RESUMO: Frederick Schauer apresenta um modelo de decisões baseado em regras. Para isso, defende que as regras devem ser aplicadas de forma enraizada, a despeito de criar situações sub e sobreincludentes. Ainda que preveja um sistema de adequação a essas situações, mas somente quando forem absurdamente insustentáveis – positivismo presuntivo – o autor entende que seu modelo pode ser aplicado até mesmo para os precedentes. A partir deste posicionamento, tenta-se neste estudo desconstruir esta ideia, mostrando-se quais as características de um e de outro modelo, não sendo plausível falar na subserviência do sistema de precedentes ao sistema de regras, porquanto são institutos distintos e isto implicaria um desvirtuamento.
PALAVRAS-CHAVE: Frederick Schauer; Regras; Precedentes; Crítica.
ABSTRACT: Frederick Schauer presents a model of rule-making based in rules. In order to do so he states that they should be applied in a rooted way, in spite of creating under and overinclusive situations. Even though he foresees a means of adequacy to these situations but only when absurdly unbearable – presumptive positivism – the author understands that his model could be applied even for the precedents model. Therefore, it is the goal of this study to deconstruct this idea, showing the characteristics of one and other rule-making models, not being plausible to discuss the underlying of the precedents system to the system of rules, because they are distinct and it would imply a distortion.
KEYWORDS: Frederick Schauer; Rules; Precedents; Critic.
1. INTRODUÇÃO
Precedentes e regras são instituto diferentes em sua essência. Apesar de apresentarem em comum o fato de serem a base da estruturação de um sistema de tomada de decisões, não podem ser confundidos, muito menos utilizados com balizas destinadas a um ou outro, como se indistintamente estas se aplicassem em qualquer hipótese.
Estes últimos, os precedentes, são generalizações construídas com base em decisões passadas, por meio de um método indutivo. Servirão como parâmetro para tomada de decisões posteriores em casos semelhantes. Aquelas, as regras, por sua vez, consistem em generalizações enraizadas formadas por um predicado fático e um predicado consequente, erigidas em razão de uma justificativa subjacente, a partir de um processo dedutivo.
Decisões baseadas em regras têm como principal argumento em seu favor, segundo Frederick Schauer[1] - teórico aqui criticado –, a aversão ao risco, considerando-se ser mais grave um erro decorrente da atuação indevida do agente do que uma decisão incorreta causada pela aplicação fiel da regra. Assim, Schauer considera preferível uma decisão errônea resultante da falta intrínseca de precisão da regra do que uma decisão equivocada originada da discricionariedade desmedida do agente, o que seria, em última análise, a própria arbitrariedade deste.
Schauer, ao desenvolver sua teoria acerca do sistema de tomada de decisões, considera os precedentes como regras na medida em que defende que eles devem ser aplicados, mesmo que o resultado contrarie a sua justificativa (experiência recalcitrante).
Todavia, sua tese a respeito das regras e, por conseguinte, dos precedentes, não merece guarida no sistema jurídico brasileiro. Primeiro, porque sua teoria advém de um isolamento analítico e dotado de um excessivo formalismo, que pode esconder preconceitos e fomentar evasões às regras sob o ponto de vista técnico.
Em segundo, porque se baseia em conceitos abstratos, desconsiderando o contexto em que eles estão inseridos, afastando a interpretação do caso concreto, que é inexorável à aplicação das regras; e, por fim, porque cinde de forma vital a relação existente entre a regra e a sua justificativa, o que, na maioria das vezes, acarreta decisões injustas. Ademais, as regras não acompanham as variações factuais a fim de se adequarem às novas situações que se apresentam, quedando-se ultrapassadas com o tempo.
Com o objetivo de tratar minuciosamente das vantagens e desvantagens das regras e dos precedentes, o presente artigo foi dividido nas seguintes seções: primeiramente, abordar-se-ão as características das regras, sua estrutura, a textura aberta das mesmas e as decisões tomadas diante de experiências recalcitrantes; em seguida, serão tratados os precedentes e a teoria de Schauer em favor da aplicação dos precedentes como regras; mais adiante, analisar-se-á criticamente a aplicação dos precedentes como normas prescritivas imperativas e o consequente desvirtuamento do instituto dos precedentes, caso assim se proceda.
Por último, criticar-se-á a forma como o Supremo Tribunal Federal vem se valendo em alguns momentos da teoria de Schauer em seus julgamentos, a despeito de serem precedentes; tomando decisões com aplicabilidade como sinônimo de regras, o que não se adequa ao sistema jurídico brasileiro, haja vista que, não obstante ele não consistir mais um sistema puro de civil law, também não possui institutos específicos do sistema de common law, que seriam necessários para reduzir os erros decorrentes da aplicação dos precedentes como regras, tais como o overruling e o distinguishing.
Desse modo, não se pretende argumentar a favor de decisões casuísticas ou contra decisões fundamentadas em precedentes, e nem mesmo contra as regras, mas somente alertar para os casos, cada vez mais frequentes no ordenamento jurídico pátrio, em que se decide com base em precedentes como se estes fossem regras inflexíveis e imunes às peculiaridades do caso concreto, o que vai de encontro aos ideais de justiça e de equidade inerentes ao Estado Democrático de Direito, como o é o Estado brasileiro.
2. DECISÕES TOMADAS COM BASE EM REGRAS – ARGUMENTOS APRESENTADOS POR FREDERICK SCHAUER
Conceitual e didaticamente, pode-se dizer que há, em princípio, dois modelos contrapostos quanto à tomada de decisões. Um, o da conversação ou argumentação, e outro, o das regras. Aquele concerne ao próprio diálogo, um sistema utilizado na rotina diária, ou mesmo para situações que exigem adaptabilidade, pois se vale de predicados fluidos (normas descritivas), passíveis de serem alterados em conformidade com a situação que se apresenta. O modelo das regras, por outro lado, trabalha com normas prescritivas, normas que por essência – decorrente da autoridade com que foram determinadas, e mesmo em virtude da função que exercem (pacificação e regulamentação social) – são rígidas e devem ser obedecidas, a despeito do resultado que venham a produzir, pois elas seriam normas postas para serem observadas e assim conduzirem a um estado de ordem, por garantirem a concreção da isonomia, tratando a todos de forma igual.
