RESUMO: Este artigo tem por objeto discorrer sobre o princípio da lealdade processual e da boa-fé, destacando a sua importância na solução dos conflitos judiciais e como fundamento dos diversos mecanismos de repressão no Código de Processo Civil.
Palavras-chave: Princípio. Lealdade processual. Boa-fé. Código de Processo Civil.
Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 1973, o então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid anunciou o princípio da lealdade processual como uma das evidentes inovações do projeto. Expondo suas razões, disse o eminente jurista:
Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça.
Com efeito, o Direito não reconhece regras morais de comportamento tão-somente nas relações jurídicas de direito material. Preocupa-se em conservar, também na prática de atos jurídicos processuais, condutas adequadas com a moralidade humana. O Código de Processo Civil não poderia, desse modo, deixar de regular o comportamento dos sujeitos na relação jurídico-processual. E assim o fez, dedicando um capítulo inteiro para regrar os deveres das partes, dos seus procuradores e dos intervenientes no processo (Capítulo II, Título II, Livro I).
Segundo VICENTE GRECCO FILHO, “O Código partiu da idéia de que as partes em conflito, além do interesse material da declaração de seus direitos, exercem também importante função de colaboração com a justiça no sentido da reta aplicação da ordem jurídica.”[1]
Na mesma ótica, ARRUDA ALVIM escreveu:
A alta finalidade pública do processo civil, que consiste na verificação de fatos ocorridos, como pressupostos da aplicação adequada da lei ao caso concreto (‘justa composição da lide’, no dizer de CARNELUTTI), não pode, é óbvio, prescindir da colaboração ética das partes. Caso contrário, o juiz teria de lutar, em verdade, contra os próprios litigantes que, por sua vez, lutariam violentamente entre si ao arrepio da mais elementar ética.[2]
A ideia do Código, portanto, é afastar qualquer comportamento prejudicial à solução do conflito levado ao Poder Judiciário. Daí a preocupação do legislador em estabelecer deveres dos sujeitos que atuam no processo judicial.
Relevante, neste sentido, é o argumento de MARCELO ABELHA RODRIGUES, sustentando também que:
Em se tratando de direito processual civil, objeto do nosso trabalho, o princípio da boa-fé e lealdade processual (probidade entre as partes), se não atendido, ofende não só a parte contrária na relação jurídica processual, mas, ainda, espraia seus efeitos contra o próprio Estado, que procura entregar de maneira justa a tutela jurisdicional.[3]
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR igualmente expõe a relação do princípio da lealdade processual com a ideia de justiça e legalidade, mas o faz referindo-se ao princípio da probidade, que, segundo ele, está consagrado no enunciado do art. 14 do Código.[4] Porém, o próprio doutrinador, mais adiante, assente em que o “(...) dever genérico de lealdade (...) a rigor engloba todas as variantes do art. 14 (...).”[5] Argumenta, pois, o preclaro professor:
Busca-se, com diversos expedientes legais, impedir que o improbus litigator faça prevalecer um “falso direito”, que acabaria por transmudar em injustiça e ilegalidade o ato jurisdicional, porquanto, se não evitado, tornaria o juiz “cúmplice inocente e involuntário da nociva solução.”[6]
Vale, por oportuno, citar mais algumas palavras do insigne jurista:
Dentro da sistemática do processo civil moderno, as partes são livres para escolher os meios mais idôneos à consecução de seus objetivos. Mas essa liberdade há de ser disciplinada pelo respeito aos fins superiores que inspiram o processo, como método oficial de procura da justa e célere composição do litígio. Daí a exigência legal de que as partes se conduzam segundo os princípios da lealdade e da probidade, figuras que resumem os itens do art. 14, em sua acepção mais larga.[7]
Ainda, apenas ad argumentandum, é pertinente o ensinamento de ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS:
As partes se comprometem a agir com honestidade, podendo utilizar-se de todos os direitos e faculdades que o processo lhes põe à disposição, mas tudo dentro do critério de utilidade e finalístico do próprio Direito Processual, sob pena de uso do direito transformar-se em abuso. [8]
Realmente, não reclamar dos sujeitos da relação processual a sua atuação com lealdade e boa-fé seria desacreditar o próprio Direito Processual e, por consequência, o Poder Judiciário, na medida em que são princípios de conduta social imprescindíveis para aproximar o processo da Justiça.
