Introdução
O século XX representou para a humanidade um avanço como jamais fora visto, seja na esfera científica, tecnológica, comportamental, política, econômica ou social. Particularmente na segunda metade deste século, assistimos a inúmeros fatos sociais que marcaram definitivamente a história da humanidade, tais como a integração das culturas, a diminuição de contrastes provenientes de fronteiras territoriais, a globalização da economia, a massificação das sociedades.
Interesses difusos, assim entendidos aqueles que extrapolam a esfera individual, sempre existiram desde que o homem vive em coletividade. Contudo, afigura-se relativamente recente o surgimento dos “direitos” difusos, protegidos pelas organizações jurídicas dos Estados contemporâneos. Justamente em decorrência dessa massificação da sociedade, da perda de lugar do homem enquanto indivíduo isolado, ganharam peso e importância os direitos metaindividuais ou direitos coletivos lato sensu, classificados pela doutrina e jurisprudência pátrias em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos.
Dos Interesses e Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos
Nas origens da ciência do Direito buscou-se, como ocorre em qualquer tentativa de sistematização, subdividi-lo em grupos para classificarem seu objeto de estudo. Desta feita, surgiu a mais conhecida divisão do âmbito jurídico - Direito Público e Direito Privado - que por anos foi tida como partição absoluta, não comportando graus intermediários.
Tal divisão era satisfatória num primeiro momento, quando os dois únicos polos de referência eram o indivíduo e o Estado e não se podia cogitar de entes intermediários que ameaçassem o monopólio estatal[1]. Contudo, o homem é um animal que tende ao grupo, aspira à associação, e neste sentido foi inevitável a sobreposição da natureza humana em relação à via institucional do Estado, passando a sociedade moderna a aceitar e até mesmo a incentivar o corporativismo.
Diante desse novo quadro, consequente foi a aproximação também dos interesses dos indivíduos: o que era passível de defesa apenas individual foi também conglomerado pelos entes coletivos, propiciando, assim, a proteção mútua e maiores possibilidades de sucesso para todos[2]. Em face do reconhecimento pelo Estado dessa tendência de conglomeração na sociedade, irreversível foi o processo de surgimento e proteção aos interesses que extrapolassem o campo individual, um tertium genus entre os interesses privado e público[3], os chamados interesses metaindividuais.[4]
Para elucidar tal conceito, a palavra “interesse” não deve ser tomada em seu sentido leigo. Este interesse simples resume-se na vantagem desejada ou auferida por seu portador, mas que não é exigível. Não passa de um querer à satisfação de anseios e por isso destituído de proteção estatal[5].
A palavra "interesse" será aqui empregada como termo técnico utilizado no âmbito jurídico. Para delinear o interesse nessa seara, já se escreveu que seriam situados a meio-caminho entre os interesses simples (sentido leigo) e os direitos subjetivos, sendo fator determinante da diferença entre os três a intensidade da proteção estatal: embora os interesses não constituíssem verdadeira prerrogativa como títulos jurídicos oponíveis erga omnes, seriam protegidos limitadamente, isto é, não podem ser ignorados ou preteridos[6].
Contudo, com o advento do Código de Defesa do Consumidor – CDC (lei n° 8.078/90) – perdeu sentido prático a distinção entre os interesses que merecem tutela do Estado e os direitos subjetivos garantidos pela ordem jurídica. Para efeitos de proteção a valores metaindividuais, o CDC equiparou "interesses" a "direitos". Em seu artigo 81, parágrafo único, o código dispõe que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de: "I- interesses ou direitos difusos (...); II- interesses ou direitos coletivos (...); III- interesses ou direitos individuais homogêneos (...)". A conjunção alternativa ou sugere que, tanto os direitos quanto os interesses, merecem o mesmo tratamento. lnexiste no CDC distinção no que se refere ao modo de proteção, pessoas legitimadas, efeitos da condenação, enfim, o código regula com as mesmas disposições a defesa de ambos, atribuindo-lhes o mesmo tipo de ação para tutela.