Para Frederick Schauer[2], as regras são generalizações, sejam elas regras descritivas ou prescritivas[3], pois se baseiam tanto em inclusões como exclusões seletivas, na medida em que se concentram em um número limitado de propriedades. Há, assim, um isolamento das propriedades escolhidas de acordo com sua relevância para certas pessoas e para determinados propósitos em um dado momento.
As regras[4] possuem em sua estrutura um predicado fático e um consequente, de modo que, caso ocorra o predicado fático (generalização construída com base em probabilidades e fundamentada em uma justificativa), ocorrerá automaticamente o resultado (consequente).
Contudo, por se tratar de probabilidades – lembrando que o predicado fático de uma regra representa uma generalização probabilística –, é possível que haja duas situações díspares e contrastantes, quais sejam: situações sub e sobreincludentes, mas ambas resultantes do mesmo fenômeno: a generalização.
Desta forma, é possível observar, de um lado, que no predicado fático serão inclusos elementos que, em casos particulares, não produzem a consequência que representa a justificativa da regra (sobreinclusão). De outro, que este mesmo predicado fático não abrange propriedades que podem causar o resultado que justifica a regra (subinclusão). Estas situações em que o resultado da aplicação da regra contraria sua justificativa são chamadas por Schauer de experiências recalcitrantes[5].
Acrescente-se, ainda, que as experiências recalcitrantes podem ser visualizadas tanto no presente, pois decorrem da própria relação de generalização do predicado fático da regra com a sua justificação, como no futuro, haja vista que as regras possuem uma textura aberta.
Esta denominada textura aberta[6] quer dizer, de forma simplificada, que até a mais precisa das regras é potencialmente imprecisa. Considerando-se a falibilidade e a limitação humanas, os termos outrora precisos e certos tendem a tornar-se imprecisos e vagos, até mesmo por não mais serem correspondentes à atualidade, gerando as situações subótimas aqui tratadas, em virtude da mudança de visão de mundo e, por conseguinte, da nova interpretação de que se faz dos termos dispostos em um dispositivo legal, apesar de serem literalmente os mesmos.
Dessa forma, conclui-se que as experiências recalcitrantes podem ser atuais ou potenciais. Entretanto, de acordo com Schauer, o resultado sempre prevalecerá em detrimento da justificativa das regras, sob pena de se incorrer em decisões particularistas – situação não defendida pelo autor, que prefere valer-se de um sistema rígido, evitando os erros decorrentes de ações humanas, que reputa serem muito mais arbitrários e injustos.
Outrossim, ele entende que, para a tomada de decisões baseadas em regras, é necessário considerar as generalizações que constituem o predicado fático das regras como enraizadas, ou seja, imune a variações fáticas e de compreensão do mundo.
Importa destacar, contudo, que este enraizamento das generalizações impede que as regras sejam continuamente adaptáveis às circunstâncias fáticas. Então, as decisões baseadas em regras são tomadas em favor do resultado indicado pela generalização, o que nem sempre corresponde à realidade.
O modelo do enraizamento não permite a revisão do predicado fático no momento da aplicação da regra. Ainda que se esteja diante de uma experiência recalcitrante, isso se torna inviável, pois o resultado sempre deve prevalecer sobre a justificativa quando em conflito com ela, tudo em virtude da autoridade da regra, que deve prevalecer, sobretudo, para evitarem-se erros decorrentes de arbitrariedades humanas.
O outro modelo, o da conversação – acima citado – utilizado como contraponto para este modelo das regras, ao contrário daquele até aqui analisado, toma como preponderante a justificativa em detrimento do resultado. A generalização funciona apenas como um indicador, portanto, maleável e flexível de acordo com a justificativa da regra e consequentemente mais ajustável à realidade.
Em outras palavras, é a experiência recalcitrante que permite dizer que se está tomando uma decisão baseada em regras, pois, quando se baseia nelas, o resultado sempre prevalecerá sobre a justificativa da regra quando estiver em oposição com esta, afastando-se completamente os argumentos morais e políticos na aplicação da regra, contrariamente ao que ocorre no modelo da conversação.
Schauer, defendendo seu ponto de vista, levanta algumas razões para que seu modelo de regras seja seguido. São elas: a equidade; a confiança; a eficiência; a estabilidade e a aversão ao risco.
A equidade está ligada à justiça ao tratar igualmente casos semelhantes. Uma norma entrincheirada seria a garantia de ser aplicada indistintamente a todos, em todos os casos que se apresentassem a mesma forma.
Por sua vez, a confiança estaria atrelada a concepção de certeza. Ela implicaria uma interpretação da regra com previsibilidade dos resultados, o que permitiria o jurisdicionado gozar de maior “certeza jurídica” em relação às situações que vivesse sob o manto da legalidade (ou mesmo da ilegalidade, antevendo sua punição).
Uma decisão “pronta”, baseada numa norma já posta e prevista, efetivadora da isonomia, permitiria maior celeridade na tomada de decisões em um curto espaço de tempo: esta é a fundamentação para o argumento da eficiência do sistema das regras.
A estabilidade[7] permitiria um grau de pacificação social, que, em última análise, seria o fim último do Direito. De fato, tal atributo só seria alcançado mediante a renúncia a um grau maior de flexibilidade, entretanto, esta seria um encargo a ser discutido internamente no sistema, que – para Schauer – configura um peso a ser suportado, em virtude do propósito a que está submetido um sistema de decisões baseado em regras: garantir a isonomia mediante o afastamento da possibilidade de erros decorrentes da arbitrariedade humana.
É neste sentido que trata a questão da aversão ao risco. Ora, em um modelo pautado pela estabilidade e pela eficiência, outro requisito não se poderia estabelecer senão este. Para o referido autor, a sociedade não teria tendências de se arriscar em erros arbitrários decorrentes de julgamentos humanos, preferindo, ao contrário, valer-se de um sistema concatenado e bem estratificado, permitindo-lhe certa previsibilidade dos resultados e garantindo estabilidade.
Schauer defende a tomada de decisões baseadas em regras, apesar de admitir que suas razões apresentam certos defeitos, a exemplo da equidade, em que ele próprio reconhece que seria insuficiente para justificar uma decisão baseada em regras, pois somente as decisões particularistas irão tratar os casos substancialmente relevantes de maneira semelhante; ou mesmo da confiança e da eficiência, que são argumentos, por sua essência, contextuais, ou seja, dependentes de um futuro cambiante, da identidade dos juízes, da natureza da decisão e dos interesses das pessoas afetadas pela decisão.
