I – FUNDAMENTOS
1- Do Contexto Constitucional
Não se deve cansar de repetir, como já o dissemos em outras hipóteses, que o combate á corrupção, o combate ás imoralidades administrativas, às ilegalidades e ilícitos de servidores públicos como de todo e qualquer um que receba verbas públicas, é princípio fundamental que se impõe na consubstanciação de um Estado de Direito Democrático.
A manutenção da ordem pública, a manutenção da legalidade, a boa gestão do patrimônio público são valores que se impõem ao Estado, á Administração, mas também a toda aquele que possa de alguma maneira efetuar o controle de tais situações, o que, no Brasil, ante o principio republicano e o democrático, indicam desde os órgãos públicos especializados, como Ministério Público e Advocacia-Geral da União, assim como os Tribunais de Contas, Controladorias, como também as esferas sociais como ONGS e, principalmente o cidadão, o particular, o administrado, o servidor, que cientes desse dever cívico, vêm cumprindo, apesar de todas as ameaças, limitações e restrições, o papel de colaboradores da manutenção da moralidade, seja com ações populares, movimentações sociais, protestos e denuncias, ainda que anônimas, além das representações ao próprios órgãos de controle.
Percebe-se, pois que o combate á corrupção, ás ilegalidades é inerente ao Estado Democrático e deve ser entendido como direito e dever de todos.
Tal se dá por determinação constitucional:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ora, não há como implementar praticamente nenhum dos objetivos fundamentais da República sem o combate á corrupção, sem a atuação dos órgãos de controle, sem o controle social e, principalmente, sem se evitar a impunidade, pelos vários motivos formais e temporais que por vezes surgem.
É justa a República com altos índices de corrupção e com elevado grau de impunidade? Desenvolve-se econômica e socialmente a República que não zela pela defesa de seu patrimônio? Pelo cumprimento das leis? Erradica-se a pobreza e a marginalização, reduzindo-se desigualdades sociais e regionais o Estado descumpridor de leis? O Estado sem controle, o Estado mal gerido e sem autocontrole, sem autotutela diminui desigualdades sociais? Diminui marginalização? O Estado corrupto, a Administração sem poder de fiscalização interna e externa contribui de alguma maneira com a diminuição da desigualdade social? Que bem de todos pode ser promovido sem o combate á corrupção? Como fazer prevalecer o bem de todos sem ferramentas para impedir a supremacia do interesse egoístico?
Ainda sobre o fenômeno da corrupção e seus maléficos efeitos no Brasil, vale citar estudioso do tema, Dr Emerson Garcia, Doutorando e Mestre em Ciências jurídico- Políticas pela Universidade de Lisboa, Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa, quando, em sua tese Repressão à Corrupção no Brasil: entre realidade e utopia[1], melhor evidencia o que aqui se tenta demonstrar: realidadutopia
A corrupção, por certo, não é invenção brasileira. Pode ser vista como efeito praticamente inevitável de uma organização estatal deficiente, qualquer que seja o país objeto de análise. É o que ocorre quando verificamos a presença de (a) falhas no recrutamento de pessoal, (b) excessiva liberdade valorativa outorgada a agentes públicos, limitando a possibilidade de controle de suas decisões, (c) carência de estrutura material e humana nos órgãos administrativos, tornando-os ineficientes, (d) nítida precariedade dos instrumentos de controle e (e) entraves processuais que dificultam a aplicação das sanções cominadas.
Contextualizando as características anteriormente referidas na realidade brasileira, observa-se, inicialmente, em todas as esferas de governo, um excessivo quantitativo de cargos administrativos providos sem a prévia aprovação em concurso público, fenômeno verificado a partir da década de sessenta do século passado, durante a ditadura militar. Esses cargos são rotineiramente utilizados para premiar apadrinhados políticos, nem sempre comprometidos com o evolver do serviço público. O pior é que o servidor de carreira, não raras vezes, passa a ser comandado pelos ocupantes desses cargos, o que, não bastasse o mau exemplo, se erige como nítido desestímulo ao seu empenho. A ideia de liberdade valorativa, apesar de inerente a qualquer regime democrático, é constantemente deturpada.
No âmbito da função executiva, não é incomum que certas decisões sejam tomadas à margem do interesse público, com o deliberado propósito de benefício pessoal, associado, ou não, à obtenção de vantagem indevida junto a terceiros (v.g., com a definição do trajeto de uma rodovia, que pode valorizar ou desvalorizar as propriedades confrontantes; a contratação direta, sem a prévia realização de licitação de empresas conluiadas com o administrador, a liberação de recursos públicos para instituições sem fins lucrativos, controladas por correligionários políticos etc.).
Entre os demais servidores públicos, a corrupção tende a ser maior, ou menor, conforme a amplitude do seu poder de decisão. Escândalos de corrupção envolvendo policiais e fiscais de tributos, especialmente aqueles vinculados aos estados-membros, são frequentes, o que certamente decorre da baixa remuneração oferecida e do fato de estarem na linha de frente no combate à ilicitude, o que lhes oferece uma ampla possibilidade de se envolverem em práticas corruptas.
(..)
Embora a corrupção seja uma prática conhecida por todos, sua repressão, apesar de todos os esforços, também é comprometida pela precariedade dos instrumentos de controle. A começar pelos órgãos policiais, passando pelo Ministério Público, avançando pelos Tribunais de Contas e culminando com o Poder Judiciário, isso sem olvidar os mecanismos de controle interno afetos a cada estrutura de poder, todos apresentam deficiências orgânicas. Mesmo aquelas unidades que apresentam estrutura mais avançada no âmbito da Federação brasileira não se mostram aptas a superar o volume de casos a serem resolvidos, o que procrastina a sua resolução e, por vezes, os relega ao esquecimento. Não bastasse isso, os instrumentos de investigação, não obstante honrosas exceções, não têm acompanhado o aprimoramento das práticas ilícitas, a cada dia mais refinadas. Nem todos os órgãos dispõem de ferramentas e tecnologia adequadas ao seu objetivo. Um exemplo notável, a que já fizemos referência em incontáveis congressos destinados ao estudo da temática, é a inexistência de um serviço central de informação, que seria responsável pela confrontação de dados recebidos de todos os entes responsáveis pela gestão de informações que possam refletir a situação patrimonial de uma pessoa (v.g., instituições bancárias, registros de imóveis, departamentos de trânsito, juntas comerciais, receita federal, previdência social etc.) e, uma vez verificada a existência de situações suspeitas (v.g., um agente que declara ter renda de 10, mas ostenta patrimônio 1000 vezes maior), seriam provocados os órgãos de controle. Como a quase totalidade desses sistemas já está informatizada, não vemos a razão por que não se implementar um sistema como esse, nos moldes, aliás, do que foi feito na França com a edição da Lei nº 93-122, de 29 de janeiro de 1993 (JO de 30/01/1993, p. 1.588 e ss.).No Brasil, somente dispomos do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), que nada mais é que a Financial Intelligence Unit (FIU) inicialmente prevista na Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena, em 20 de dezembro de 1988, ratificada no Brasil por meio do Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991. Esse órgão foi inicialmente concebido para o combate à lavagem de dinheiro e somente congrega informações de ordem financeira.
