Resumo: O presente artigo analisa o surgimento da repercussão geral como mecanismo de racionalidade da atuação do Supremo Tribunal Federal e a não limitação do julgamento da repercussão geral à questão constitucional proposta no recurso extraordinário.
Palavras chave: recurso extraordinário, repercussão geral, Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O recurso extraordinário e o surgimento da repercussão geral. 3. A não vinculação do Supremo Tribunal Federal à questão constitucional reconhecida na repercussão geral. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O recurso extraordinário é cabível para combater decisões emanadas de única ou última instância que violem a Constituição Federal, sendo seu julgamento de competência do Supremo Tribunal Federal, que é o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro incumbido da guarda da Constituição.
Tendo em vista o constante crescimento dos recursos em julgamento na Corte Suprema, que já estava inviabilizando sua missão institucional, foi criada a Emenda Constitucional n º 45, de 31 de dezembro de 2004, com o propósito de reformar o Poder Judiciário e, dentre as várias inovações, criou o instituto da repercussão geral no recurso extraordinário.
Com essa inovação, além do julgamento da causa, deve ser decidido se a questão constitucional constante do recurso extraordinário transcende os interesses subjetivos das partes envolvidas, de forma a evitar que o Supremo Tribunal Federal seja provocado para atuar em casos meramente individuais.
Além disso, como a questão constitucional que permeia a repercussão geral deve ser decidida preliminarmente ao mérito recursal, ela não se confunde com o direito subjetivo das partes, razão pela qual se tentará demonstrar que no julgamento de mérito da repercussão geral a Corte Suprema não está limitada ao leading case proposto.
2. O recurso extraordinário e o surgimento da repercussão geral
O recurso extraordinário é meio de impugnação voluntária de decisão judicial exarada em única ou última instância, sendo diretamente endereçado ao Supremo Tribunal Federal. É um recurso de fundamentação vinculada, uma vez que suas razões devem versar sobre as matérias estampadas no artigo 102, III, da Constituição da República de 1988:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(...)
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
De acordo com a Carta Magna de 1988, toda decisão judicial exarada em única ou última instância que contrariar dispositivo da Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição e julgar válida lei local contestada em face de lei federal é passível de recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal.
Em função do crescimento exponencial de processos em trâmite no Poder Judiciário brasileiro, especialmente no Pretório Excelso, foi editada a Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, para possibilitar a gestão racional e a razoável duração do processo.
Das várias alterações introduzidas no ordenamento jurídico, chama-se à atenção para a criação de um filtro constitucional para interposição de recurso extraordinário, que é a exigência de demonstração da repercussão geral da matéria.
Até a Emenda Constitucional nº 45/04, o Supremo Tribunal Federal era provocado, via recurso extraordinário, para reiteradamente decidir sobre questões pontuais e individuais, que não afetavam a coletividade, o que era uma verdadeira afronta à sua missão institucional de realizar a guarda da Constituição. Ora, como Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal não deve ser chamado para decidir sobre a justiça da decisão de um caso individual, que não tenha relevância para o Estado brasileiro, sob pena de inviabilização, por acúmulo de processos, de sua missão constitucional.
A criação da repercussão geral visa reduzir o número excessivo de recursos, a fim de que a Suprema Corte possa limitar sua atuação a casos de relevância coletiva, e não individual.
Nesse ponto, destaca-se o magistério de Alexandre Freitas Câmara[1]:
A criação desse requisito é, a nosso juízo, elogiável, já que faz com que o Supremo Tribunal Federal, Corte Suprema do País, só se debruce sobre causas realmente relevantes para a Nação. Não faz sentido que o Pretório Excelso perca seu tempo (e o do País) julgando causas que não têm qualquer relevância nacional, verdadeiras brigas de vizinhos, como fazia antes da EC 45/2004.
Nesse panorama, a saída encontrada para limitar o acesso ao Supremo Tribunal Federal, pela via do recurso extraordinário, foi a criação do instituto da repercussão geral, nos termos do art. 102, §3º, da Constituição:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Destarte, como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário, o recorrente deve demonstrar, de forma preliminar, a repercussão geral das questões constitucionais travadas no caso, ou seja, deve ficar claro que o ponto constitucional supera o simples interesse individual das partes envolvidas e atinge a população como um todo.