Conforme se pode depreender, Schauer entende que vale a pena tolerar alguns resultados errôneos em função da aversão ao risco que as regras impõem, pois é preferível um erro intrínseco da própria regra a um erro do agente, que se encontra diante de maiores variáveis e, por conseguinte, de maiores riscos. Melhor dizendo: há o erro proveniente da falta de precisão das regras, mesmo quando se aplicam fielmente as regras às hipóteses previstas nelas, tendo em vista que a vida é probabilística, fluida e mutante e as regras não acompanham essas mudanças; e o erro do agente, que, diante da liberdade de tomar decisões ao ponderar todos os fatores relevantes de uma situação concreta, pode cometer equívocos ao aplicar diretamente a justificativa da regra ao caso que tem que decidir.
Ademais, o erro do agente ocasiona mais culpa individual do que o erro de quem invoca as regras, pois a culpa deste pode ser atribuída, pelo menos, em parte ao legislador, enquanto o agente que viola as regras não tem com quem repartir a culpa do erro, assumindo todo o risco e toda a responsabilidade por eventual violação de direitos.
Vale ressaltar, por fim, a afirmativa de Schauer de que a tomada de decisões baseadas em regras é uma forma de aplicação da teoria do segundo melhor, tendo em vista que o particularismo seria a melhor opção caso todos os agentes fossem sábios, porém, diante da realidade, é melhor adotar a segunda melhor opção, que é justamente a decisão baseadas em regras.
Em outras palavras, é preferível o equívoco daquele que segue as regras do que o erro decorrente do agente que quebra as regras em nome da um juízo mais justo e fundamentado na equidade, pois os erros cometidos pelos agentes são mais graves e, infelizmente, mais prováveis (capacidade humana x falibilidade humana x variáveis extrínsecas) que os erros decorrentes da falência intrínseca das regras.
3. PRECEDENTES COMO REGRAS PRESCRITIVAS SEGUNDO SCHAUER
Tradicionalmente, o sistema de common law, presente nos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália – não obstante não se encontrar de forma pura nestes países e nem se restringir somente a eles – caracteriza-se pela tomada de decisões fundadas em princípios jurídicos retirados de decisões anteriores, sendo uma das decisões prévias a justificativa da decisão presente[8].
Assim, embora não haja regras positivadas em um texto codificado, à medida que são julgados casos semelhantes, naturalmente as razões de decidir se repetem e são consolidados princípios jurídicos gerais, que possuem a aparência de regra. Todavia, o juiz, ao julgar um caso concreto, pode modificar a “regra” das decisões passadas, se considerar que ela vai de encontro à sua justificativa, ou por razões políticas ou mesmo morais, o que elide o caráter prescritivo inerente às regras.
Desse modo, a característica de ausência de codificação no sistema do common law implica a maleabilidade das regras no momento de sua aplicação e, por conseguinte, lhe retira o poder de restrição. Por isso, diz-se que as regras do common law são descritivas, e não prescritivas, porquanto funcionam meramente como diretrizes, podendo ser modificadas e inclusive descartadas no momento de sua aplicação.
Além disso, o sistema de common law tem como principal instituto o precedente, que consiste em uma generalização, originada de decisões anteriores ou mesmo de uma única decisão, que pode ser aplicada a um caso atual se for constatada a similitude fática do caso sob análise com aquele do passado. Neste sentido, Michele Taruffo[9] afirma:
O precedente fornece uma regra (universalizável, como já foi dito) que pode ser aplicada como critério de decisão no caso subsequente em função da identidade ou – como acontece na lei – pela analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente a analogia dos dois casos fáticos (caso concreto) não é dada in re ipsa, e é confirmada ou excluída pelo Juiz do caso subseqüente, dependendo se ele considera prevalente os elementos de identidade ou os elementos de diferença entre os fatos dos dois casos. É, portanto, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o precedente, em seguida – por assim dizer – “cria” o precedente.
Vê-se, portanto, que o precedente é uma regra descritiva, que, a depender das circunstâncias fáticas do caso presente, pode ser aplicado ou não. Em outras palavras, o precedente é presumidamente vinculante[10].
Corroboram este entendimento os institutos do overruling e do distinguishing, ambos típicos do common law.
O primeiro pode ser visualizado quando o tribunal que firmou o precedente abandona-o em um julgamento futuro, em virtude de uma superação de entendimento, adotando-se outro, reputado melhor aplicado em consonância com as circunstâncias apresentadas.
O segundo, por sua vez, materializa-se quando qualquer tribunal, diante de uma circunstância essencial que caracterize o caso atual como distinto do anterior, deixa de aplicá-lo. Para tanto, é necessária uma análise minuciosa das circunstâncias fáticas do caso que deu origem ao precedente, o que somente o julgado na íntegra possibilita, a fim de confrontá-lo com as peculiaridades do caso atual. Ademais não se aplica também o precedente ultrapassado pelo tempo ou aquele cuja incidência provocaria uma decisão absurda ou manifestamente injusta.
Note-se, assim, que mesmo no sistema de common law, no qual o precedente possui maior autoridade e eficácia, não há uma vinculação absoluta entre ele e os casos subsequentes, senão uma presunção de vinculação.
Em síntese, o sistema do common law caracteriza-se pela tomada de decisões de acordo com as suas motivações, suas fundamentações. Ou seja, fundamenta-se em regras de experiência, que não possuem nem a autoridade nem o poder de restrição próprios das regras prescritivas. Ademais, sacrifica-se os argumentos de confiança, de eficiência e de estabilidade, mencionados no tópico anterior, em nome da aplicação das justificativas subjacentes a regra, o que confere, outrossim, grande margem de discricionariedade ao poder decisório dos juízes, que podem inclusive rever ou afastar os precedentes.
Consequentemente, as “regras” do common law não são nem sub nem sobreincludentes, pois as falhas decorrentes da contrariedade do resultado com a justificativa das regras são solucionadas no momento de sua aplicação, dado o caráter descritivo própria das regras de experiência deste sistema.
O sistema jurídico dos países romano-germânicos – o civil law – por outro lado, caracteriza-se, em apertada síntese, pela codificação de suas leis e pelo positivismo e, consequentemente, pela observância cega às suas leis, se considerado nos moldes tradicionais. Tal característica implica também que as suas regras são prescritivas, pois devem ser observadas por todos, tendo em vista que a flexibilização das regras não é algo próprio deste sistema[11].