Afinal, “(...) o processo não é uma arena de duelo.”[9] As partes, seus procuradores e todos aqueles que, de qualquer forma, atuam no processo, devem agir em estrita consonância, não só com regras jurídicas, mas com regras morais de comportamento, procedendo, uns em relação aos outros, todos em relação aos membros da Magistratura e do Ministério Público, com respeito, urbanidade, prudência, cooperando na busca de um resultado imaculado ou, ao menos, verossímil. Daí a importância do princípio a ser observado pelo juiz, em especial porque “(...) na repressão à improbidade reside um dos atributos de sua imparcialidade”[10].
2. Positivação dos princípios da lealdade processual e da boa-fé
O princípio da lealdade processual e da boa-fé foi consagrado no art. 14 do Código de Processo Civil, com nova redação dada pela Lei n.° 10.358, de 27 de dezembro de 2001, que dispõe:
Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
(...);
II - proceder com lealdade e boa-fé;
Vê-se, contudo, que o princípio foi sacramentado expressamente pelo legislador apenas no inciso II do artigo 14. Todavia, estudo mais atento conduz à conclusão de que todo o dispositivo poderia ser reduzido àquele princípio, uma vez que a prática de quaisquer dos atos mencionados no artigo estaria, por força de hermenêutica jurídica, a violar o dever de lealdade e boa-fé. Afinal, expor os fatos em juízo conforme a verdade (inciso I), não formular pretensões ou defesas cientes de que são destituídas de fundamento (inciso III), não produzir provas ou praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (inciso IV), assim como cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimento judiciais (inciso V) são condutas exigidas de quem tem o dever de litigar observando o princípio da lealdade e boa-fé processual.
É evidente, contudo, que o legislador objetivou expor certas condutas dos sujeitos na relação processual, como o fez não só na redação do artigo 14, mas em diversas outras partes do Código, como, por exemplo, nos artigos 340 e 600.
Tão pequena diferença entre os preceitos do artigo 14 talvez seja o motivo por que RUI PORTANOVA não estabeleceu qualquer dessemelhança entre os princípios da boa-fé, da probidade e o da lealdade processual, considerando-os inclusive como sinônimos. Resumiu esse autor que “Todos os sujeitos do processo devem manter uma conduta ética adequada, de acordo com os deveres da verdade, moralidade e probidade em todas as fases do procedimento.”[11]
Da mesma forma, MOACYR AMARAL DOS SANTOS, intitulando capítulo de “Princípio da Lealdade Processual”, afirma que “as partes devem proceder de boa-fé, não só nas suas relações recíprocas, como em relação ao órgão jurisdicional.” E vai mais adiante: “Se, por um lado, cumpre-lhes dizer a verdade, por outro, suas atividades, no processo, insta sejam exercidas com moralidade e probidade, dirigidas por espírito de colaboração com o juiz na justa composição da lide.”[12]
Este, aliás, é o entendimento de ARRUDA ALVIM, que, em seus comentários ao artigo 14, afirma que “(...) todos esses deveres são decorrência, em suma, do princípio da lealdade, do qual é conseqüência inarredável o da veracidade.”[13]
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, como já citado, comenta que “(...) o dever genérico de lealdade e boa-fé (...) a rigor engloba todas as variantes do art. 14 (...).”[14]
No mesmo sentido, ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, para quem “O princípio da lealdade e boa-fé, contido no inc. II do art. 14, envolve todas as hipóteses previstas (...).”[15]
LEVENHAGEN, convindo em parte, assevera que, “Na verdade, as exigências constantes dos três primeiros incisos do artigo 14 podem ser resumidas numa só: na lealdade que deve presidir a atuação, no processo, tanto com respeito às partes, como aos seus procuradores.”[16]
No seu inciso I, por exemplo, o art. 14 estabelece que as partes e seus procuradores devem expor os fatos em juízo conforme a verdade. Consagra, portanto, o dever de verdade, a que PONTES DE MIRANDA chama também de dever de veracidade. Segundo o renomado jurista, o dever “(...) impõe que o autor e o réu apresentem fatos verídicos e não alterem, intencionalmente, os fatos apresentados.”[17] E mais adiante: “As partes e seus representantes e presentantes ou advogados têm o dever de fazer as suas comunicações de fato e enunciados de fato com inteireza e veracidade (= sem omissão, que lhes altere a verdade).”[18]
Assim, a falta com o dever de verdade estaria, numa hermenêutica mais ampla, a violar o princípio da lealdade processual e da boa-fé. Desse modo, o sujeito que, ocultando um fato, por exemplo, viola o dever de verdade, agride também o dever de boa-fé e lealdade.