Na oportunidade, destaca-se o escólio de Luciano Felício Fuck[2]:
De fato, o instituto da repercussão geral objetiva a apreciação do recurso extraordinário e cria duas vantagens importantes: por um lado, permite ao STF concentrar-se nas questões constitucionais mais relevantes; por outro, garante efeito multiplicador das decisões de mérito, evitando que do STF tenha que despender energia, tempo, recursos materiais e humanos, apreciando controvérsias constitucionais repetidas vezes.
Com o escopo de regulamentar a repercussão geral, foi editada a Lei 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil. Consoante a regulamentação, o Supremo Tribunal Federal somente conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional oferecer repercussão geral do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapasse os interesses subjetivos da causa.
Portanto, o recorrente deve demonstrar preliminarmente às razões recursais, que a demanda constitucional que fundamenta o recurso extraordinário ultrapassa os interesses subjetivos das partes envolvidas, afetando o interesse de demais pessoas do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.
Segundo Alexandre Freitas Câmara[3]:
(...) Em outros termos, o que se tem aqui é a afirmação de que a questão constitucional suscitada no recurso extraordinário deve ter reflexos nos destinos da coletividade (e se pede vênia para retornar ao exemplo anteriormente figurado, do RE em que se discute a constitucionalidade de determinada lei tributária ou, para apresentar-se novo exemplo, um RE em que se discutia a existência de direitos hereditários em uniões homoafetivas).
Por esses motivos, o recurso extraordinário somente será conhecido se restar demonstrado que do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, a questão constitucional em debate extravasa o interesse subjetivo das partes litigantes.
3. A não vinculação do Supremo Tribunal Federal à questão constitucional reconhecida na repercussão geral
Antes de realizar o julgamento do mérito do recurso, o Supremo Tribunal Federal analisa se está demonstrada a repercussão geral da matéria, que é requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Por isso, no julgamento da repercussão geral é feita análise da questão constitucional sob os pontos de vista econômico, político, social ou jurídico, e não um julgamento preliminar da causa proposta, o que faz com que o julgador possa ir além do leading case proposto para enfrentar todas as questões constitucionais adstritas à temática.
Novamente, destacam-se os ensinamentos de Luciano Felício Fuck[4]:
Destaque-se que, nos termos do art. 102, § 3º, da CF/1988, a repercussão geral é da questão constitucional discutida, não da causa, das partes ou recurso extraordinário propriamente dito (DANTAS, 2008, p. 30). Essa vinculação à controvérsia constitucional acarreta a admirável objetivação do julgamento do recurso extraordinário, permitindo ao STF conhecer de fundamentos além dos expostos na petição de recurso extraordinário e apreciar de forma completa e aprofundada a questão constitucional. Em outras palavras, cuida-se de evidente elemento objetivo no modelo difuso de constitucionalidade, que permite a resolução de diversos casos concretos simultaneamente.
A repercussão geral é um filtro que busca limitar o acesso, pela via do recurso extraordinário, à Corte Suprema, mas uma vez reconhecida deve ser decidida da maneira mais ampla possível, para tentar solucionar todas as questões constitucionais inerentes ao tema em análise, atingindo maior número possível de situações.
Assim, verifica-se a tendência de objetivação do instituto da repercussão geral dentro do controle difuso de constitucionalidade, para concessão de efeitos erga omnes à causa constitucional.
Nesse sentido, o § 6º, do art. 543-A, do Código de Processo Civil, permite a admissão de amicus curiae para pluralizar o debate acerca da questão constitucional, que, por óbvio, transcende os interesses subjetivos das partes em litígio. A questão constitucional da repercussão geral deve ser debatida da forma mais ampla, sendo possível, até mesmo, a intervenção de terceiro colaborador formal da corte para dinamizar e ampliar o espectro do debate da causa constitucional.
Ora, a discussão constitucional na repercussão geral deve ser a mais difusa possível, porquanto a decisão será paradigma para o julgamento de múltiplos casos com fundamento em idêntica controvérsia, inclusive dos recursos extraordinários sobrestados no rito do art. 543-B, do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1o Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2o Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3o Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4o Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 5o O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.