Não obstante todas as considerações tecidas acima sobre o sistema do common law tal como ele é tradicionalmente conhecido, Frederick Schauer afirma que, na prática, as regras do common law são prescritivas, pois elas se tornam enraizadas a partir das interpretações realizadas no momento de sua aplicação, que tendem a lhes conferir não uma força conclusiva, mas presuntiva.
Observa-se, ainda, que o enraizamento das regras no common law é mais visível quando se analisam decisões preexistentes de casos semelhantes, sendo a mera vontade do julgador de aplicar de forma diferenciada as regras passadas ao caso presente insuficiente, por si só, para sua modificação.
Esse enraizamento das regras dentro do sistema de common law, segundo Schauer, apoia-se substancialmente na idéia dos precedentes, que visam fortalecer os valores da estabilidade e da previsibilidade dos resultados, uma vez que, para ele, as decisões judiciais anteriores funcionarão como regras em si mesmas, e não como meio para a criação de regras (aproximação da corrente estrita).
Instituto típico de regimes jurídicos que adotam a common law, o precedente consiste em uma generalização construída com base em acontecimentos do passado, com projeção para o futuro, ressalvadas as devidas peculiaridades em cada caso concreto.
Todavia, Schauer ressalta que nem sempre a invocação ao passado implica que se está decidindo por meio de precedentes, pois as experiências do passado podem servir apenas de parâmetro para as decisões do presente, sem o poder de vinculá-las (regras de experiência).
Afirma, ainda, Schauer que os argumentos em favor dos precedentes em muito se assemelham às razões em favor da aplicação das regras.
Neste diapasão, faz-se imprescindível distinguir os argumentos da experiência dos argumentos do precedente, sob a ótica de Frederick Schauer.
Para ele, as decisões baseadas na experiência levam em conta o caso no presente, tendo os fatos e as conclusões do passado relevância somente se afeitas às peculiaridades do caso presente, isto é, se a decisão tomada no passado for considerada incorreta para o caso atual, a experiência que lhe deu ensejo será rechaçada e se decidirá de maneira distinta da decisão anterior. Por outro lado, a decisão fundamentada em precedentes independe da constatação de que a decisão tomada no passado foi errônea, pois o simples fato de se ter decidido algo anteriormente confere ao precedente autoridade quando da tomada de decisão no presente.
Portanto, os argumentos da experiência referem-se a precedentes persuasivos, pois se ajustam ao presente e correspondem a generalizações não enraizadas, enquanto que as decisões tomadas por um argumento baseado em precedentes relacionam-se com os precedentes vinculantes, que são, por sua vez, generalizações enraizadas. Destarte, estes precedentes aplicam-se independentemente das circunstâncias fáticas do presente, seja a decisão prévia correta ou não.
Os precedentes vinculantes podem, assim, ser equiparados às regras, pois também consistem em generalizações enraizadas e reconhece-se sua força vinculante diante de uma experiência recalcitrante.
Dessa forma, percebe-se que, para Schauer, um argumento baseado em precedentes (vinculantes) funciona como um argumento baseado em regras, haja vista que o argumento baseado em precedentes lhe confere um peso independente do resultado atual ser semelhante ou não ao do passado, priorizando o resultado em detrimento da justificativa da decisão anterior. Em suma, o argumento baseado em precedentes é um argumento baseado na autoridade que lhe é própria, independente da experiência, assim como ocorre com as regras.
Contudo, Schauer aponta como diferença significativa entre a decisão baseada em regras da decisão tomada com base nos precedentes, que naquela a generalização do predicado fático já existe expressamente no enunciado normativo, ao passo que, nesta última, a generalização será construída, pelo segundo tribunal, a partir da motivação da decisão anterior dada pelo primeiro tribunal.
Por fim, deve-se destacar que há limites à liberdade do segundo tribunal quando da criação de precedentes: caso a descrição dos fatos, pelo tribunal precedente, constitua parte do precedente, ela vinculará os demais tribunais, e, para isso, deve haver uma generalização desta descrição; a ratio decidendi da decisão prévia também vincula o intérprete e deve corresponder igualmente a uma generalização; e as categorias (generalizações) utilizadas por um tribunal constituem o predicado fático de uma regra potencialmente vinculante.
Tal visão de Frederik Schauer dos precedentes como regras não é uníssona e seus críticos[12] apontam como falhas de sua teoria, especialmente: o seu excesso de formalismo e o isolamento analítico a que recorreu ao estudar as regras; a utilização de categorias “acontextuais”, contrariando o fato de os sentidos das palavras serem plurívocos e dependerem necessariamente do contexto em que estão inseridos; e o fato de Schauer ter feito uma cisão entre a regra e a sua justificativa, quando, na verdade, o sentido de uma regra é reforçado quando ela vai ao encontro de sua justificativa.
Aplicar os precedentes como regras, da forma como entende Schauer, seria uma verdadeira aberração jurídica, uma afronta às regras específicas tanto do civil law quanto do sistema do common law. Este último sistema – o anglo-saxão – caracteriza-se fundamentalmente pela flexibilidade de suas decisões judiciais, funcionando as regras meramente como guias temporárias e, por conseguinte, com natureza descritiva, e não prescritiva, como pretende o autor aqui debatido.
4. CRÍTICA À APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES COMO NORMAS PRESCRITIVAS
Importa destacar que as formas de lógica e raciocínio no Direito são as mesmas de qualquer outro campo de estudo, entretanto, existem variáveis a serem consideradas, em virtude de sua influência direta na vida prática, que implicam um processo de tomada de decisões mais complexo e revestido de certas formalidades.
A forma de tomada de decisões aqui trabalhada – e criticada – é aquela apontada por Frederick Schauer[13], que defende serem elas aplicadas como normas prescritivas. Em outras palavras, Schauer entende que um processo de tomada de decisões deve levar em conta as regras a serem aplicadas ao caso concreto, sendo estas compreendidas como generalizações prescritivas, não admitindo exceções, ainda que gerem, na prática, situações “subinclusivas” ou “sobre-inclusivas”.
A despeito do “positivismo presuntivo” de que Schauer se vale para flexibilizar sua teoria, por aceitar haver cessação da força vinculante das regras frente a casos de patente inaceitabilidade da aplicação arbitrária da regra por razões morais, políticas ou mesmo relativas ao custo de sua aplicação; ainda assim persistem as situações acima mencionadas de sobre ou sub-inclusão para a maioria dos casos, pois nem sempre se reputaria a tal “inaceitabilidade” justificadora da flexibilização.
