RESUMO: No presente estudo faremos uma análise da mudança de paradigma na forma de intervenção do Estado na economia, que ensejou o fortalecimento do seu poder de regulação, passando a atuar como agente normativo e orientador da atividade econômica. Estudaremos, ainda, a origem e as características das agências reguladoras, como instrumentos hábeis à execução do novo modelo de intervenção que passou a ser adotado a partir da década de 90 no Brasil: a intervenção regulatória.
PALAVRAS-CHAVE: INTERVENÇÃO. ESTADO. ECONOMIA. PODER. REGULAÇÃO. AGÊNCIAS. REGULADORAS.
1. INTRODUÇÃO
O art. 170 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 6/1995, consagrou, no ordenamento jurídico brasileiro, a regra da livre iniciativa.
Essa regra foi confirmada no caput do art. 173, segundo o qual “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
Segundo André Fontes (2011, p. 17), a partir da regra livre iniciativa, quaisquer restrições devem ser expressas e casuisticamente listadas no texto maior, acrescentando o referido autor que
É assim interpretado o art. 173 no qual a possibilidade do Estado atuar como agente econômico estaria vedada porque a atividade econômica é própria do particular, e ao Estado restaria, embora de forma ativa, seu controle pela forma conhecida de intervenção.[1] (grifo conforme original)
Deixou o Estado, portanto, de ser o ator principal na economia, afastando-se da exploração de atividades econômicas, para adotar uma nova forma de intervenção: a intervenção regulatória. Conforme leciona Floriano de Azevedo Marques Neto (2009, p. 29), houve uma redução da intervenção direta, fortalecendo-se o papel regulador do Estado em detrimento do papel do Estado produtor de bens e serviços[2].
Apoiado nesse novo modelo de intervenção, o legislador constitucional reservou ao Estado as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174).
Para o exercício do poder de regulação, nos moldes da nova forma de intervenção estatal na economia, verificou-se a necessidade de se criar instrumentos hábeis ao desempenho das funções inerentes à atividade regulatória, conforme previsto no art. 174 da CF/88, ensejando a criação das agências reguladoras.
2. REGULAÇÃO X REGULAMENTAÇÃO
Embora alguns dicionários da língua portuguesa considerem sinônimas as expressões “regular” e “regulamentar”, no direito brasileiro tais vocábulos têm significados distintos.
O termo “regulação”, no ordenamento jurídico pátrio, tem origem na expressão “regulation”, oriunda dos países de língua inglesa.
A tradução literal desse vocábulo para o vernáculo aponta para o sentido de regulamentação. Todavia, o conceito de “regulação”, no Brasil, aproxima-se muito mais do sentido de normatizar (mais amplo), enquanto “regulamentação” tem o significado (mais restrito) de complementar o texto de uma lei.
Marçal Justen Filho (2002, p. 15) explica que
Na terminologia consagrada entre nós, a expressão “regulamentação” corresponde ao desempenho de função normativa infra-ordenada, pela qual se detalham as condições de aplicação de uma norma de cunho abstrato e geral. A “regulamentação” corresponde à especificação das condições necessárias a ampliar a eficácia de certos dispositivos cuja amplitude de abrangência propicia dificuldades na aplicação a casos concretos. Em termos mais restritos, a “regulamentação” corresponde ao desempenho de atividade executiva. A CF/88, no art. 84, inc. IV, prevê incumbir ao Presidente da República, dentre outras competências, “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
Ora, o conceito de “regulation” é muito mais amplo e qualitativamente distinto, conduzindo à utilização da expressão “regulação” ao invés de “regulamentação”.[3]
Ao explicar a “função regulatória” do Estado, Marcos Juruena Villela Souto (2002, p. 37) assevera que, diante da “impossibilidade de o Estado satisfazer a todas as necessidades públicas, resta-lhe orientar e acompanhar como essas necessidades serão atendidas pelos agentes privados”[4], daí a ideia de normatividade que permeia o conceito de regulação.
3. A ORIGEM E AS CARACTERÍSTICAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL
A doutrina nacional é uníssona em afirmar que o modelo das agências reguladoras, no Brasil, foi claramente importado do direito anglo-saxão, embora existam expressivas diferenças entre a forma de organização da Administração Pública dos dois países, que levam à existência de características bastante distintas entre as agências criadas no ordenamento jurídico pátrio e as agências americanas.
Uma das diferenças pode ser verificada já na forma do surgimento das agências reguladoras. Nos Estados Unidos, essas instituições existem desde o século XIX, tendo o Direito Administrativo naquele país sido moldado de acordo com a evolução das instituições reguladoras, caracterizando-se como verdadeiro “direito das agências”[5]. No Brasil, ao contrário, o surgimento das agências reguladoras decorreu da evolução do Direito Administrativo, sobretudo nos últimos trinta anos. A regulação, no direito pátrio, decorreu de uma mudança de paradigma no modo de intervenção do Estado que, diante de sua incapacidade de atuar ativamente na ordem econômica, reduziu o âmbito de sua atuação, passando a exercer função eminentemente regulatória.