JOÃO BATISTA LOPES, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Doutor em Direito Processual pela USP, em artigo publicado na Revista dos Tribunais, escreveu: “A alteração da verdade dos fatos traduz ofensa ao princípio da lealdade processual e, assim, deve ser punida com o rigor da lei.”[19]
Da mesma forma, aquele que formular pretensões, ou alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento (inciso III, artigo 14), ou ainda, aquele que produzir provas, ou praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (inciso IV), está, ao praticar estes atos, violando o dever de lealdade processual e boa-fé.
Mesmo o inciso V do art. 14, acrescentado pela recente Lei n.° 10.358, de 27 de dezembro de 2001, cuja finalidade é garantir a eficácia mandamental das ordens judiciais, tem nítida relação inseparável com o dever de lealdade e boa-fé. A própria Exposição de Motivos, justificando a realização das alterações, observou que o objetivo é reforçar a ética no processo, os deveres de lealdade e de probidade que devem presidir ao desenvolvimento do contraditório.[20]
Em verdade, não só o art. 14 do CPC está dominado pelos princípios da lealdade processual e da boa-fé, mas todo o Código, principalmente quando descreve condutas (CPC, art. 340 e art. 17) ou reprime outras, como, por exemplo, o comportamento inconveniente na audiência (CPC, art. 445, II) ou o dever dos advogados e do Ministério Público de agirem com elevação e urbanidade (CPC, art. 446, III). Assim também os três principais Livros do Código de Processo Civil, que, de um modo geral, penalizam o litigante violador do dever de lealdade processual e boa-fé, como, por exemplo,[21] os artigos 22, 31, 69 e 161 do processo de conhecimento, os artigos 574 e 601 do processo de execução e o artigo 811 do processo cautelar.
A lei não deve definir o que seja lealdade processual e boa-fé, porquanto passível de perturbação no tempo e no espaço, sendo acirradas as controvérsias no domínio filosófico. Nesta acepção agiu bem o legislador.
Também não é nosso objetivo traçar um conceito, mas tecer algumas linhas a fim de estabelecer parâmetros mínimos.
Como nos ensina HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, citando ANDRIOLI, “As noções de lealdade e probidade não são jurídicas, mas sim da experiência social.”[22] E mais adiante, o eminente professor explica que “(...) o que a lei censura são apenas as atitudes que ultrapassam os limites ‘que o costume e a moral social estabelecem’, aquilo que ‘para os advogados’ se coloca como ‘exigências de correção profissional.’”[23]
Mas não haveria distinção entre boa-fé e lealdade processual?
A complexa questão nos exigiria talvez um estudo específico sobre o tema em face das controvérsias doutrinárias a respeito. Contudo, restringimo-nos às ideias mais importantes.