Por último, merece referência a prodigiosa lei processual brasileira, permitindo que um único processo passe por quatro instâncias diferentes, sendo disponibilizado um extenso leque de recursos a tantos quantos pretendam subtrair-se ao alcance da Justiça. Além disso, um elevado quantitativo de agentes públicos goza do denominado “foro por prerrogativa de função”. Enquanto o cidadão comum deve ser julgado por um juiz, eles são submetidos originariamente a um tribunal. Como os tribunais não dispõem de estrutura adequada para conduzir um processo dessa natureza paralelamente à sua competência recursal, é natural que a impunidade seja a tônica, máxime com a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. Considerando que as debilidades do sistema são mais bem exploradas pelos advogados mais talentosos, que normalmente só estão ao alcance das classes mais favorecidas, popularizou-se o adágio popular de que “rico não vai para a cadeia”.
A resultante dessa variada gama de aspectos negativos é um elevado custo social. As políticas públicas são sensivelmente atingidas pela evasão fiscal, que consubstancia uma das facetas dos atos de corrupção. Com a diminuição da receita tributária, em especial daquela originária das classes mais abastadas da população, diminui a redistribuição de renda às classes menos favorecidas e aumenta a injustiça social. Esse ciclo conduz ao estabelecimento de uma relação simbiótica entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Quanto maiores os índices de corrupção, menores serão as políticas públicas de implementação dos direitos sociais. Se os recursos estatais são reconhecidamente limitados, o que torna constante a invocação da “reserva do possível”, ao se tentar compelir o Poder Público a concretizar determinados direitos consagrados no sistema, essa precariedade aumentará na medida em que os referidos recursos, além de limitados, tiverem redução de ingresso ou forem utilizados para fins ilícitos.
Em verdade, tal percepção jurídica e sociológica é praticamente notória: A corrupção faz mal ao país. Todos devem combater a corrupção
Pois bem.
Agora especificando a temática que se pretende aqui discutir, nesse contexto devemos, então, rever alguns institutos do direito para que tenham, nessa necessária área de atuação do Estado, a eficácia que lhes seriam imprescindíveis.
Um desses institutos é o fenômeno da fraude, da dilapidação patrimonial, com fins de impedir a recomposição do erário!
Através, sendo mais específico, com as execuções de acórdãos do TCU, em que já líquido e definitivo o débito através de procedimento político-administrativo constitucionalmente previsto e com respeito á ampla defesa e ao devido processo, a Advocacia-Geral da União vem tentando aumentar significativamente os índices de recomposição do erário.
Porém, não raro encontra nas situações fáticas com indicativos de fraude, e no rigor de alguns conceitos outrora fixados como necessários á configuração jurídica do instituto, barreiras á eficácia e eficiência de sua atuação.
2 - Fraude – Fenômeno Comum na Recomposição do Erário
As hipóteses de situações fáticas com indicativo de fraude são diretamente proporcionais, e não inversamente, á criatividade do devedor.
Daí a necessidade de buscarmos o eficaz entendimento do instituto da fraude enquanto defeito do negócio jurídico no intuito de viabilizar o ressarcimento ao erário, eis que comum a defrontação do Advogado Público com tais situações em inúmeros processos
A Fraude, como defeito do negócio jurídico está expressamente prevista no Código Civil de 2002, em especial nos art.s 158 a 165.
Diz-se especialmente, pois, em nosso entender, o art 167, a tratar da simulação, apesar de taxar e classificar condutas como possíveis a institutos diversos, tangencia o mesmo modus operandis da conduta realizada no claro intuito de impedir a constrição patrimonial.
Da mesma forma, o princípio da boa fé, como norte geral da disciplina civil formalmente estabelecido com o Código de 2002, também, e nos parece óbvio, é norma a estabelecer o trato da conduta fraudulenta na gestão patrimonial evasiva.
Cabe transcrever a regra civilista:
CAPÍTULO IV
Dos Defeitos do Negócio Jurídico
Da Fraude Contra Credores
Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.
Art. 160. Se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados.
Parágrafo único. Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real.
Art. 161. A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.
Art. 162. O credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu.
Art. 163. Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor.
Art. 164. Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família.
Art. 165. Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores.
Parágrafo único. Se esses negócios tinham por único objeto atribuir direitos preferenciais, mediante hipoteca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação da preferência ajustada.
Como dito, também merece consideração, até porque algumas situações fáticas não são tão claramente expostas como a regra estabelecida, o que se disciplina sobre Simulação:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.
O fenômeno jurídico rapidamente retratado é o que se convencionou chamar de FRAUDE CONTRA CREDORES
2-A - Fraude contra credores
Trata-se, pois, da previsão normativa de que as condutas, atos e negócios jurídicos onerosos ou gratuitos, realizados conjunta ou isoladamente pelo “devedor”, que impliquem, na verificação geral do patrimônio deste, em insolvência ou aprofundamento desse estado de insolvência, devem ser considerados como condutas, atos negócios eivados por defeitos jurídicos.
Em regra se diz que tal instituto, da fraude contra credores, tem como escopo a proteção do crédito, do interesse patrimonial, o que a diferenciaria de outra conhecida modalidade de fraude, a fraude á Execução, a seguir melhor exposta, mas que, de início, teria como escopo a proteção do Estado-Juiz, pois se daria na relação processual.
Aqui já nos cabe instigar o debate. E se o crédito é do Estado Gestor, apurado e liquidado após procedimento político-administrativo constitucionalmente previsto e com respeitos ás garantias da ampla defesa e do devido processo legal, fruto do necessário combate á corrupção e aos atos de improbidade administrativa, com a efetiva recomposição ao erário? Seria o escopo de configuração da fraude mera proteção patrimonialista de mais um credor? Imprescindível ao adimplemento dos objetivos da República, seria essa atuação Estatal adequadamente taxada como mera reposição pecuniária disponível e, portanto, em caso de fraude, mera proteção de crédito?
Já nos adiantando, parece-nos que não. Mas antes cabe melhor desenvolver o tema da fraude e suas “espécies”.
2-B – Fraude à Execução
Outra hipótese classificatória da fraude se dá na chama Fraude á Execução
Tal classificação de conduta fraudulenta implica na verificação dos mesmos atos ou negócios jurídicos, ou seja, de disponibilização do patrimônio em risco á solvência, mas quando, e esta seria a principal nota de diferenciação, sobre tal patrimônio existir ou pender ação fundada em direito real, ou outra demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.