Conrado Hubner Mendes (2000) afirma que
Nos Estados Unidos, ao contrário, as atividades econômicas sempre permaneceram em mãos de particulares. O que ocorreu, gradativamente, foi a necessidade de regulação de atividades que se mostraram de especial interesse da coletividade, os chamados business affected with a public interest (negócio afetado pelo interesse público). Aos poucos, então, cada atividade foi adquirindo um regime próprio de regulação. Como o Direito Americano é casuístico, e não codificado, agências foram sendo criadas segundo as contingências econômicas e sociais.[6]
As agências reguladoras no Brasil só podem ser criadas por lei, exigindo-se iniciativa privativa do Presidente da República (art. 84, inciso II c/c art. 61, 1º, inciso II, “e” da Constituição Federal), têm natureza jurídica de autarquia especial e integram a Administração Pública Federal Indireta.
A qualidade de autarquias de regime especial lhes foi atribuída para diferenciá-las das autarquias que não detêm poder de regulação.
Além de terem autonomia em relação ao Poder Executivo central, as agências são dotadas de independência, o que significa que seus atos não estão sujeitos à aprovação ou revisão de outros entes administrativos.
Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1999, p. 131)
costuma-se afirmar que as agências reguladoras gozam de certa margem de independência em relação aos três poderes do Estado: (a) em relação ao Poder Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder Executivo, porque as normas e decisões não podem ser alteradas ou revistas por autoridades estranhas ao próprio órgão; (c) em relação ao Poder Judiciário, porque dispõem de função quase-jurisdicional no sentido de que resolvem, no âmbito das atividades controladas pela agência, litígios entre os vários delegatários que exercem serviço público mediante concessão, permissão ou autorização e entre estes e os usuários dos respectivos serviços.[7]
A independência funcional é assegurada em razão de serem os dirigentes das agências indicados pelo Presidente da República ao Poder Legislativo e, após aprovados, nomeados com mandato fixo. Após deixarem o cargo, os gestores devem passar por um período de quarentena, que significa não poderem prestar serviço para empresas fiscalizadas pela agência, por um determinado período de tempo, conforme previsão na lei de criação do órgão. Além da independência funcional, os órgãos de regulação possuem também independência financeira, ou seja, têm fonte de recursos financeiros próprios.
Outra importante característica é a transparência de seus atos, devendo os julgamentos de seus processos ocorrer em sessões públicas, com sorteio de relator e deliberação colegiada, motivada e publicada[8] (Marcos Juruena Villela Souto, 2002, p. 231).
A doutrina menciona, ainda, como peculiaridades das agências reguladoras, a equidistância ou neutralidade em relação aos interesses dos regulados, a multiplicidade de funções e competências inerentes à atividade regulatória e a especialização da matéria, o que constitui uma garantia de que “o ente regulador seja detentor de profundo conhecimento sobre o setor regulado”[9] (Floriano de Azevedo Marques Neto, 2009, p 48-49).
4. CONCLUSÃO
A partir dos anos 90, houve, no Direito Administrativo brasileiro, uma importante mudança de paradigma em relação à forma de intervenção do Estado na ordem econômica.
Antes da edição da Emenda Constitucional n. 6/1995, que alterou a redação do art. 170 da CF/88, o Estado atuava ativamente na economia, uma vez que monopolizava a exploração de diversos setores econômicos.
Ao longo do tempo, tornou-se flagrante a incapacidade do Estado em dar continuidade à sua posição de agente econômico ativo, ensejando o fortalecimento de sua atuação como agente normativo e regulador da atividade econômica, conforme prevê o art. 174, caput, da Constituição Federal.
Essa mudança na forma de intervenção do Estado na economia culminou com a criação das agências reguladoras, inspiradas no modelo americano, com a função de normatizar e fiscalizar a prestação de serviços públicos transferidos à iniciativa privada.
[1] FONTES, André. A dubiedade constitucional da ordem econômica. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 17.
[2] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 29
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002, pp. 15/16
[4] SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 37
[5] MORAES, Alexandre (org.). Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 23
[6] MENDES, Conrado Hubner, Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo os Parâmetros de Discussão. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 119-120
[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: Concessão, Permissão, Franquia, Terceirização e Outras Formas. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 131
[8] Op. cit. p. 231.
[9] Op. cit. p. 48-49
Procuradora Federal. Pós-graduada em Direito Processual Civil - Universidade do Sul de Santa Catarina -UNISUL - conclusão em junho/2008. Graduada em Direito - Universidade Federal de Uberlândia - UFU - conclusão em janeiro/2000.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Letícia Mota de Freitas. A nova forma de intervenção do Estado na ordem econômica adotada a partir da EC n. 6/1995: o poder de regulação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41098/a-nova-forma-de-intervencao-do-estado-na-ordem-economica-adotada-a-partir-da-ec-n-6-1995-o-poder-de-regulacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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