RESUMO: O presente artigo trata da transição do Estado Social para o Estado Penal de orientação Neoliberal e a incidência de uma nova forma de controle social focada sobre os risco que certos grupos sociais representam. Antes do estudo propriamente dito do novo tipo de controle social, um breve histórico, da mudança da estrutura estatal e social, culminando na política de Tolerância Zero.
Introdução
O Estado Liberal advento das revoluções burguesas predominou até inícios do século XX. A liberdade irrestrita, a mínima interferência do Estado nas relações sociais levaram a um profundo descompasso entre as classe sociais predominantes. A luta entre burguesia e proletariado evidenciou-se ainda mais. A desregulamentação trabalhista gerou sucessivos casos de exploração da força de trabalho. A liberdade que tanto se defendia não mais existia, pois a hipossuficiência do trabalhador não o deixava em condições de igualdade para negociar as cláusulas do contrato de trabalho.
Enfim, a liberdade escravizava.
A gerência do Estado nos diversos setores da sociedade se fazia necessária.
A influência das idéias socialistas propagadas por Marx e Engeis se faz sentir nas Constituições Nacionais. Se delineia o Estado Social, capaz de proteger os mais fracos da opressão da força econômica das elites. Um Estado que conserva os ideais iluministas da revolução Francesa mas que absorve os princípios marxistas. Com a proclamação da Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de 1919 (Weimer) os direito sociais ganham cunho de constitucionais.
Uma regulamentação maciça por parte do Estado sobre os diversos setores sociais se faz imperiosa. E pela primeira vez na história os "descamisados", se vêem protegidos por uma extensa rede estatal de serviços.
Direitos como educação, saúde, trabalho são mais valorizados do que nunca e os problemas sociais passam a serem resolvidos como realmente devem ser, como problemas sociais. Ë um custo alto que o Estado deve e tem que suportar.
Nas ultimas três décadas do século passado são verificadas mudanças drásticas no conceito e na estrutura do Estado. Começa a se delinear o Estado Neoliberal, em razão do enxugamento da estrutura estatal. Um Estado que reza pela desregulamentação econômica, trabalhista e social baseados em uma interferência mínima do poder estatal deixando aos particulares a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico cabendo ao Estado somente o papel fiscalizador.
Esta desregulamentação econômica, concomitantemente, com a automatização do trabalho, a escassez de postos laborativos e a globalização acentuaram os problemas sociais já existentes. Aliada a uma hiper regulamentação penal o Estado Neoliberal ganha feição de Estado Penal. Os problemas antes resolvidos como questões sociais passam a serem resolvidos como problemas penais.
1. Do Estado Liberal ao Estado Social (um enfoque sobre o paradigma criminológico liberal)
As revoluções burguesas afirmaram direitos inerentes ao indivíduo, os chamados direitos individuais. O Estado Liberal foi edificado sobre o suposto teórico de que o próprio existir do estado provinha da necessidade de serem definidos e garantidos os direito.
É fato que o movimento iluminista do século XVIII consolidou os ideais burgueses de caráter individual, atribuindo á razão e ao progresso científico a direção que deve ser tomada pela sociedade, antes sob o "cabresto" de dogmas ou verdades sobrenaturais.
Assim, dentro desta perspectiva, vê-se surgir, pois, o movimento Iluminista como pioneiro em vários pensamentos, dentre os quais, e principalmente, a igualdade entre os indivíduos, a racionalidade e a convicção no progresso do conhecimento humano. O Iluminismo fornece, portanto, base ideológica para a ação da burguesia no sentido de combater o sistema vigente na época. O pensamento Iluminista postula um limite ao Estado, e sugere a criação de um Estado de Direito no qual o poder advém de um Contrato Social firmado com cada indivíduo; contrato este que se caracterizaria por uma divisão dos poderes de forma autônoma e auto-reguladora e, no âmbito do direito de punir, se nortearia pelo princípio utilitarístico, ou seja, que as penas fossem antes de tudo, úteis e justas.
Saliente-se que, o progresso do conhecimento humano vem atrelado ao surgimento das diversas ciências que prometiam resolver todos os males da sociedade. Assim como a revolução Industrial e o progresso tecnológico haviam prometido diminuir as desigualdades sociais existentes. Acreditava-se que com tanto progresso tecnológico o homem poderia trabalhar menos e dedicar-se mais a outros afazeres ligados ao intelecto, à moral e ao espiritual, o que de fato não ocorreu. O que se viu foi, apesar de toda uma revolução tecnológica, urna dependência do homem em relação á máquina. Ao invés da máquina se ajustar ao homem era este que mais parecia parte de sua engrenagem. Quem não se lembra da famosa cena de "Tempos Modernos", onde o personagem de Chaplin tenta quase de forma vã se ajustar ao ritmo frenético da máquina.