O regramento vem disposto, desta vez, no Código de Processo Civil, em especial art. 593:
CAPÍTULO IV
DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL
Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.
Art. 592. Ficam sujeitos à execução os bens:
I - do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada em direito real ou obrigação reipersecutória; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
II - do sócio, nos termos da lei;
III - do devedor, quando em poder de terceiros;
IV - do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou de sua meação respondem pela dívida;
V - alienados ou gravados com ônus real em fraude de execução.
Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III - nos demais casos expressos em lei.
Nessa hipótese de classificação da conduta fraudulenta, é comum se esclarecer que o escopo, ou seja, a finalidade da proteção, não é só a garantia ao credor, ou melhor, o “mero” interesse patrimonial, e sim impedir que o Estado – Juiz, quando provocado e tenha efetivamente iniciado o “trabalho” de recomposição forçada do patrimônio privado de um jurisdicionado, seja desrespeitado, ineficiente, em tal atribuição. Assim, o que se protege também é a jurisdição.
Famosa e comum a citação de LIEBMAN
“A fraude toma aspectos mais graves quando praticada depois de iniciado o processo condenatório ou executório contra o devedor. É que então não só é mais patente que nunc o intuito de lesar os credores, como também a alienação de bens do devedor vem constituir verdadeiro atentado contra o eficaz desenvolvimento da função jurisdicional já em curso, porque lhe subtrai o objeto sobre o qual a execução deverá recair” De tal sorte, o ato praticado em fraude à execução constitui ato atentatório à dignidade da Justiça, como estipulado no art. 600, I, do CPC. Tal conduta é sancionada por multa imposta pelo juiz no próprio processo, podendo atingir importância correspondente a 20% do valor atualizado do débito, sem prejuízos de outras sanções processuais ou de natureza de direito material, como dispõe o art. 601, do CPC.
Veja-se, pois, que se está diante de uma situação mais gravosa que a anteriormente descrita, pois existem dois interesses de necessária tutela, não só patrimonial do credor, mas também o do regular exercício da função estatal.
Tão mais gravosa situação que dispensada ação própria para seu reconhecimento, até porque se a ideia é proteger a jurisdição realizada, nada mais inteligente e eficaz e econômico do que o fazer no próprio “processo” judicial em que detectada a conduta obscura.
O direito se preocupa de tal maneira com a situação apresentada que também há previsão de tipificação penal.
É o que se retira do art. 179 do Código de Processo Penal:
“Fraude à execução.
Art. 179. Fraudar a execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas: Pena – detenção, de 6 meses a 2 anos, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante queixa”.
Certo que tal preocupação do Direito com a fraude quando ocorrida em relação processual se justifica. É o Estado no exercício regular de suas atribuições que deve ser respeitado.
E aqui novamente se instiga a discussão. Como muito mais razão então, nos parece, que nas hipóteses em que o mesmo Estado visa á implementação dos objetivos da República, com o combate á corrupção e a efetiva recomposição do erário, não como mero interesse patrimonial, mas como interesse e bem de todos, deve o Direito se preocupar sobremaneira com a eficácia e eficiência de tal conduta, tornando claro ou perceptíveis compreensões e mecanismos de percepção e combate á fraude em tais hipóteses.
Caminhemos.
2-C Da Fraude à Execução Fiscal
Uma terceira e mais específica hipótese é a fraude que se consegue detectar nos procedimentos de Execução Fiscal do Estado Gestor.
Está claramente previsto no art. 185, e próximos, do Código Tributário Nacional o seguinte:
CAPÍTULO VI
Garantias e Privilégios do Crédito Tributário
SEÇÃO I
Disposições Gerais
(...)
Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.(Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)
§ 1o A indisponibilidade de que trata o caput deste artigo limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)
§ 2o Os órgãos e entidades aos quais se fizer a comunicação de que trata o caput deste artigo enviarão imediatamente ao juízo a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade houverem promovido. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)
Veja-se que a preocupação com a garantia da atuação Estatal na função de Estado-Fiscal, também Gestor, foi tanta que, não só a reforma de 2005 no compêndio fiscal determinou e fixou a existência de uma presunção de fraude nas hipóteses de disponibilização patrimonial, quando o devedor já tiver contra si decisão administrativa definitiva sobre a existência de dívida fiscal, como também, na mesma vizinhança da norma, se previu a possibilidade de indisponibilidade patrimonial geral do devedor.
Fiquemos apenas no art. 185, sem a letra A, para não alargar demais a temática.
Cabe reforçar, então, que o Direito se preocupou tanto com a eficácia e eficiência do Estado Fiscal, na recomposição dos tributos não quitados, que ao instituto da FRAUDE, de roupagem anterior garantista, não só se presumiu a fraude, o que inverte a disciplina civilista, como também tornou desnecessária não só uma ação judicial própria que a declare, como se daria na chamada fraude contra credores, mas também dispensou a própria existência de uma medida judicial executória, a Execução Fiscal em si, bastando a inscrição em dívida ativa para a presunção se impor.
Aqui um ponto relevantíssimo do tema. Basta á presunção da fraude a formalização final do procedimento administrativo, observadas as garantias legais e procedimentais.
Ora, e mais uma vez buscando o debate que se quer propor. O que não seria necessário então á configuração da fraude, a dispensar ação própria e até a admitir-se a presunção, se a existência da dívida, do crédito, se da após regular procedimento político-administrativo realizado pelo Tribunal de Contas, com previsão constitucional e com pleno respeito ao devido processo legal e garantia á ampla defesa, quando da atuação Estatal no combate á corrupção e na recomposição do erário, imprescindíveis ao adimplemento dos objetivos da República?
É este o ponto que aqui se quer por em discussão: Ou seja, a atuação Estatal no combate á corrupção e na eficiente recomposição do erário impõe uma nova compreensão do fenômeno da gestão fraudulenta do patrimônio, a justificar mecanismos de facilitação de seu reconhecimento, seja com presunção de fraude ou dispensa de ação própria, o que demandaria alteração legislativa (será?) ou até com simples readequação, via interpretação jurisprudencial, dos requisitos necessários a sua configuração nas situações, por exemplo, em que exista acórdão do Tribunal de Contas da União reconhecendo e liquidando o débito, ainda que não distribuído, ainda, o feito executório.