A crítica aqui realizada vai além da teoria para as regras. A discussão deste estudo centra-se no fato de que o referido autor a estende aos precedentes, que seriam também utilizados como regras prescritivas.
A diferença fundamental entre o procedimento de tomada de decisões baseada em precedentes daquele baseado em regras é justamente o fato de aquele carecer de construir a generalização (ou predicado fático) que já existe neste último.
A despeito disso, Schauer aponta que são semelhantes a partir do momento em que os precedentes não são apenas os eventos prévios e a decisão, mas também lhes faz parte a descrição feita pelo tribunal anterior. Uma vez que essa descrição se incorpora ao precedente, o argumento se torna semelhante àquele baseado em regras.
Todavia, é de extrema relevância apontar que precedentes valem-se, em princípio, de uma técnica diametralmente oposta à das regras, qual seja, o método indutivo, pelo qual se toma por base um caso particular para a construção de um entendimento geral.
Além disso, os precedentes, na sua forma original, comportam adaptações à situação concreta que se apresenta, em virtude de lhes ser relevante não a igualdade entre os casos, mas a semelhança entre eles, cabendo ao intérprete avaliar qual a melhor solução e adequação para o que lhe seja apresentado, tendo por baliza aquele precedente já existente.
Utilizar os precedentes como regras (normas prescritivas) de acordo com o que Schauer defende, enseja, conforme apontado alhures, o enraizamento de certos temas, o que no caso dos precedentes torna-se mais complexo, pois a própria ratio decidendi (a fundamentação) estaria a ser estratificada no tempo e espaço.
Nesse momento da análise, cabe apontar o questionamento levantado por Cass Sunstein[14] sobre o sistema de regras. Entendendo o autor que as regras operam como generalizações de médio ou baixo nível estabelecendo todos os casos antecipadamente, ele questiona se seriam praticamente aplicáveis (factíveis) e se seriam redundantes.
As conclusões do referido autor foram partilhadas pelas autoras, o que explica a crítica apresentada.
Primeiramente, quanto à factibilidade, Sunstein afirma que regras são difíceis de serem rigorosamente seguidas porque a interpretação e polissemia inerente a essa atividade têm por base desentendimentos quanto à própria substância do argumento. Trata-se, desta forma, de desentendimentos substanciais (morais e políticos), não meramente semânticos.
A partir desse pressuposto, uma vez formulada uma exceção, certo grau de casuísmo faz-se necessário e, nesse aspecto, a justificação adquire maior relevo.
Ora, isto vai de encontro ao modelo defendido por Schauer, uma vez que se as normas a serem aplicadas se confundem com seus fundamentos, distanciando-se dos standards que geralmente orientam as regras, não se pode falar em regras efetivamente no sentido de prescrição. E esta situação se faz presente sempre, uma vez que não há como prever todos os casos a serem submetidos à subordinação legal.
Ademais, no que tange ao segundo questionamento, quanto à redundância das regras, pode-se concluir que julgamentos individualizados e não submetidos a balizas estratificadas como as regras são mais justos do que seus opostos.
Regras, conforme já apontado, não se adequam totalmente a todas as situações fáticas que podem vir a ser submetidas à conformidade com o ordenamento, o que as tornam objetos fáceis de serem ultrapassados, já que não são flexíveis o suficiente para se adequarem à realidade social.
Não se pode olvidar que, pelo fato de regras serem abstratas e genéricas, elas acabam por segregar indivíduos que não se amoldam àquela determinada generalização ou abstração, deixando-os desassistidos e fazendo com que a diferença não seja tutelada.
Ademais destes pontos negativos em relação às regras, importa destacar que elas também ensejam redução da discricionariedade com tendências à prática de injustiças; condutas errôneas, pelo simples fato de não estarem tuteladas sob o manto da ilegalidade pela falta de acuidade de prever todas as circunstâncias fáticas; irregularidades por procedimento; efeitos psicológicos indesejados quanto aos jurisdicionados e quanto aos próprios julgadores – que se sentem despidos de poder para efetivamente dar uma solução equânime às lides que lhes são apresentadas.
Por fim, Sunstein afirma que o “bom julgamento” ultrapassa as “boas regras”, em especial porque as regras têm maior tendência de serem mal utilizadas por divergirem dos argumentos que lhes justificam, já que estes são enraizados e aplicados de forma única, a despeito de situações diferentes, muito embora semelhantes.
O cerne da crítica aqui tecida cinge-se ao desvirtuamento do instituto dos precedentes, caso utilizados como regras, de acordo com o que entende Schauer.
Oriundos do sistema anglo-saxão, os precedentes são típicos de sistemas de common law, em que não há um ordenamento positivo legal muito extenso e regulamentador de todas as situações da vida.
Pelo contrário, existem balizas a serem observadas, mas subsiste um poder discricionário do julgador, para justamente adequar às situações fáticas “novas” as balizas já existentes, de forma a que cada situação receba um tratamento particularizado e justo, de acordo com suas peculiaridades específicas.
Neste ínterim, os precedentes – decisões proferidas anteriormente pelos órgãos judiciários – adquirem uma força vinculante, mas não quanto à norma geral obtida pelo processo indutivo, senão a própria justificativa que lhe deu origem.
Essa força vinculante, de qualquer sorte, não se encontra totalmente petrificada, exatamente porque muito dificilmente haverá casos totalmente iguais, senão bastante semelhantes.
Desta forma, precedentes utilizados como regras implicariam o enraizamento das próprias fundamentações, não admitindo que novas pudessem vir a surgir, distanciando-se da realidade e, consequentemente, da adequação normativa ao caso concreto e da própria concepção de justiça.
Um sistema de formulação de decisões baseado em regras tem como principal objetivo evitar que haja erros humanos, limitando a atuação do julgador, que se encontra restrito à sua atuação em conformidade com o ordenamento vigente e válido.
Um sistema baseado em precedentes, por outro lado, parte do pressuposto de que os erros a serem criados pelo sistema são muito piores de serem enfrentados do que aqueles decorrentes de erros humanos.
Ambos têm suas vantagens e desvantagens e o foco deste estudo não é o de salientar qual o melhor entre ambos, mas tão-somente o de destacar que não pode haver desvirtuamento deles.
Precedentes devem ser utilizados enquanto tal, porquanto têm uma lógica própria de ser, priorizando a adequação e a equidade do sistema de decisão. Falar em aplicá-los como regras faz perecer sua própria essência, qual seja, a de permitir a flexibilidade dos julgados, adequando-os às especificidades de cada caso apresentado e das circunstâncias probatórias disponíveis.