No Supremo Tribunal Federal, a Ministra Cármen Lúcia, relatora do RE 565.714/SP, decidiu que a repercussão geral da questão constitucional pode transcender o caso proposto para atingir, além dos servidores públicos do Estado de São Paulo, os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho e por outros regimes jurídicos, in verbis:
6. Entende, assim, configurada a relevância jurídica da matéria, dada a divergência jurisprudencial no próprio Supremo Tribunal Federal, além da transcendência aos interesses das partes, pois a solução a ser definida por este Tribunal balizará não apenas o regime remuneratório dos servidores públicos, como, também, a disciplina adotada pela Consolidação das Leis do Trabalho para o adicional de insalubridade devido nas relações por ela regidas.
Igualmente, o Ministro Ricardo Lewandowski, relator do RE 579.951/RN, decidiu que o julgamento da repercussão geral pode extravasar o caso em julgamento. O leading case que ensejou o recurso é a configuração de nepotismo municipal na hipótese de motorista terceirizado com parentesco com secretário municipal, ocasião na qual o Supremo Tribunal Federal decidiu que o caso seria analisado com a perspectiva de nepotismo em toda a Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, in verbis:
A presente questão constitucional oferece repercussão geral. A hipótese descrita nos autos diz respeito a princípio constitucional dirigido a toda Administração Pública, seja ela federal, estadual ou municipal, transcendendo, portanto, o interesse individual das partes.
Posto isso, fica claro que no julgamento de mérito da repercussão geral debatida em recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal não fica limitado ao caso proposto.
4. Conclusões
Em razão do volume gigantesco de processos em trâmite no Supremo Tribunal Federal, foi editada a Emenda Constitucional nº 45/2004, a fim de racionalizar o procedimento e julgamento de processos no Poder Judiciário brasileiro.
Assim, foi instituída como preliminar obrigatória ao recurso extraordinário a necessidade de demonstração da repercussão geral da matéria, no sentido de que a questão constitucional fundamentadora do recurso ultrapasse o mero interesse individual das partes envolvidas, porquanto, até então, era frequente a intervenção da Corte Suprema para decidir sobre questões pontuais e individuais, que não afetavam a sociedade como um todo.
Desse modo, a repercussão geral é uma espécie de filtro constitucional para acesso ao Supremo Tribunal Federal pela via do recurso extraordinário, visto que sua atuação deve ser dar para uniformizar a interpretação da Constituição, e não para decidir sobre a justiça do caso concreto.
Ademais, como no julgamento da repercussão geral a decisão recai sobre a questão constitucional, o Supremo Tribunal Federal não fica limitado ao leading case, pois ela será modelo para o julgamento de múltiplos casos com idêntico fundamento.
5. Referências bibliográficas
BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em 13 de setembro de 2014.
______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 13 de setembro de 2014.
______. Supremo Tribunal Federal, RE 565.714/SP, Relatora Ministra Cármen Lúcia. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID =510977> Acesso em 13 de setembro de 2014.
______. Supremo Tribunal Federal, RE 579.951/RN, Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP= AC&docID=527725> Acesso em 13 de setembro de 2014.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Vol. II.
FUCK, Luciano Felício. O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. Disponível em: Revista de Processo (Ed. RT) 181/9, mar/2010. Material da 3ª aula da Disciplina: Direito Constitucional Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público – Anhanguera-Uniderp/Rede LFG.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
[1] Lições de Direito Processual Civil. 14. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Vol. II, p. 141.
[2] O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. Disponível em: Revista de Processo (Ed. RT) 181/9, mar/2010. Material da 3ª aula da Disciplina: Direito Constitucional Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público – Anhanguera-Uniderp/Rede LFG, p.11.
[3] Lições de Direito Processual Civil. 14. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Vol. II, p. 142.
[4] O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. Disponível em: Revista de Processo (Ed. RT) 181/9, mar/2010. Material da 3ª aula da Disciplina: Direito Constitucional Aplicado, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público – Anhanguera-Uniderp/Rede LFG, p.11.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. Especializando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Luís Henrique Assis. O recurso extraordinário e a não limitação do julgamento da repercussão geral ao leading case proposto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41147/o-recurso-extraordinario-e-a-nao-limitacao-do-julgamento-da-repercussao-geral-ao-leading-case-proposto. Acesso em: 22 nov 2024.
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