O princípio da lealdade processual “(...) no dizer de ZANI, é desde as fontes (romanas) o sentimento normal e íntimo, o convencimento ‘della lealtà, onestà e giustizia del proprio comportamento, in vista della realizzazione del fine cui esso tende.’”[24]
Diferentemente, seguindo outra linha de pensamento, PONTES DE MIRANDA nos ensina que “Lealdade, por seu étimo, é legalidade”, mas que “(...) nem todas as leis são regras jurídicas.”[25] Quis lecionar que existem também as regras éticas, artísticas, os costumes, etc., e que o legislador, na redação do artigo 14, II, empregou o termo lealdade no sentido de sinceridade, fidelidade. Assim, consoante o digníssimo doutrinador, em relação à lealdade, “A expressão surgira, muito antes, para se aludir ao que era ‘lei’ sem ser regra jurídica, mas de lex vem de legare, como collega, legere (lei) e muitas outras palavras (...).”[26]
Embora a palavra lealdade tenha sua origem do latim “legalis”, segundo ARRUDA ALVIM, “(...) não é este o sentido usual nem o que se encontra no texto. O significado do texto é aquele que preceitua aos litigantes uma atividade processual honesta. A contrario sensu, o litigante não deverá utilizar-se de expedientes desonestos, desleais para obter ganho de causa (...).”[27]
O mesmo autor, mais adiante, afirma que “Lealdade é um paradigma ético, que informa a atividade, no sentido de o litigante agir de frente, sem chicanices, sem providências inesperadas, mesmo que tais providências sejam legítimas.”[28]
Já a boa-fé, como explica RUI STOCO, enquanto conceito ético-social incorporado ao Direito, contém dois sentidos: a) a boa-fé-lealdade; e b) a boa-fé-crença.[29]
A boa-fé-lealdade confunde-se com a percepção acima exposta, de lealdade propriamente dita, porquanto traduz-se pela “(...) honestidade, a lealdade e a probidade com a qual a pessoa condiciona o seu comportamento.”[30] Quanto à boa-fé-crença, segundo o preclaro jurista, traduzir-se-ia na “(...) convicção na pessoa de que se comporta conforme o Direito (GORPHE, 1929, p. 9).”[31]
A boa-fé-crença parece resumir-se ao que JUDITH MARTINS COSTA chama de boa-fé subjetiva:
A expressão boa-fé subjetiva denota estado de consciência ou convencimento individual de obrar em conformidade ao direito aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva justamente porque para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.[32]
E a boa-fé-lealdade tem a aparência de boa-fé objetiva, pelo que se denota das palavras da citada jurista:
Já por boa-fé objetiva se quer significar – segundo a conotação que adveio da intepretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países do common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjuntivo.[33] (grifamos).
Seja boa-fé-lealdade ou boa-fé objetiva, seja boa-fé-crença ou boa-fé subjetiva, o que realmente interessa, neste estudo, é que as expressões boa-fé e lealdade serão por nós empregadas como sinônimas, ora no sentido subjetivo (crença de que está se comportando de acordo com as regras de boa conduta), ora no sentido objetivo (lealdade, franqueza, honestidade, fidelidade, veracidade, urbanidade, prudência, etc.).
Isto, como ensina RUI STOCO, “(...) porque a lealdade é o nome da boa-fé. É a transparência e a sinceridade. Não se exterioriza apenas no princípio da lealdade processual, mas na lealdade com o dever de realizar o justo, com a pacificação social, com a harmonização.”[34]
4. Coerência na interpretação do princípio da lealdade processual
É indispensável coordenar os princípios dentro do ordenamento jurídico, sem absolutizá-los. Assim, não obstante se proíbam certas condutas, exigindo-se expressamente outras em conformidade com os princípios ora em exposição, não se está, por isso, a querer que as sujeitos fiquem cerceados ou limitados em seus argumentos, sejam estes de defesa ou de acusação, sob pena de estar impedindo o próprio exercício das atividades de advogados, membros do Ministério Público e outros operadores do direito. Não se pode olvidar que esses profissionais também estão acobertados, nos seus limites, pela imunidade penal, a fim de permitir que aqueles por quem lutam obtenham o melhor resultado na busca de suas pretensões.