Tal agravamento da disciplina da fraude na atuação fiscal do Estado, voltando ao regramento geral das fraudes, já foi inclusive reconhecido e legitimado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode perceber em notícia sobre julgado retirada do sítio eletrônico da referida e colenda Corte, em 06 de janeiro de 2011 (que pode ser encontrada no link (http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=100433):
Fraude em execução fiscal não exige prova de má-fé
A transferência de bens do devedor ocorrida após a inscrição do débito tributário em dívida ativa configura fraude contra a execução fiscal, independentemente de haver qualquer registro de penhora e de ser provada a má-fé do adquirente. Essas condições são exigíveis apenas para se caracterizar a fraude em caso de dívidas não tributárias, conforme decidiu a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A decisão foi tomada no julgamento de um recurso da fazenda nacional destacado como representativo de controvérsia. De acordo com o artigo 543-C do Código de Processo Civil, o entendimento deverá agora orientar as decisões da Justiça sobre os demais recursos que abordam a mesma questão jurídica, e que haviam sido sobrestados à espera de uma posição do STJ.
O relator do caso, ministro Luiz Fux, afirmou em seu voto que “a lei especial prevalece sobre a lei geral, por isso que a Súmula 375 do STJ não se aplica às execuções fiscais”. A súmula citada diz que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
De acordo com o ministro, isso é válido para as demandas cíveis, reguladas pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil. Já a fraude à execução fiscal é tratada pelo artigo 185 do Código Tributário Nacional (CTN). “Os precedentes que levaram à edição da Súmula 375 não foram exarados em processos tributários”, disse ele.
Na origem do processo, a Fazenda Nacional ajuizou ação para executar a dívida de um contribuinte do Paraná. Três dias depois de receber a citação, em outubro de 2005, o contribuinte vendeu uma motocicleta importada da marca Yamaha, ano 2000. Em 2007, a Justiça deferiu a penhora do veículo. O comprador, então, entrou com embargos de terceiro, que foram julgados procedentes na primeira instância.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) manteve a decisão do juiz. “Não se configura fraude à execução se, à época da compra e venda, inexistia restrição judicial sobre o veículo alienado. Mesmo com a citação do devedor, prévia à alienação do bem, seria necessário que o credor provasse a ciência do adquirente acerca da execução fiscal contra o alienante, para que se configurasse a fraude”, afirmou o tribunal regional.
Caráter absoluto
Ao analisar o recurso da Fazenda contra a decisão do TRF4, o ministro Luiz Fux assinalou que, segundo o artigo 185 do CTN, “consideram-se fraudulentas as alienações efetuadas pelo devedor fiscal após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa”. Antes de junho de 2005, quando esse artigo foi modificado, era preciso que a venda ocorresse após a citação do devedor.
“A fraude de execução, diversamente da fraude contra credores, tem caráter absoluto” – afirmou o relator, esclarecendo que nesse caso não há necessidade de se provar conluio entre o vendedor e o comprador. Para o ministro, a constatação da fraude é objetiva e não depende da intenção de quem participou do negócio: “Basta que, na prática, tenha havido frustração da execução em razão da alienação”.
“A diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, ao passo que, na segunda, interesse público”, disse o ministro, destacando que “o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas”.
Também o registro da penhora, segundo o ministro, “não pode ser exigência à caracterização da fraude no âmbito dos créditos tributários”, pois nesse caso há uma regra específica – o artigo 185 do CTN, que estabelece, como únicos requisitos para a configuração da fraude, a inscrição da dívida em data anterior à alienação e a inexistência de outros bens que possam satisfazer o credor.
Com esse entendimento unânime, a Primeira Seção decidiu o caso a favor da Fazenda.
Veja-se, para nossa felicidade, um dos principais fundamentos do Ministro a legitimar sua decisão: “A diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, ao passo que, na segunda, interesse público”, disse o ministro, destacando que “o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas”.
Como estamos a defender, na recomposição do erário por decorrência de execuções de acórdãos do Tribunal de Contas da União, há interesse público e a satisfação do crédito serve á satisfação das necessidades coletivas, de todos os cidadãos e do próprio Estado, República!
3 – Das Ocorrências
No intuito de se ilustrar o objeto em discussão, certo que não raro nos deparamos, ao tentar recompor o erário em execuções de acórdãos do Tribunal de Contas da União, com situações de manifesta fraude.
E isso em feitos, frisa-se: de recomposição do erário! Que a duras penas vem a União tentando ressarcir-se, minimamente. Nos diversos trâmites, inúmeros são os obstáculos enfrentados pelo Estado exeqüente, antes mesmo da citação do executado.
Trocas de endereços, “fugas de oficiais de justiça”, confusão de registros são diários.
Infrutíferas, na maioria das vezes as penhoras de valores pelo sistema BACEN-JUD, até porque somente realizadas, o que também iremos discutir em outra ocasião, após a já difícil citação do devedor e o decurso do prazo para Embargos á Execução.
Restaria ao devedor, ante o não pagamento do débito, a indicação, por determinação do Código de Processo Civil, de bens à penhora para posterior alienação, eis que se trata de execução de decisão do TCU.
É ônus do devedor, conforme Código de Processo Civil, indicar bens, sendo inquestionável o débito nessas hipóteses, isto porque já decidido pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2011, que as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) são impositivas às autoridades administrativas e só podem ser contestadas na Corte Constitucional.
Porém, parece-nos difícil encontrar dispositivo mais desrespeitado do que este no campo da execução. Cabe mesmo contar em dedos aqueles em que o devedor indicou bens á penhora, ainda mais se desnecessária caução á oposição de Embargos.
Em regra, nada faz o executado em prol da satisfação do débito. Não indica bens, impondo ao exequente o ônus de diligenciar a localização de algum, o que demonstra a clara intenção, ou melhor, as evidentes atitudes no sentido de lesar o erário e não responder patrimonialmente por sua recomposição.
E naquelas pouquíssimas hipóteses em que se consegue localizar algum bem do “desavisado” devedor, mesmo porque ciente inequivocadamente do débito desde a decisão do Tribunal de Contas, que se dá, como sabido, após procedimento com garantia de ampla defesa, certo que há, ali, ou alguma alegação de bem de família, ou simplesmente se verifica que houve alienação ou doação de tal imóvel, por exemplo, após a decisão da constitucional Corte de Contas, dias antes da regular distribuição do feito executório.
A Fraude patrimonial, á recomposição do erário, para nós, é evidente!
Mas cabe especificar um pouco mais duas hipóteses muito comuns de fraudes á recomposição do erário
3 –A - Fraude Patrimonial – Venda sem Registro
Não se desconhece o teor da vetusta Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça, publicada em 02.07.1993: É admissível a oposição de Embargos de Terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro.
Porém, parece tratar de POSSE, e não de PROPRIEDADE. Fora que legitimidade não é procedência de mérito.
Assim, ao que parece, os supostos Embargos de Terceiro teriam fundamento em discussão de posse, e não de propriedade.