O homem tão certo da sua liberdade, se vê escravo de sua própria criação.
É nesse mundo onde a razão impera, onde o contrato social é o fundamento do Estado, que o estudo do crime vai se desenvolver também de forma racional, sem as paixões eloqüentes que despertava o suplício.
2. Do Estado Social ao Estado Penal de orientação neoliberal (um enfoque sobre o paradigma criminológico socializante)
Na década de 80, nos Estados Unidos e na Grã Bretanha, teóricos da economia passaram a propugnar por uma política de "Menor Estado", que seria o abstencionismo do Estado em diversos setores da sociedade, como a economia, propondo uma política de drástica redução de regulamentação nos campos do mercado financeiro e do trabalho e uma drástica diminuição das agências públicas fornecedoras de serviços essenciais ao cidadão.
Era o surgimento do Estado Neoliberal.
Saliente-se que, criou-se no seio da sociedade a idéia de que o Estado Social tinha abarcado com as mãos tantos setores da vida social que na medida que se expandia na tentativa de resolver os diversos problemas ficava evidenciada a sua impossibilidade. O novo "Leviatã" do século XX havia fracassado.
Concomitantemente, ao proclamado "fracasso" do Estado Social, viu-se nascer uma força irresistível que os Estado devem necessariamente secundar, renunciando ao governo da economia., a globalização dos mercados financeiros.
Difundiu-se a ideologia de que o novo mundo surgido, onde o capital nômade e a liberdade de circulação geraria riquezas e melhoraria a vida de todos. A quebras de todas as barreiras criadas pelos Estados permitiria tornar melhor a vida de todos os membros da sociedade.
Aos poucos, o convencimento de que o controle da economia por parte do mercado difunde-se como importante para o bem estar de toda humanidade.
Como conseqüência desta posição, o Estado sempre aparece menos legitimado para regulamentar o mercado. Não existe mais um mercado interno a ser regulamentado, o mercado é global e portanto está fora do poder de alcance de cada Estado particularizado.
A soberania estatal sofre um grande revés.
As decisões econômicas não são mais nacionais e sim cada vez mais internacionais.
Em uma conjuntura em que as decisões "internas" se deslocam para o "externo" a única função que parece destinada a permanecer- interna é o policiamento do território e da população.
A tendência parece ser reduzir o Estado aos seus poderes de repressão.
Como escreveu o digníssimo Prof. Emilio Santoro(Lyra 2002), "todos os dados demonstram que a tendência para uma gestão judiciária e carcerária da pobreza é tanto mais provável e acentuada, quanto mais a politica econômica e social do governo se inspira nas teorias neoliberais da "privatização" das relações sociais, num contexto em que as garantias do Estado Social são sempre mais fracas".
Ao mesmo tempo que vemos o afastamento do Estado no campo econômico e social, observamos um incremento de investimentos no campo da repressão penal(vigilância). A desregulamentação econômica e a hiper-regulamentação penal caminham de mãos dadas, sendo conseqüências primária e secundariamente, da política neoliberal.
A política de repressão não é mais utilizada para conter ou diminuir a criminalidade, políticas penais, mas para enfrentar o desarranjo causado na estrutura social provocado pela ausência do Estado Social.
O Estado penal surge como alternativa mais barata ao Estado Social, visto que o que se busca é um menor gasto e um maior beneficio.
As políticas de repressão ganham espaço no cotidiano das pessoas e um clima de insegurança assola a sociedade civil que clama por penas mais rígidas e justiça. O Estado penal surge como a face mais cruel do Estado Neoliberal. Como escreve Loic Wacquant(2000), "a 'mão invisível', tão querida por Adam Smith voltou, mas revestida pela luva de 'ferro'.
O que se verifica é o declínio do Estado Econômico, uma diminuição do Estado Social e a glorificação do Estado Penal.
Assistimos atônitos a passagem do Estado Social para o Estado Penal.
3. Controle Social.
O controle social é um conjunto de saberes, poderes, estratégias, práticas e instituições, através das quais as elites no poder preservam uma determinadas ordem social.