Nesta linha de pensamento, OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, analisando o artigo 14 do Código, com razão, expõe: “A lealdade processual e a boa-fé, que informam os arts. 14 e 15, são, sem dúvida, princípios que devem nortear qualquer sistema processual, mas é necessário inseri-los no contexto do sistema, harmonizando-os com os demais princípios, sem pretender absolutizá-los.”[35]
Essa é a regra que deve ser seguida na interpretação de princípios de direito, em razão do caráter sistemático do ordenamento jurídico. Ou seja, é preciso conciliar o princípio da lealdade processual ou da boa-fé, do qual é corolário o dever de verdade, com o princípio, por exemplo, segundo o qual ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Na verdade, o sentido dos princípios é o que oportunamente lembra RUI PORTANOVA: “Não se trata de exigir ingenuamente que as partes ofereçam argumentos para que a outra parte triunfe. Trata-se de evitar que a vitória venha através de malícia, fraudes, espertezas, dolo, improbidade, embuste, artifícios, mentiras ou desonestidades.” [36]
LEVENHAGEN, comentando o artigo 14 do Código, também salienta:
A lealdade exigida pela lei, aos que litigam em juízo, restringe-se ao seu procedimento, à sua atuação em seu próprio benefício, para isso sendo-lhes permitido, inclusive, valerem-se de argumentos sagazes e habilidosos, desde que não ultrapassem os limites que o costume e a moral social estabelecem.[37]
Trata-se, pois, de princípios de proteção ao processo, porque, em juízo finalístico, processo é instrumento público de realização do Direito e da Justiça.
Embora a disposição contida no inciso II do art. 14 do CPC tenha natureza apenas programática, porquanto a violação ao dever legal de agir de boa-fé e com lealdade processual não enseja, por si só, sanção, o Código reprime as condutas maliciosas no processo, autorizando a reputar-se de má-fé aquele que se coaduna com as hipóteses previstas no art. 17 do CPC. “Ocorre, outrossim, violação do dever de lealdade em todo e qualquer ato inspirado na malícia ou má-fé (...).”[38]
Na verdade, os princípios da lealdade processual e da boa-fé são o fundamento da repressão à litigância de má-fé.
Esse é o entendimento de JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM, quando, acerca do artigo 17 do CPC, que define os atos que denotam a má-fé do litigante, argumenta que “O objetivo do preceito é prestigiar a lealdade processual e a boa-fé, pelo que, mesmo se o litigante de má-fé vencer a demanda, poderá ser condenado incidenter tantum, nessa condição (...).”[39]
Esta também é a percepção de ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, para quem “O princípio da lealdade e boa-fé, contido no inc. II do art. 14, envolve todas as hipóteses previstas e se relaciona também com o art. 17 que define o litigante de má-fé.”[40]
Assegura este ponto de vista ARRUDA ALVIM, segundo o qual o “O art. 14 impõe expressamente o dever de proceder com lealdade e boa-fé, no seu n. II, e qualquer comportamento que se identifique com as condutas descritas nas normas do art. 17, constituirá infração ao seu conteúdo.”[41]
Ainda, o mesmo preclaro processualista, mais adiante, ao explicar o princípio da lealdade, e relacionando-o com o da boa-fé:
A deslealdade poderá ser encontrada, também, na resistência injustificada ao andamento do processo (art. 17, n. V), no procedimento de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo (art. 17, n. VI), bem como no provocar incidentes manifestamente infundados (art. 17, n. VIII), formas ou maneiras de sua manifestação. Entretanto, se tais atos descritos em os ns. V, VI e VII constituem-se em expressões práticas da deslealdade, são objeto de responsabilidade, autonomamente. São, por outro lado, expressões práticas do descumprimento da boa-fé, porquanto o art. 17 define, precisamente, o que seja litigante de má-fé, a cuja hipótese subordinam-se os casos referidos.[42]
Reforça este entendimento MARCELO ABELHA RODRIGUES, citando ipsis litteris NELSON NERY JÚNIOR:
A inobservância do princípio da probidade (ou lealdade processual) faz com que o litigante de má-fé sofra penalidade processual, no sentido de indenizar a parte adversa dos prejuízos eventualmente experimentados em razão da prática do ato abusivo.[43]
Acrescenta-se, ainda, o magistério de ROGÉRIO LAURIA TUCCI, interpretando o artigo 14 do Código, com destaque para o seguinte trecho:
Como fácil fica de perceber, com a simples leitura dos respectivos enunciados, trata-se, aí, da necessidade de aperfeiçoamento do senso ético dos litigantes e de seus representantes judiciais, de sorte a instá-los, sob a ameaça de sanções, definidas nos subseqüentes arts. 16, 17 e 18, (...).[44]
Enfim, o princípio da boa-fé e lealdade processual assume, a partir da positivação no Código de Processo Civil, um papel fundamental na condução do processo judicial, não apenas como norte para as partes e todos aqueles que atuam em juízo, mas sobretudo ao Poder Judiciário, posto que a resolução dos conflitos seria inócua se vitória fosse permeada pelo sentimento de desonestidade.