De qualquer forma, muito comum em execução de acórdãos do Tribunal de Contas o devedor argumentar pela inexistência de patrimônio seu, ainda que no Cartório de Registro de Imóveis conste diferente, sob o manto da venda por negócio jurídico, promessa ou não registrada ou registrada no Cartório de Notas.
Não podemos concordar com a exclusão de tal patrimônio, regra geral, da necessária constrição judicial.
Mesmo porque o Código Civil de 2002, em seu art. 108 é expresso, e posterior, ao determinar a necessária averbação no Cartório de Imóveis de eventual negócio jurídico se o intuito é transferir propriedade:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Evidente, pois, que para se transferir a propriedade, necessário seria a averbação no Cartório de imóveis do negócio jurídico.
Daí o mesmo Código Civil, em seu art. 1227, ser taxativamente expresso e determinante:
Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
Não por menos Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves Farias, na moderna obra “Direitos Reais”, 4ª edição disciplinam:
“O registro do título translativo é indispensável á aquisição da propriedade imobiliária inter vivos. Portanto, no período que medeia a outorga do título aquisitivo e o registro, o alienante continuará a ser havido como dono da coisa (art.1245, §1º, do CC). Sabe-se que o registro é condição necessária para a produção de eficácia real ao negócio jurídico dispositivo imobiliário, conferindo ao novo titular a legitimação e o poder para dispor do direito subjetivo. O título se prende ao plano da validade; o registro ao da eficácia. A propriedade se constitui inter vivos neste instante, eis que na fase anterior só se cogite da relação obrigacional (fls. 243)
Restaria ao devedor, pois, indenizar os contratantes sem qualquer prejuízo ao do direito do Estado credor, vez que inexistente direito real na hipótese.
Ora, relação obrigacional não gera ônus real, como pacifico.
Daí, também, o mesmo Código Civil dedicar, então, toda uma seção á determinação da necessidade do registro, lá restando consignado:
Da Aquisição pelo Registro do Título
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
§ 2o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.
Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.
Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.
Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.
Assim, não há qualquer propriedade transferida com o negócio jurídico não adequadamente averbado em cartório próprio, razão pela qual não há falar em adquirente, muito menos de boa fé.
Ora, qual alienação existira em hipóteses como tal?
Poder-se-ia, neste momento, cogitar-se da utilização da exceção prevista no citado art. 1227.
Talvez imaginando que a propriedade poderia ser transferida nos autos sem o registro, por alguma outra milagrosa razão.
Neste ponto, porém, impede qualquer pretensão “fugitiva de responsabilidade” a lição dos renomados doutrinadores, também citados, e em mesma folha:
“O art. 1227 do código Civil faz alusão ao efeito constitutivo do registro mas, ao final do dispositivo, ressalva ‘os casos expresso neste código’. Portanto, o legislador excepciona hipóteses de registro meramente declaratórios. De fato, nos modos aquisitivos da sucessão e usucapião, o registro possui efeitos retroativos, pois o domínio do bem imóvel levado ao ofício imobiliário, mediante o formal de partilha ou pela sentença na ação de usucapião, já for adquirido ex tunc pela saisine (art. 1784,CC) ou pelo decurso da prescrição aquisitiva. Nessas duas hipóteses, o registro terá função de alterar a titularidade formal, conceder publicidade á aquisição e permitir ao adquirente dispor do bem. Destarte, a falta de registro, nos dois casos, importará em suspensão do exercício pleno do direito subjetivo”.
Evidentemente que em tais hipóteses, não se configuram as exceções.
Daí a imprescindibilidade do registro no Cartório de imóveis. Assim, inegável a propriedade do devedor. Inegável seu dever de ressarcir o erário e inegável não existir adquirente de boa fé.
Mas há mais.
Poder-se-ia, ainda, o devedor, tentar socorrer-se no disposto no art.1225, do CC/02, em especial, inciso VII:
Art. 1.225. São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
XII - a concessão de direito real de uso. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
Mais uma vez, porém, lhe faltará fundamento!
Mais uma vez a evasiva não encontrará apoio no ordenamento jurídico.
E a questão é simples: o contrato de venda ou a promessa de compra e venda SOMENTE É DIREITO REAL se registrado no Cartório de imóveis, e não de notas, como feito maldosamente em várias ocasiões pelos devedores. E mesmo assim, tem caráter obrigacional em seu cerne, sendo real apenas a garantia á adjudicação. Assim, não transfere a propriedade.
E quem bem nos explica toda a situação é o mesmo competente e renomado doutrinador, Dr Nelson Rosenvald, em art. disponível na internet com o mesmo texto de sua já citada obra, fls. 660/664. Grifos nossos:
Define-se a promessa de compra e venda como espécie de contrato preliminar pelo qual as partes, ou uma delas, comprometem-se a celebrar adiante o contrato definitivo de compra e venda. É negócio de segurança, destinado a conferir garantias às partes quanto à relação substancial em vista.
(...).
Para compreender o modelo da promessa de compra e venda, devemos analisá-la tanto sob o ângulo de uma relação obrigacional como ainda de um direito real à aquisição. Esclareça-se, por oportuno, que o código não incluiu a promessa de compra e venda no rol de contratos típicos, provavelmente por considerar que as suas linhas gerais estão delineadas na seção que trata do contrato preliminar (art. 462/466), cuja principal espécie é justamente a promessa de compra e venda. Daí que qualquer referência a este modelo ficou isolada em dois artigos no Livro de Direito das Coisas (art. 1.417/1.418, CC).
Na esfera obrigacional – caracterizada por relações interpessoais cujo objeto são prestações –, admite-se que o promissário comprador se vincula a uma obrigação de dar, caracterizada pelo pagamento de valores sucessivos, a fim de satisfazer integralmente a quantia ajustada com o promitente vendedor. Em contrapartida, assume este uma obrigação de fazer, de natureza obrigacional, consistente na cooperação para a formação do contrato definitivo pela outorga de escritura definitiva de compra e venda em prol do promissário comprador ao tempo da quitação.
Assim, quando integralizado o pagamento do preço, o promissário comprador intimará o promitente vendedor a outorgar-lhe escritura (realizar a prestação prometida de contratar) e, só depois de esgotado o prazo legal para fazê-lo, buscará a adjudicação compulsória por sentença, valendo como título para registro.
Contudo, a promessa, às vezes, é realizada fora das hipóteses de compra e venda a prestação. Basta lembrar situações em que algum evento impede ao comprador a imediata obtenção da escritura definitiva, como na aquisição de bens de um herdeiro na constância de inventário. Mesmo sendo o pagamento à vista, a promessa de compra e venda é celebrada e, após o registro do formal de partilha, as partes instrumentalizam a compra e venda definitiva.