Feita esta primeira observação, deve-se agora procurar o sentido das definições que especificam os interesses metaindividuais: difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Embora já existente no Direito Positivo brasileiro uma preocupação com interesses metaindividuais há alguns anos[7], o primeiro diploma a regular, de forma sistemática, a defesa desses direitos em juízo, foi a Lei da Ação Civil Pública (Lei n° 7347/85)[8]. A partir de então intensificaram os esforços dos estudiosos do direito em delinear os elementos que permitissem melhor definição de conceitos.
Neste momento de efervescência doutrinária após a edição da Lei 7347/85, houve quem seguisse a corrente consolidada pela jurisprudência italiana, optando por entender como sinônimas as expressões "interesse difuso" e "interesse coletivo". Por outro lado, de modo predominante no direito brasileiro, vários foram os posicionamentos aceitando a distinção, basicamente assinalando os mesmos traços discernentes entre as espécies.
O trabalho da doutrina brasileira, que até então era de construção de conceitos, viu-se forçado a mudar um pouco o enfoque em face do surgimento do CDC. Este instrumento, de importância já assinalada, entre várias inovações, teve o mérito de apoiar-se na doutrina e, consolidando-a, apresentar conceitos nos incisos de seu artigo 81, parágrafo único:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Desde então, para o Direito brasileiro, não mais se fez necessário apresentar novas definições e perdeu substância o entendimento de quem defendia serem sinônimas as expressões “direito difuso” e “direito coletivo”. Deste momento em diante, tendo em vista os significados trazidos pelo CDC e aplicados subsidiariamente em todos os ramos do direito, os esforços da doutrina voltaram-se para elucidar aqueles conceitos e trazer os elementos que os constituem, firmando e esclarecendo a distinção estabelecida pelo Código inovador.
Sob essa nova ótica, entende-se por interesses difusos aqueles caracterizados pela impossibilidade de determinação da coletividade atingida pelo ato ou procedimento lesivo ao ordenamento jurídico. Isto é, inexiste vínculo jurídico entre os membros da coletividade ou entre eles e a parte autora da lesão[9]. Deste modo, são seus requisitos de identificação: 1-indivisibilidade do objeto; 2-número indeterminado de titulares; 3-iguais circunstâncias de fato em que se envolveram as pessoas.[10]
Já os interesses coletivos são caracterizados pela existência de vínculo jurídico entre os membros da coletividade afetados pela lesão e o autor desta. Seria continuativa a lesão, afetando, concretamente alguns, e potencialmente a todos os membros do grupo[11]. Logo, seus titulares são identificáveis ou determináveis e aí reside o principal ponto que os diferencia dos interesses difusos.
Quanto aos interesses individuais homogêneos, justamente por não serem de múltiplos titulares, são divisíveis e individualizáveis, circunstância que os diferencia dos interesses difusos e coletivos. São direitos que não são coletivos por natureza, mas que por economia processual (interesse prático) podem ser tutelados de forma coletiva. Sendo interesses individuais, esclarece João Ferraz dos Passos (ex-Procurador Geral do MPT) que a legitimidade dos entes coletivos para sua defesa surge quando a lesão a esta espécie de interesse toma tal volume e importância que ocasionam transtornos sociais e desobediência à ordem jurídica[12].
Em cada uma das três espécies de interesses ora analisadas, facilmente se reconhece o conteúdo coletivo que as insere no rol de direitos e garantias fundamentais preservados pela Constituição da República. Para o Professor Messias Pereira Donato, o que de fato os diferencia é a intensidade de seu conteúdo coletivo. Assim,
não existe diversificação ontológica entre direitos e interesses coletivos e direitos e interesses difusos. Os direitos coletivos, em sua essência, guardam o selo originário de direitos difusos, não obstante seus traços identificadores. Trata-se de graduação e não de exclusão