5. CRÍTICA À FORMA COMO OS PRECEDENTES VÊM SENDO UTILIZADO NO BRASIL NAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – DESVIRTUAMENTO DO INSTITUTO
Como largamente ensinado, o Brasil adotou – em princípio – um sistema jurídico baseado no civil law[15]. E, em termos de controle de constitucionalidade, adotou o sistema concentrado – apenas a Corte Constitucional (STF) teria o condão de se pronunciar em definitivo sobre a constitucionalidade das leis –, apesar de admitir o controle difuso – toda e qualquer corte no país reveste-se do poder de analisar a constitucionalidade, porquanto é um poder ínsito à jurisdição – com a ressalva da definitividade do pronunciamento do STF.
Diz-se aqui “em princípio” porque, na última década, pelo menos, tem havido mudanças no que tange aos métodos utilizados pelo sistema, em especial no que se refere ao controle de constitucionalidade, fazendo crer que se estaria a observar uma mutação, o que se convém denominar “sistema de cunho plural”.
Nesse sentido, cita-se o professor Antônio Maués[16] quando discorre sobre os modernos sistemas de controle de constitucionalidade, apontando não ser suficiente falar em um sistema híbrido ou misto, por ser demasiadamente genérico, e a partir disso propõe uma classificação mais específica[17].
A despeito do sistema adotado pelo país, as normas balizadoras de sua aplicação não têm sido congruentes, gerando incertezas e conflitos procedimentais e mesmo substantivos quanto às decisões proferidas.
Exemplo disso é a recente[18] decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em sede de HC (nº 109269). No caso em questão, a Suprema Corte frisou a tipificação do art. 306, do CTB para a direção sob efeitos de substância embriagante, acrescendo que persistiria a conduta criminosa ainda que não houvesse perigo a terceiros.
Importa destacar aqui que não se pretende discutir o mérito da decisão (tipificação de um perigo abstrato), nem mesmo a corretude da decisão (possibilidade ou não de o STF tipificar crime), mas tão-somente a sua aplicação.
Trata-se claramente de um precedente – uma decisão proferida por tribunal, quando mais pela própria Corte Constitucional – e que parte de um caso concreto analisado. Entretanto, foi determinado que se estendesse de forma indiscriminada a todos os demais casos semelhantes, assim como uma regra.
A despeito de não se estar aqui a realizar uma apologia à direção embriagada – muito pelo contrário – importa destacar que algumas situações não serão perfeitamente regidas por tal extensão do “precedente-regra”, criando situações sub e sobre-inclusivas, a exemplo de alguém embriagado estar em fuga em seu veículo por ser perseguido após saída de festa noturna[19].
Não obstante seja possível um sistema plural e que se adeque à realidade conjuntural de cada Estado, “importar” institutos de outros sistemas e utilizá-los indistintamente sem observância de suas regras próprias é desvirtuar os institutos.
Há diferenças no tratamento dos precedentes entre sistemas de common e civil law, e o Brasil, adotando o segundo, mas tentando valer-se de mecanismos do primeiro acaba cometendo desvirtuamentos dos institutos próprios.
Entre essas diferenças, destaca-se o fato de que em países civilistas ratio decidendi e obter dicta não são trabalhadas de forma tão atenta e detalhada; além disso, existe pouca liberdade das cortes menores de trabalharem com precedentes das cortes maiores ou até mesmo partir de um único precedente, porquanto geralmente submetidas à hierarquia das cortes superiores, ficando sem muita discricionariedade.
Em suma, são sistemas diferentes, com graus de liberdade diversos e metodologias diversas.
O fato de o Brasil valer-se de institutos jurídicos do common law não é proibido, mas que o seja de forma adequada aos princípios e normativas próprios, ainda mais no processo de decisão sobre a constitucionalidade das leis.
Os exemplos aqui expostos demonstram certa tendência em aplicar as decisões precedentes da mesma forma que as regras, estendendo-as indistintamente a todas as situações semelhantes.
Essa é uma incongruência da “importação” do instituto e àquela em relação à qual se tece a crítica aqui desenvolvida.
Países de common law apresentam mecanismos para suprir as inadequações da aplicação normativa. Exemplos são o overruling e o distinguishing.
No primeiro, há uma superação dos precedentes firmados. A corte apresenta margem de liberdade de atuação no sentido de observar se alguma hipótese se apresenta suficiente e necessária para tal atuação, decorrente de uma preferência ideológica (moral e política), limitada pela lei e pela separação de poderes, o que impede a arbitrariedade.
O distinguishing, por sua vez, implica o afastamento do precedente em razão de uma circunstância fundamental que o diferencia do caso anterior. Não há, portanto, a invalidade da norma a ser aplicada (precedente, regra), mas apenas sua não aplicação a determinado caso, em virtude de uma razão forte o suficiente que não lhe legitime a utilização.
Tais mecanismos aqui apontados não são eficazmente utilizados pelo sistema brasileiro, que apresenta um sistema rígido, com pouca possibilidade de afastamento das regras.
E um caso notório desta situação é a súmula vinculante. Prevista no art. 103-A, da CF/88, regulamentada pela lei 11.417/06, trata-se de um instituto que enraíza o precedente judicial de que trata.
Muitas vezes, a própria súmula vinculante já traz, em seu bojo, uma situação de distinguishing, enraizando ainda mais o entendimento, restringindo as hipóteses de afastamento àqueles casos específicos já previstos, como ocorre com a súmula vinculante de número 3[20], ou em uma tentativa de prever todos os casos a que se aplica, vale-se de vocábulos como “inclusive”, “desde que”, enraizando, a contrário senso, as hipóteses positivamente alcançadas, como nas súmulas de número 27[21] e 29[22].
Outros casos que exemplificam a situação são as regras aplicáveis aos julgamentos dos recursos repetitivos, em face da Fazenda Pública como ré; e àquelas atinentes ao pedido de suspensão, quando determina o Código de Processo Civil brasileiro que é possível a extensão da decisão que suspende a segurança concedida a todos os demais pleitos posteriores. Explica-se.
Demandas em massa é uma característica da atualidade, da “sociedade de massa”. Isso gera uma recorribilidade massiva à justiça para a solução de litígios que, legalmente analisados, são idênticos. Dispõe o art. 285-A, do CPC, que pode ser aplicada sentença de total improcedência quando houver controvérsia apenas de direito e em outros casos idênticos já houver sido proferida sentença igualmente de total improcedência, sendo possível a reprodução do teor desta.