O direito à adjudicação compulsória é oponível, inicialmente, ao promitente vendedor de forma voluntária ou, em caso de recusa, por ato jurisdicional, oriundo do próprio contrato e independente do registro. Trata-se de obrigação de fazer, que se configura mediante a outorga da escritura definitiva pela execução específica da obrigação de fazer, após o pagamento integral do preço pelo promissário.
Tanto a ação de adjudicação compulsória como a de outorga de escritura são ações pessoais, pois visam apenas suprir uma declaração de vontade omitida pelo promitente vendedor, nenhuma das duas objetivando transferir a propriedade. Nos dois casos a sentença produzirá o mesmo efeito do contrato a ser firmado, isto é, um título a ser levado ao registro para lavratura de instrumento público por qualquer tabelião.
Por conseguinte, já não há como embaralhar os conceitos do direito real e da ação de adjudicação compulsória. Esta ação é de natureza pessoal, esteja ou não registrado o compromisso.[2]
Afastada qualquer dúvida sobre a natureza obrigacional das ações de adjudicação compulsória ou outorga de escritura, como decorrência do contrato (art. 639, CPC), em 28/6/2000, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula no 239, nos seguintes termos: “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”
Daí o equívoco daqueles que supõem indispensável o registro do contrato de promessa de compra e venda para a procedência da pretensão à adjudicação. Como veremos adiante, o registro não interfere na relação de direito obrigacional, sendo apenas produtor de eficácia perante terceiros, que não participaram do contrato.
Exigir o registro para fins de adjudicação compulsória se mostra absolutamente assistemático. Não é razoável que apenas as promessas inscritas possam se beneficiar da tutela jurisdicional.[3]
Em síntese, a única diferença palpável entre a pretensão adjudicatória e a da outorga da escritura reside no objeto. Ao compromisso de compra e venda de lotes urbanos e rurais aplica-se a ação de adjudicação compulsória (art. 26, Lei no 6766/79 e art. 22, DL no 58/37); já a ação de outorga de escritura é utilizada nas promessas de compra e venda de imóveis não loteados, ora vedada nos arts. 1.417 e 1.418 do novo Código Civil.
Note-se que a sentença de procedência da ação de outorga de escritura terá natureza executiva lato sensu, dispensando qualquer providência posterior, seja a citação do devedor, seja a expedição de alvará. Consistirá o provimento jurisdicional apenas em ato equivalente à escritura que seria outorgada pelo particular, portanto passível de questionamento pelo oficial do registro nas hipóteses de afronta à Lei no 6.015/73, com suscitação de dúvida. O registro de sentença em processo de adjudicação compulsória pode ser denegado pelo oficial do Registro de Imóveis, da mesma forma que uma escritura pública de compra e venda o poderia.
Em síntese, a obrigação de fazer consistente em emissão de declaração de vontade, de que é espécie a de concluir contrato (art.639, CPC), é obrigação fungível. O que verdadeiramente interessa ao credor é o efeito jurídico decorrente do contrato prometido, pouco lhe importando ter sido ele produzido mediante participação voluntária do promitente vendedor ou por sentença em ação de execução específica que a substitua.
Fundamental é frisar que, apesar da ausência de solenidades – a promessa pode ser formulada por instrumento particular ou simples recibo, sem a limitação de valores descrita no art. 108, do CC –, o contrato preliminar deverá conter os requisitos de validade compatíveis com o do contrato definitivo prometido, já que a sentença não poderá criar o conteúdo do contrato que deveria ser voluntariamente concluído; ela apenas substitui a vontade integralmente aperfeiçoada do vendedor. Exemplificando, se à promessa de compra e venda não se colacionou a outorga uxória – exceto no regime da separação de bens -, vedada restará a via da outorga da escritura definitiva, pois esta necessariamente exigiria o suprimento do outro cônjuge para gerar direito real.
“A despeito da instrumentalização mediante um simples recibo, as partes celebraram um contrato preliminar, cuja execução se consumou com a entrega do imóvel ao compromissário-comprador e com o pagamento do preço por este último, na forma convencionada. Improcedência da alegação segundo a qual as negociações não passaram de simples tratativas preliminares” (STJ – REsp. no 145.204 – BA – Rel. Min. Barros Monteiro – 20/10/1998).
Em contrapartida, a promessa de compra e venda como direito real à aquisição surge quando o instrumento público ou particular da promessa é objeto de registro no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.417, CC). Nesse instante, o direito do promissário comprador alcança terceiros estranhos à relação contratual originária. A oponibilidade absoluta do direito real gera seqüela e torna ineficazes, em face daquele, as alienações e onerações posteriores ao registro do contrato preliminar. Esses efeitos decorrem apenas do registro, antes e independentemente do pagamento do preço.
Claro no tocante a esta bipartição de direitos é o art. 25 da Lei no 6.766/79, que dispõe sobre parcelamento do solo para fins urbanos: “São irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessões, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros.”
O registro da promessa de compra e venda gera um direito real à aquisição, em caráter erga omnes, porém a pretensão ora descrita só poderá ser exercitada pelo promissário comprador após o pagamento integral do preço. Isto é, antes do adimplemento integral só há um direito eventual, que não impede eventual alienação do bem pelo promitente vendedor a um terceiro, pois ainda guarda consigo a titularidade do bem.
Assim, quando A se torna promissário comprador, sem contudo efetuar o registro, a relação obrigacional não impede que posteriormente o promitente vendedor B possa alienar o mesmo bem a C. Frustrado o direito obrigacional de A, em face de evicção, apenas lhe restará a demanda de perdas e danos em face de B.
Todavia, sendo o registro da promessa de compra e venda anterior ao ato dispositivo, consegue-se resguardar o crédito do promissário comprador pelo direito de seqüela, diante da ineficácia relativa da alienação praticada por B em favor de C, ensejando a possibilidade de A inserir o adquirente C no pólo passivo da ação de adjudicação ou da outorga de escritura.
A falta de registro faria com que, mesmo pago o preço, o promissário comprador não mais pudesse reaver o imóvel de terceiro. De fato, se o promitente vendedor alienasse o imóvel prometido à venda em detrimento ao direito obrigacional do promissário comprador, obstaculizar-se-ia o seu direito à execução específica do contrato, pois nenhuma sentença poderia substituir a vontade do promitente vendedor se ele já não mais se encontrasse na titularidade do imóvel ao tempo da quitação da promessa. Restaria ao compromissário o direito a indenização por perdas e danos resultantes do inadimplemento do contratante em sua obrigação de fazer.
Se o registro preventivo da promessa de compra e venda não é capaz de obstar qualquer ato de disposição por parte do promitente vendedor – não o torna inalienável absolutamente –, é mais que suficiente para inquinar de má-fé o terceiro adquirente, sendo prova prévia de fraude e conseqüente ineficácia relativa do negócio jurídico, ou inoponibilidade, perante o promissário comprador. Isto é, não se trata de recusa aos planos de existência e validade da alienação, pois, se por qualquer motivo a promessa de compra e venda for objeto de resolução, em razão do inadimplemento do promissário comprador, aquelas alienações posteriores à promessa de compra e venda produzirão seus normais efeitos entre os contratantes.