[1] GRECCO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1987. v 1. p. 98.
[2] ALVIM, José Manoel Arruda. Código de Processo Civil Comentado. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. v. 1. p. 121.
[3] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1. p. 73.
[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Processo Civil Brasileiro: no liminar do século. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 46.
[5] Idem, ibidem.
[6] Mendonça Lima apud Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 46.
[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. I. p. 75.
[8] SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 40.
[9] PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 156.
[10] Idem, p. 157.
[11] PORTANOVA, Rui. op. cit.. p.156.
[12] SANTOS, Moacyr Amaral dos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 2. p. 80.
[13] Op. cit., p. 121.
[14] O Processo Civil Brasileiro: no liminar do século. p. 46.
[15] Op. cit. p. 109.
[16] LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Atlas, 1996. p. 42.
[17] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Brasília: Forense, 1973. Tomo I. p 365.
[18] Idem, ibidem.
[19] LOPES, João Batista. O Juiz e a Litigância de Má-Fé. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.° 740, p. 128-133, 1997. p. 129.
[20] STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-Fé Processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 113.
[21] Os exemplos são de Humberto Theodoro Júnior (O Processo Civil Brasileiro: no liminar do século, p. 46), para o princípio da probidade, que, num esforço analógico, transcrevemos para este artigo.
[22] ANDRIOLI apud HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 75.
[23] CELSO AGRÍCOLA BARBI apud HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, O Processo Civil..., p. 46.
[24] GINO ZANI apud ARRUDA ALVIM, op. cit., p. 122.
[25] Op. cit., p. 372.
[26] Ibidem.
[27] Op. cit., p. 129.
[28] Op. cit., p. 133.
[29] Op. cit., p. 38.
[30] Idem, ibidem.
[31] Idem ibidem.
[32] JUDITH MARTINS-COSTA apud RUI STOCO, op. cit., p. 39.
[33] JUDITH MARTINS-COSTA apud RUI STOCO, op. cit., p. 39/40.
[34] Op. cit., p. 53.
[35] Op. cit., p. 107.
[36] Op. cit., p. 1578
[37] Op. cit., p. 42.
[38] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. p. 75.
[39] ALVIM, José Eduardo Carreira. Código de Processo Civil Reformado.4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 35.
[40] Op. cit., p. 109.
[41] Op. cit., p. 120.
[42] Idem, ibidem.
[43] Op. cit., p. 74.
[44] TUCCI, Rogério Lauria. Temas e Problemas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 21.
Procurador Federal desde 2010, atualmente em exercício junto à Procuradoria-Seccional Federal de Caxias do Sul-RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALLEGARI, Artur Henrique. Princípio da lealdade e boa-fé no Código de Processo Civil brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41651/principio-da-lealdade-e-boa-fe-no-codigo-de-processo-civil-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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