/2014 criou o crime de discriminação dos portadores de HIV ou doentes de AIDS. Destaque-se, desde já, que não se trata de uma modalidade de racismo, já que este se refere apenas à discriminação em virtude de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, conforme dispõe o art. 1º da Lei 7.716/1989. Entretanto, algumas das novas condutas delituosas são crimes de “apartheid”. É o caso dos incisos I, II, III, IV e VI do art. 1º, que punem com pena de 1 a 4 anos de reclusão atos de segregação do portador de HIV ou doente de AIDS:
Art. 1o Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente: I – recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno em creche ou estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado; II – negar emprego ou trabalho; III – exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego; IV – segregar no ambiente de trabalho ou escolar; VI – recusar ou retardar atendimento de saúde.
De pronto, verifica-se certa incoerência na nova legislação, pois pune condutas assemelhadas como “negar emprego ou trabalho” ao portador de HIV ou doente de AIDS (art. 1º, II, Lei 12.984/2014) e “negar ou obstar emprego em empresa privada” como resultado de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art. 4º, caput, Lei 7.716/1989) com penas diversas. Aquela conduta foi no novo diploma recriminada com reclusão de 1 a 4 anos, enquanto o art. 4º, caput, da Lei 7.716 prevê reclusão de 2 a 5 anos.
Entretanto, é defensável que, apesar de semelhantes as práticas delituosas, a conduta de racismo tem especial repulsa na Constituição Federal, conforme se extrai dos seus arts. 3º, IV, 4º, VIII, e 5º, XLII. Em outras palavras, é possível dizer que o constituinte quis uma punição mais severa do racismo. Por isso, chama mais atenção o inciso V do art. 1º da Lei 12.984/2014:
Art. 1o Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente: V – divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade;
Claramente, esse tipo penal incrimina não um ato de segregação de pessoas, por motivo reprovável, mas uma agressão contra a honra, objetiva e subjetiva, de outrem. Trata-se, portanto, de um crime contra a honra.
Patentemente, não foi redigido o dispositivo seguindo os padrões tradicionais brasileiros, porque fundidos o preceito primário e o secundário, além de invertidos – passando a ser previsto primeiro a pena e depois a conduta delitiva.
Ademais, prevê-se uma série de “elementares” que qualificam o elemento subjetivo. Inicialmente, exige-se um intento discriminatório. Depois, exige-se que iniciativa da ação resulte da condição de portador do vírus HIV ou doente de aids. Por fim, exige-se o dolo específico de ofender a dignidade do paciente.
Tudo isso sem olvidar da conduta em si, que é “divulgar”. Evidentemente, esse verbo núcleo afasta a ideia de uma injúria violadora da honra subjetiva tão somente, exigindo-se para a configuração do delito uma concomitante agressão à honra objetiva da vítima, isto é, à reputação do ofendido no meio social.
De mais a mais, deixou-se de regular o crime como de ação penal privada ou de ação penal pública condicionada à representação, prática comum – e até mesmo recomendada – nos crimes contra a honra (visto que a deflagração de ação penal pode, antes de facilitar a reparação do bem jurídico, agravar a lesão).
Em suma, a redação do tipo penal é atécnica. Em certa medida, isso se justifica pela inobservância da codificação, como se mostrará na sequência.
A LEI 12.984/2014 À LUZ DO PRINCÍPIO DA CODIFICAÇÃO
A adoção de um denominado “princípio da codificação” no Direito Penal traz vantagens e desvantagens, que foram e são objeto de discussão pela doutrina ao longo dos anos. Porém, avultam os benefícios de fazer situar num mesmo documento normativo o conjunto de normas penais.
Primeiro, a codificação facilita a instrução do leigo e mesmo do versado no Direito, bem como o trabalho do intérprete, porquanto de certa maneira ela simplifica a legislação penal, tornando-a homogênea e una em forma e em linguagem.
Mas, mais importante aqui: a codificação auxilia na manutenção da proporcionalidade das penas em relação aos delitos e aos bens jurídicos violados.
Rememore-se aqui, o afamado crime de molestamento de cetáceo, da Lei 7.643/1987, punido com penas mais graves que os crimes de aborto (arts. 124-126, Código Penal) e com pena mínima idêntica ao infanticídio (art. 123, Código Penal) – os últimos praticados contra a vida da pessoa humana. Certamente, o legislador não se preocupou em comparar o bem jurídico tutelado na Lei 7.643/1987 com outros valores relevantes à sociedade. Essa comparação, entretanto, é de maior possibilidade se observada a codificação, pois o novo tipo penal ou nova redação serão situados em um contexto sistêmico (conquanto não seja uma necessidade a comparação coerente, vide a Lei 12.720/2012).
Aliás, não escapa a Lei 12.984/2014 desse teste de proporcionalidade das penas cominadas quando tidas como referência outras infrações penais. Viu-se existir, quanto às condutas de “apartheid”, uma arguível proteção deficiente. Entretanto, no que se refere ao delito assemelhado à injúria, a desproporção é patente – e inversa. O ordenamento jurídico pune com pena de 1 a 3 anos de reclusão o chamado delito de injúria racial (art. 140, § 3º, Código Penal):
Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena – reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)
Alterando a lógica de que a discriminação por motivo de raça é a mais grave das discriminações, o novo delito da Lei 12.984/2014 pune com pena superior à injúria racial a discriminação praticada em razão da condição de portador de HIV ou doente de AIDS do ofendido (1 a 4 anos de reclusão). Poder-se-ia ter evitado o problema, alterando-se a redação do mencionado art. 140, § 3º, do Código Penal. Inclusive, a Lei 10.741/2003 já realizou alterações nesse dispositivo, para considerar mais graves as injúrias que envolvessem não apenas racismo, mas discriminação contra idosos e portadores de deficiência.
Entretanto, optou-se por criar mais um crime em lei esparsa ao invés de inseri-lo no sistema do Código Penal – que apesar de antigo, sofreu substantiva reforma em 1984 e ainda resguarda os tipos penais magistralmente redigidos de 1940. Escolheu-se contribuir para o crescente comprometimento da coesão e coerência do sistema penal pátrio. Como consequência, tem-se um tipo penal mal redigido, sem objetividade, e que muito bem poderia figurar como modalidade qualificada do crime de injúria (art. 140, Código Penal).
CONCLUSÃO
Buscou-se, no presente trabalho, realizar uma breve análise sobre o crime de de discriminação dos portadores de HIV ou doentes de AIDS à luz do princípio da codificação. Para tanto, apresentou-se o novo tipo penal e suas incongruências, para posteriormente analisá-las no contexto da não observância do princípio da codificação. Pode-se perceber que diversas dessas incongruências quiçá teriam sido evitadas, com a obediência ao princípio, demonstrando-se a contribuição da codificação para a maximização da coesão e coerência no ordenamento jurídico-penal.
Advogado criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HAYASHI, Francisco Yukio. Breves comentários sobre o crime de discriminação dos portadores de HIV ou doentes de AIDS Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41048/breves-comentarios-sobre-o-crime-de-discriminacao-dos-portadores-de-hiv-ou-doentes-de-aids. Acesso em: 22 nov 2024.
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