Julgamos que estas considerações são suficientes para que não se incorra na imprecisão terminológica de se referir ao direito real “à aquisição” como sinônimo de direito real “de aquisição”. Caso adotada esta locução, incidiríamos no equívoco de supor que o simples registro acarretaria, isoladamente, a aquisição do direito real. Vimos que em verdade isto não acontece. O registro produz direito real à aquisição, em face do vendedor e de terceiros, só e quando o promissário comprador cumpre a sua obrigação de integralizar as prestações.
O art. 1.418 do Código Civil não andou bem ao dispor que “o promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel”.
Com efeito, conforme o visto à exaustão, o registro só é necessário para a proteção perante terceiros, sendo dispensável a sua formalização para a produção dos efeitos materiais decorrentes da relação obrigacional entre as partes originárias. A prevalecer a fórmula sugerida pelo novo Código Civil, invalida-se a retrocitada Súmula no 239 do Superior Tribunal de Justiça e reabre-se a bizantina discussão que se pensava finalmente superada. A nosso viso o equívoco praticado não resultou de um descuido na redação do dispositivo, sendo a intenção do legislador verdadeiramente atribuir ao registro a produção de efeitos obrigacionais, sendo suficiente remeter o leitor ao art. 463, parágrafo único que dispõe acerba da obrigatoriedade do contrato preliminar ser levado ao registro competente.
O Código Civil incorre no mesmo equívoco de antigas decisões do Supremo Tribunal Federal que interpretando literalmente o artigo 22 do Decreto-Lei 58/37 entendiam que somente era possível a adjudicação compulsória se o compromisso de compra e venda estivesse registrado.[4]
O art. 1.417 do Código Civil enfatiza que o direito real à aquisição não se formará quando, não obstante registrada, contiver a promessa de compra e venda a cláusula de arrependimento. Cuida-se de direito potestativo que confere ao promissário comprador a opção de resilir unilateralmente (art. 473, CC) o negócio jurídico, mediante a denúncia notificada a outra parte, impondo-se a devolução integral das quantias pagas.
Há de se observar que o direito de arrependimento foi proscrito do compromisso de compra e venda de lotes rurais e urbanos, sendo de essência a sua irretratabilidade. Pela Súmula no 166 do STF, “é inadmissível o arrependimento do compromisso de compra e venda ao regime do Decreto-Lei no 58”. Igual entendimento se extrai da leitura do art. 25 da Lei no 6.766/79.
Assim, não há possibilidade de inserção de cláusula de arrependimento, tanto nos contratos que envolvam lotes rurais (Decreto-Lei no 58/37) quanto nos que pertinem a lotes urbanos (Lei no 6.766/79). A vedação é de ordem pública, sendo plenamente justificável pela própria dinâmica dos contratos que envolvem loteamentos. Se fosse possível a retratação, o compromitente vendedor poderia livremente praticar a especulação imobiliária com a seguida venda e recompra de lotes por preços bem superiores aos obtidos nas transações anteriores.
Pela dicção do novo Código Civil, somente para os imóveis não loteados resta ainda possibilidade de arrependimento, mediante cláusula expressa no contrato, desde que não pago totalmente o preço. Caso contrário, entende-se que houve decadência ao exercício do direito potestativo de arrependimento, uma vez que haveria uma lesão à boa-fé do promissário comprador que adimpliu suas obrigações e flagrante abuso do direito por parte do promitente vendedor.
No regime do Código Civil de 2002 a impossibilidade de arrependimento é colocado como requisito inafastável para a constituição do direito real. Em verdade o que autoriza a adjudicação não é o direito real, mas a impossibilidade de arrependimento.[5]
Em virtude de sua irretratabilidade, entendemos apropriada a adoção da expressão compromisso de compra e venda, no que se refere aos contratos preliminares de aquisição de lotes urbanos e rurais, enquanto a promessa de compra e venda – passível de retratação – concerne aos imóveis não loteados, doravante regidos pelo Código Civil.
Ora, se no contrato de compromisso de compra e venda inexiste possibilidade de exercício de direito de arrependimento, temos um contrato preliminar impróprio. Isto é, com a prova do pagamento do preço, o compromissário comprador é dispensado de procurar um segundo acordo de vontades, já que o adimplemento integral é justificativa suficiente ao alcance do registro do direito de propriedade, dispensando-se a superfetação de se promover uma escritura definitiva de compra e venda. Neste sentido, o art. 41, da Lei nº 6.766/79 aduz que “...o adquirente do lote, comprovando o depósito de todas as prestações do preço avençado, poderá obter o registro de propriedade do lote adquirido, valendo para tanto o compromisso de compra e venda definitivamente firmado”.
Nas hipóteses de compromisso sobre imóveis não-loteados, uma vez recebido o preço pelo compromitente vendedor, nada de positivo, útil e juridicamente válido permanece na sua titularidade. Só restou uma parte negativa, isto é, uma obrigação, a obrigação de outorgar uma escritura.[6]
Finalizando, advirta-se que a Lei no 9.785/99, dentre outras providências, criou nova modalidade de desapropriação por utilidade pública em prol da classe de menor renda, mediante a implantação de loteamentos e conjuntos habitacionais, denominada desapropriação para implantação de parcelamento popular. Reflexamente, o novo instituto alterou e acresceu dispositivos à Lei no 6.766/79, permitindo a cessão da posse dos imóveis objeto de expropriação e, posteriormente, da transferência da propriedade a particulares, decorrendo o registro definitivo das promessas de compra e venda de simples apresentação de recibo de quitação, eliminando a exigência da escritura definitiva ou de eventuais providências judiciais complementares – adjudicação compulsória ou ação de outorga de escritura (art. 26, § 6o, Lei 9.785/99). A interpretação do art. 26, § 6º, é no sentido de que qualquer compromisso de compra e venda se aterá aos seus ditames, não apenas os loteamentos populares e conjuntos habitacionais.
No sistema do Código Civil o contrato preliminar próprio será o negócio jurídico de promessa de compra e venda de imóveis não-loteados, pois o art. 1.418 mantém a exigência de efetivação de dois contratos sucessivos para se alcançar a propriedade: a promessa de compra e venda (contrato preliminar) e a compra e venda (contrato definitivo).