Podemos dizer que o controle social é o processo histórico de construção da relação entre poder e desvio: poder de definir as normas e "etiquetar" quem deve ser, poder de induzir conformidade e reprimir desconformidade ao modelo social, poder de delinear a diferença entre normal e patológico, poder de corrigir punindo e punir corrigindo.( De Giorgi, 2000)
O controle social muda no tempo e no espaço.
Aquele controle exercido através dos tratamento terapêuticos, reabilitação dos detentos, prevenção social do desvio, intervenção social sobre as "causas" da criminalidade, típicas do Welfare State começa a desaparecer ou diminuir no mesmo ritmo que se faz sentir a ausência do Estado social. Um novo modelo de controle social deve surgir para adequar-se ao Estado neoliberal.
O controle não se exercita mais sob indivíduos singulares desviantes(atuais ou potenciais), mas ao invés sob sujeitos sociais coletivos, que são institucionalmente tratados como grupos produtores de risco. O dispositivo do poder, utilizando metodologias de qualificação e tratamento do risco do desvio que lembram aqueles assegurados, parecem apontar para inteiras categorias de indivíduos.
Como deixa claro, De Giorgi(2000) "Da Gil() deriva l'espressione controlo attuariale, che mette in luce la somiglianza tra lê nuove strategie di controlo e i procedimenti tipici dela matemática delle assicurazioni.". Assim, percebemos no novo controle social o uso de estratégias próprias das asseguradoras a respeito do risco de um incidente, considerando o risco normal, um risco que só pode ser gerenciado mediante uma intervenção sob o ambiente, sob os comportamentos exteriores dos grupos sociais.
4. Do Controle Atuarial
O controle atuarial como controle apropriado ao estado penal tem como seu princípio mais importante o "Cost- Benfits Analysis". Este princípio nasce de um desencanto criminológico. Um desencanto proveniente de uma tendência criminológica que percebe o sujeito criminoso como um indivíduo plenamente em grau de decidir se tem ou não um comportamento desviante. A respeito das estratégias de controle não deve ser considerada as condições sociais, sob o contexto que o sujeito age. Ao delinqüente penalizado, ou pouco socializado devido ao ambiente hostil em que foi criado se substitui por um sujeito sempre capaz de escolhas racionais. ( De Giorgi, 2000)
Devido a esta mudança de prospectiva sob o plano analítico corresponde uma transformação sob o plano operativo e uma complexa redefinição das funções da penalidade: ao papel reabilitativo sustentado por políticas de tratamento se substitui o objetivo do desencorajamento e intimidação.
A versão mais extrema deste desencantamento é levantada pelos teóricos do "CostBenefits Analysis", uma economia marginalista aplicada ao direito penal e ao controle da criminalidade. "As considerações sob as funções desencorajadoras da penalidade, que na elaboração dos novos realistas se legitimam em um contexto de cruzadas morais contra a criminalidade e pela seguranças das ruas, dos teóricos da cost benfits analysis são ao invés reconduzidas diretamente ao coração do problema: como conciliar o objetivo do máximo de segurança como o mínimo de recursos despendidos", como explica o grande teórico italiano Alessandro De Giorgi(2000).
As políticas punitivas são mais eficientes, quanto menos quem é destinatário dispuser de recursos de poder.
À penalidade vem subtraída cada função útil: não se trata mais de adotar medidas adequadas às condições do sujeito individual desviante(atual ou potencial), mas somente de aplicar sanções que na normalidade dos casos sejam proporcionais à gravidade do crime cometido, respeito a situação mais grave a única função da pena deve ser aquela de neutralizar comportamentos e indivíduos. A legitimidade do poder de punir vem ligada ao merecimento do castigo.
Outro princípio que fundamenta o novo controle é o Princípio do Risco. O crime como risco social é considerado um fenômeno normal, gerível através do mercado e da repressão: os dois pilares da ideologia neoliberal.
Admite-se a idéia de que vivemos em uma sociedade de risco e de que a criminalidade é um objeto impossível de ser aniquilado e por isso deve o novo controle apenas geri-la de forma que seus efeitos não sejam tão prejudiciais à sociedade.
Com isso as políticas criminais são dirigidas a grupos específicos tidos como de risco a boa convivência social, sendo estes grupos coincidentes com a grande parcela da sociedade que vive excluída de qualquer grau de cidadania.