A despeito da celeridade e da certeza jurídica, em virtude da previsibilidade da decisão, não é possível deixar de lado os componentes fáticos que subsidiam as questões apresentadas perante o judiciário. Neste sentido é possível citar o caso Mcloughlin[23], no qual a Suprema Corte norte-americana considerou que as variáveis fáticas do caso apresentado eram relevantes o suficiente para modificarem o entendimento nas primeiras instâncias.
Ainda arrematou sua decisão não utilizando precedente anteriormente afastado em instância inferior para o referido caso de que ensejaria a possibilidade de demanda em massa referente ao mesmo assunto. Aduziu a Suprema Corte que esse mero temor jurídico não era fundamentação válida para não conceder o direito de um jurisdicionado.
Quanto ao pedido de suspensão supracitado, aponta-se o texto do §8º, art. 4º, da lei 8.437/92[24], bem como o §5º, do art. 15, da lei 12.016/09[25].
Tais normas, também ligadas a demandas repetitivas, permitem que uma única decisão, proferida pelo presidente do tribunal, suspenda simultaneamente várias liminares de idêntico objeto; cabendo inclusive sua estensão a liminares que venham a ser futuramente concedidas.
Ainda que tal regra concorra para o afastamento de divergência jurisprudencial, ou mesmo para conferir celeridade ou certeza jurídica (basicamente para a Fazenda Pública, que será beneficiada pela medida), é no mínimo não razoável que uma decisão seja estendida de forma pura e simples, nos termos em que proferida, sem qualquer análise prévia sobre a semelhança ou diferença entre os casos apresentados, ainda que a divergência seja “unicamente de direito”, pois o as peculiaridades do caso apresentado pode render margem para uma interpretação diversa da norma a ser aplicada.
Portanto, o que se observa é uma falta de mecanismos adequados para aplicação dos institutos importados de outros sistemas jurídicos. Isso implica a má aplicação e a geração de incongruências fáticas e jurídicas, em virtude da mescla de sistemas.
As decisões (precedentes) tomadas como regras em alguns casos no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade geram o enraizamento de fundamentações, que muitas vezes não correspondem eternamente à realidade fática (social), ensejando descompasso entre o ordenamento e a sociedade.
6. CONCLUSÕES
Cass Suntein[26] diz que o bom julgamento ultrapassa boas regras.
Sem dúvida, existe uma razão para que regras sejam criadas. É imprescindível que em sociedades, em especial em sociedades plurais e democráticas – como o Brasil –, haja um mínimo de balizamento que coordene a vida em comum.
É imperioso destacar que o presente estudo não faz uma apologia ao julgamento livre e incondicionado.
A partir da análise do modelo de julgamento apresentado por Schauer, pode-se observar que existe uma rigidez no modelo de regras que propõe. Esta rigidez enseja um enraizamento do predicado fático das normas a serem aplicadas, gerando uma regulamentação com resultados subótimos.
Nesse sentido, ineficaz para regular de forma justa uma sociedade constantemente em mudanças, sendo os casos “iguais” quase uma impossibilidade técnica, haja vista a pluralidade dos indivíduos.
O referido autor tenta estender sua teoria para elementos diversos, previstos para outros modelos de tomada de decisão, sendo o instituto aqui analisado o dos precedentes.
Típicos de sistemas da common law, os precedentes são eminentemente descritivos. Conferem alta relevância ao predicado fático da norma, que pode ser alterado em virtude de circunstâncias que justifiquem o afastamento da norma, em virtude das peculiaridades existentes, visando concretizar a isonomia no seu aspecto material.
Schauer tenta adaptar os precedentes ao sistema que propõe, alegando que precedentes poderiam ser tratados como regras, defendendo o enraizamento das próprias justificações que apresentam.
O que se tentou demonstrar neste estudo foi o desvirtuamento do instituto, nos moldes em que ele tenta admitir, bem como evidenciar que em alguns casos no Brasil – controle de constitucionalidade – ele tem sido usado dessa forma.
Usar precedentes de forma rígida implicaria a modificação do instituto que tem regras próprias no sistema anglo-saxão.
Importar o instituto para o Brasil apresenta um avanço, no sentido de que a própria Suprema Corte está atenta à adaptabilidade do direito ao fato social.
Entretanto, julgar questões, mormente as constitucionais, enraizando seus fundamentos, torna inócua a medida.
É preciso que o sistema judiciário brasileiro, em especial o sistema de controle de constitucionalidade, adote um rumo, seja o da civil law, seja o da common law, seja um rumo misto ou híbrido, mas, sobretudo, que use os institutos devidamente, de forma a permitir que o jurisdicionado tenha previsibilidade das decisões e dos possíveis resultados, bem como para ter autonomia e constituir um sistema sério e idôneo, passível de respeito e credibilidade.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DWORKIN, Ronald. O império do Direito (cap I). Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins fonts, 2003 – (coleção justice e Direito).
FALLON JR, Richard H. Ruminations on the Work of Frederick Schauer. Notre Dame Law Review, vol. 72, p. 1391-1414, 1997.
SCHAUER, Frederick. Las reglas em juego. Madrid: Marcial Pons, 2004, cap. 2,3,7 e 8.
SCHAUER, Frederick. Has Precedent ever really mattered in the Supreme Court? Georgia State University Law Review, vol. 24, p. 381-401, 2007.
SUNSTEIN, Cass. Legal Reasonig and Political Conflict. Oxford: Oxford University Press, 1996, cap. 5.
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. A. 61, n. 3, p. 795-810. Milano: Giufrré, 2007.
[1] SCHAUER, Frederick. Las reglas em juego. Madrid: Marcial Pons, 2004.
[2] SCHAUER, Frederick. Las reglas em juego. Madrid: Marcial Pons, 2004.
[3] Regras descritivas são aquelas que informam uma regularidade ou uniformidade, mas não se dirigem a um comportamento humano; não impõe pressão normativa. Já as regras prescritivas podem se referir a instruções, que são opcionais, pois sua força depende da probabilidade da ocorrência do resultado pretendido, ou a regras imperativas, que impõe um resultado caso ocorra a sua hipótese fática.
[4] Neste estudo, restringiremos à análise das regras imperativas. Assim, o termo “regras” aqui deve ser entendido como sinônimo de “regras prescritivas imperativas”.