“Segundo a moderna doutrina, a que se referem José Osório de Azevedo Jr. E Orlando Gomes, dentre outros, há duas modalidades de contratos preliminares de compra e venda: o próprio, que representa mera promessa, preparatório de um segundo, e o impróprio, irrevogável e irretratável, contrato em formação que vale por si mesmo e dispensa a pactuação de outra obrigação” (STJ, REsp. nº 35.840/SP, 4º T, Rel.Min. Sálvio de Figueiredo, DJ, de 11.11.1996).
A nosso viso, o Código Civil não foi feliz ao filiar o contrato de promessa de compra e venda à modalidade do contrato preliminar. Basta pensar que ao tempo do adimplemento integral das prestações pelo promissário comprador, a propriedade que remanesce em poder do vendedor é apenas um resíduo formal do registro, pois as potencialidades materiais da coisa já se encontram a serviço do comprador. Duas conseqüências do regime são particularmente ingratas: a) o encarecimento do preço para a aquisição da propriedade, pois novos custos surgirão da necessidade de outorga de uma segunda escritura, agora de compra e venda; b) o próprio desinteresse do comprador em outorgar a escritura definitiva ou mesmo o seu falecimento ao transcurso do pagamento, o quê implica na necessidade de ajuizamento de ação de outorga de escritura ou ingresso com pedido de alvará em inventário, o quê demanda desperdício de tempo e custos, na própria contramão da diretriz da operabilidade, tão cara a Miguel Reale.
A legislação especial ressalta o equívoco do art. 1.418 ao insistir na formalidade da obtenção da escritura definitiva de compra e venda para fins de posterior registro e transmissão da propriedade. Trata-se de mero formalismo, inócuo em um país com inúmeras demandas sociais. Perdeu-se bela oportunidade de se aceitar que o contrato preliminar pudesse ser diretamente levado a registro, sendo bastante que o interessado comprovasse a quitação do débito.
Em qualquer entendimento da doutrina, ou jurisprudência, pois, não estaria socorrido o devedor que não registra adequadamente a promessa de compra e venda, restando evidenciada a fraude á recomposição do erário que, na hipótese, pode advir de uma simulação em negócio jurídico, também.
Assim, o quadro normativo não permite concluir que não há mais necessidade de se averbar o cartório de imóveis o título aquisitivo.
Pelo contrário.
Até para a configuração da relação obrigacional de promessa de compra e venda em direito real á aquisição, necessário é a averbação em cartório de imóveis, o que em regra não é feito pelos cientes devedores do erário.
3 – B – Da Fraude Patrimonial - Transferência entre decisão do Tribunal de Contas e a distribuição da Ação Executória.
Como adiantado, para nós, nessas hipóteses, há fraude patrimonial que deve ser adequadamente impedida pelo Direito, viabilizando-se de forma eficiente a recomposição do erário e o combate á corrupção até como meios de se adimplir os objetivos da República consagrados no Texto Constitucional.
Há fraude, pois, quanto á concessão da relação obrigacional do título de compra e venda!
Ora, o histórico do crédito afasta, por completo, alegação de boa fé. Os acórdãos do Tribunal de Contas da União, por exemplo, condenam o devedor ao ressarcimento, tendo o “título executivo”, claro, como data, a lavratura do acórdão. Para sua formação, como já salientado, o devedor foi devidamente notificado, tendo, inclusive, ampla possibilidade de se manifestar, de se defender, de contribuir, ou não, á formação do título proveniente de um processo político administrativo disciplinado constitucionalmente e ao qual o Supremo Tribunal Federal já declarou, inúmeras vezes, a validade e a força da atribuição da Corte Técnica de Contas
Assim, antes mesmo da distribuição do feito executório do título, mas em sua formação, já estava ciente o devedor de seus débitos.
Nestes termos, em que se considera a ciência inequívoca como elemento á configuração da fraude, até presumida, é clara a inteligência do atualmente disposto no art. 615ªA §3º do CPC:
§3º. Presume-se fraude á execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação.
Como visto, o devedor indicado no acórdão da Corte de Contas, da mesma forma, já esta inegavelmente ciente do débito, pelo credor, restando configurada uma publicidade do interesse deste em penhorar o bem com vistas à satisfação da dívida.
Assim, em nosso entender, resta inequívoca a configuração de fraude em execução no intuito de se recompor o erário, quando o devedor, buscando retardar ou escusar-se do cumprimento da dívida, pratica atos de disposição dos bens passíveis de penhora, mesmo antes da distribuição, com citação efetiva, da demanda judicial meramente executória.
Em regra, revelam os diversos autos que o Estado-Credor realiza todas as diligências necessárias ao cumprimento das determinações judiciais, buscando sempre proteger os interesses do erário e solucionar a demanda, desafogando a máquina judiciária.
Entretanto, contrária a essa posição age o devedor.
Como visto, ao contrário da realidade da fraude a credores, na qual se analisa o elemento subjetivo dos envolvidos e predomina o interesse particular destes, a fraude à execução consiste em ato de litigância de má-fé, em que predomina o interesse público, comumente reconhecido como processo, atos que atentam contra a dignidade da justiça ou da jurisdição, mas que, para nós, também pode ser o da necessária e eficiente recomposição do erário na tutela da boa versação dos bens públicos.
Deste modo, uma vez que há muito já exista o processo político-jurisdicional visando à satisfação do ressarcimento ao erário perante o TCU, antes da suposta transferência do bem, mesmo o negócio jurídico fraudulento se concretize antes da citação em feito executório, com a retroação comum á distribuição, restaria inequívoca a invalidade do negócio, ou a existência de fraude à recomposição do erário.
4 - Conclusão
Necessário, pois, reinterpretar-se o fenômeno da fraude nas execuções de TCU permitindo-se seu reconhecimento, até por presunção, logo após prolatada decisão colegiada e regular do Tribunal de constas, independentemente de distribuição de feito executório, muito menos de ação própria para tal reconhecimento, já que inequívoca a ciência prévia do devedor, manifesta a conduta dolosa ou evidente a má fé, e necessário á eficiente atuação Estatal no combate á corrupção e recomposição do erário como forma de se adimplir os objetivos da República.
[2] Sílvio de Salvo Venosa. Direitos Reais, p. 576. Atlas. 2003.
[3] Eduardo Kramer. Algumas anotações sobre direitos reais no novo Código Civil, p. 210. In O novo código civil e a constituição. Livraria do Advogado. 2002.
[4] Marco Aurélio Bezerra de Melo. Direito das Coisas, p. 278. Lúmen Juris. 2002.
[5] Marco Aurélio Viana. Comentários ao novo código civil. Direitos reais, p. 694. Editora Forense, 2003.
[6] José Osório de Azevedo Júnior. O Compromisso e a compra e venda, p. 455. In O novo código civil. Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. LTR. 2002.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Pedro Vasques. Fraude á Recomposição do Erário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41324/fraude-a-recomposicao-do-erario. Acesso em: 22 nov 2024.
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