Nesse sentido, surge a politica de tolerância zero, aplicada com “sucesso” pelos Estados neoliberais.
5. Tolerância Zero.
A política da Tolerância Zero está baseada sob a afirmação de que existe uma ligação entre degradação urbana e criminalidade.
Segundo os autores de "Broken Windows", quanto mais um ambiente urbano é degradado, abandonado a si mesmo, reduzido a território de comportamentos desviantes senão mesmo criminoso, tanto mais é provável que neste contexto determinado se manifestem formas simples ou mesmo graves de transgressão.
Com as palavras dos próprios autores: "One unrepaired broken window is a signal that no one cares, and so breaking more windows costs nothing (...) Serious street crime flourishes in areas in wich disorderly behaviour goes unchecked."( De Giorgi, 2000)
Imaginemos a seguinte situação: Se um prédio qualquer tivesse sua janelas quebradas, aos passantes deixaria transparecer a imagem de que ninguém se importaria com pequenas agressões naquela localidade, abrindo um perigoso especo para as grandes agressões. Enfim, uma simples janela quebrada emprestaria a simbologia de ausência de autoridade responsável pela manutenção da ordem. Outras pessoas quebrariam mais janelas- diante da segura impunidade inferida pela pedrada primeira- e todas as janelas estariam quebradas em pouco tempo, indicando ausência de responsável pelo prédio, pela rua, pelo bairro. Logo a vizinhança se transformaria em uma selva, fazendo com que os "homens de bem" dali se mudassem, sendo o local invadido por adultos sem "laços familiares", "adolescentes desordeiros" e "crianças que não respeitam os pais".
Logo, podemos concluir, que a política de Tolerância Zero incide sob a microcriminalidade ou comportamentos de "aparente potencial ofensivo", na tentativa de que este comportamento não se tome de maior ofensividade a sociedade.
Na verdade, esta politica de repressão aos delitos menores e contravenções como entendimento de que estes dão ensejo aos crimes maiores, nasce para agradar uma classe média apavorada que entende que a criminalidade violenta seria o resultado da falta de combate á desordem e aos pequenos delitos.
A conseqüência obvia do pensamento de Wilson e Kelling, é que não se pode pensar em reduzir a criminalidade nas ruas das grandes cidades sem produzir uma drástica inversão das tendências em respeito as estratégias de prevenção do crime.( De Giorgi, 2000)
O eixo desta estratégia é representado pela idéia de que a policia não deve dedicar-se a punir os delitos depois que foram cometidos, mas a preveni-los, "tutelando a ordem" , como bem acentua o Prof. Santoro(1997).
Resumindo, isto significa que a policia deve reprimir aqueles comportamentos que, mesmo não sendo um crime, resultam molestos, fastidiosos, oferecendo ao cidadão uma imagem degradada da cidade: os grafiteiros nos metrôs, os agressivos pedidos de esmolas, a embriaguez em locais públicos, a presença de sem-tetos nas ruas e assim por diante.
6. Conclusao.
A mudança do Estado Liberal para o Estado Social, bem como a mudança do Estado Social para o estado Penal de orientação neoliberal, foi acompanhada da mudança dos respectivos paradigmas criminológicos. Analisamos como o paradigma ressocializador e inclusivo típico do estado Social transformou-se em modelo segregador e excludente no Estado Penal de orientação neoliberal.
Estabelece-se uma cultura do risco social, onde são atribuídos valores a determinados grupos sociais e quanto maior risco o grupo representar menores suas oportunidades e maior será a repressão que incidirá sobre seus membros. Assim, a condenação não é mais individual, mas sim coletiva. É o controle atuarial que culmina com a utilização de políticas repressivas de controle da microcriminalidade e baseada sob o lema de Lei e Ordem, tidas como de Tolerância Zero. Essa última uma alternativa ao fracasso do cárcere e sua função "ressocializadora". Agora o que importa é excluir, visto que a criminalidade é impossível de ser contida.
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Assistente Jurídico do Tribunal de Contas da Paraíba, lotado no gabinete do Procurador Marcílio Toscano Franca Filho. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cidade de São Paulo - Unicid, graduado em Direito pela UFPB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Breno Felipe Rocha. Transição do estado social para o estado penal: o controle atuarial e suas implicações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41111/transicao-do-estado-social-para-o-estado-penal-o-controle-atuarial-e-suas-implicacoes. Acesso em: 22 nov 2024.
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