[5] Cumpre destacar, neste sentido, que para Schauer, as regras sempre levam a resultados subótimos.
[6] Segundo Friederich Waissman (manifestando-se nesse sentido pela primeira vez em 1945, em seu artigo “Verifiability”), textura aberta não deve ser confundida com vagueza. Em contraposição a esta, aquela se traduz na possibilidade de que, previsto um termo menos vago (dúbio, polissêmico, etc), o mais preciso se torne vago como consequência do conhecimento imperfeito do ser humano acerca do mundo e da limitada capacidade de se predizer o futuro.
[7] Apesar de defensor da estabilidade, Schauer também apresenta uma “alternativa” às soluções subótimas que as regras geralmente acarretam. Trata-se do positivismo presuntivo. Prevendo que em alguns casos seria inviável sustentar a aplicação da regra pura e simplesmente, o autor desenvolve este instituto alegando que as restrições impostas seriam mais presuntivas do que absolutas, permitindo-se afastá-las a partir da construção de uma espécie de grau de restrições. Desta maneira, quando diante de circunstâncias particularmente exigentes, seria possível afastar tais restrições. A presunção seria, portanto, relativa à força das regras de serem aplicadas aos casos concretos, que seria não absoluta face a razões fortes o suficiente para elidir sua incidência.
[8] Importante destacar que aqui se considera a doutrina atenuada dos precedentes judiciais. Considerando-se certos purismos doutrinários, é importante observar que existem dissidências entre os autores de uma mesma “escola doutrinária”. Dessa forma, importa em fazer distinção entre a corrente atenuada dos precedentes – que vincula os juízes apenas a atribuírem certo peso aos precedentes, considerando-os em suas decisões –, existe também outra, de cunho estrito, muito mais rígida – que obriga os julgadores a observarem decisões previamente tomadas, ainda que sejam contrárias às suas convicções e que acreditem estas levarem a resultados errados – que acaba por se traduzir numa verdadeira teoria das regras, na medida em que retira qualquer liberdade do julgador, vinculando-o às decisões previamente tomadas de forma muito mais forte.
[9] TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. A. 61, n. 3. Milano: Giufrré, 2007, p. 798.
[10] Destaca-se aqui que é a ratio decidendi do caso anterior que serve como precedente para um caso posterior semelhante, pois é nela que é posta a fundamentação jurídica do caso julgado. Ademais, corrobora com tal afirmativa a doutrina do stare decisis, que diz que na decisão do caso semelhante posterior deve ser seguida a ratio decidendi do caso anterior.
[11] Não se pode olvidar, contudo, que, hodiernamente, há uma tendência ao sincretismo entre os sistemas do common law e do civill law, de modo que raramente será encontrado hoje em dia um sistema jurídico puro, sem influências do outro, na prática.
[12] Sunstein, por exemplo, critica a aplicação das regras como o faz Schauer por considerar as regras obtusas, no sentido de que não atendem ao ideal de justiça, que é inevitavelmente flexível e adaptável ao caso concreto, e que a aplicação das regras nem sempre representa vantagens, pois a interpretação é inerente à aplicação da regra, o que enfraquece a aspiração de que a justiça da decisão está restrita às regras independente das circunstâncias do caso concreto. (SUNSTEIN, Cass. Legal Reasoning and Political Conflict. Oxford: Oxford University Press, 19996, cap.5.)
[13] Las reglas en juego. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A, 2004.
[14] Legal reasoning and political conflict. Nova Iorque: Oxford, 1996.
[15] Em linhas gerais, o civil law é um sistema jurídico inspirado no direito romano e cujo pressuposto principal é o de que o direito deve ser codificado em coleções, as leis. Materialmente, este sistema se vale do método dedutivo, utilizando generalizações abstratas e gerais, e faz distinções entre regras procedimentais e substantivas. É contraposto ao dito sistema da common law, de raízes anglo-saxônicas, que administra grande peso aos precedentes, a partir do pressuposto de que é injusto tratar fatos semelhantes de forma diferente em diferentes ocasiões.
[16] O controle de constitucionalidade das leis no Brasil como um sistema plural. Fortaleza: Pensar, 2010. v. 15, n.2, p. 356-384, jul/dez.
[17] O professor Maués propõe quatro categorias: a) sistemas integralmente concentrados; b) sistemas parcialmente concentrados; c) sistemas parcialmente desconcentrados; d) sistemas integralmente desconcentrados.
[18] Proferida em 27 de setembro de 2011.
[19] Sunstein discorre sobre um caso semelhante ao tratar da lei que prevê a prisão de pessoas que dirigem alcoolizadas, mesmo quando estão colocando seu carro na garagem ou estão salvando vidas, em razão da aplicação de uma regra. Para ele, a aplicação da regra nestes casos não faz sentido (Legal reasoning and political conflict. Oxford: Oxford University Press, 1996).
[20] Verbis: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.” (grifo das autoras)
[21] Verbis: “Compete à justiça estadual julgar causas entre consumidor e concessionária de serviço público de telefonia, quando a ANATEL não seja litisconsorte passiva necessária, assistente, nem opoente” (grifo das autoras)
[22] Verbis: “É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra” (grifo das autoras)
[23] Mcloughlin vs O’Brian (1983, Suprema Corte Norte Americana). A sra. Mcloughlin teve a família envolvida em um acidente automobilístico e sofreu abalos psicológicos. Pleiteando danos morais, perante o judiciário, face o motorista que causara o acidente, teve sua demanda declinada improcedente em duas instâncias, sob o fundamento – basicamente – de que não estava presente no momento do acidente, o que teria atenuado seu dano, bem como pelo fato de que este seu pleito, se concedido, ensejaria uma enxurrada de pleitos de indenização por casos igualmente “absurdos” perante o Judiciário.
[24] Lei 8.437/92, Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. § 8o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
[25] Lei 12.016/09, Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição. § 5o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
[26] Legal reasoning and political conflict. Nova Iorque: Oxford, 1996. p. 134.
Procuradora Federal; Mestre em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos (UFPA), Especialista em Direito Processual: Grandes Transformações pela Rede de Ensino LFG, e; Especialista em Direito Previdenciário pela Rede de Ensino LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVY, Karine de Aquino Câmara. Ponderações sobre a utilização dos precedentes como regras no sistema jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41728/ponderacoes-sobre-a-utilizacao-dos-precedentes-como-regras-no-sistema-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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