RESUMO: O presente artigo busca situar a reclamação no sistema jurídico brasileiro, a partir da análise geral do instituto, de suas hipóteses de admissibilidade, de suas funções e finalidades, bem como de sua previsão na Constituição da República Federativa do Brasil. Por fim, uma breve abordagem da terminologia, buscando diferenciar dos demais institutos jurídicos brasileiros.
Palavras-chave: Reclamação constitucional. Noção. Funções. Finalidades. Constituição Federal. Terminologia.
1. Introdução
A reclamação constitucional vem ganhando voz a partir da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, conhecida como “Reforma do Judiciário”, que conferiu ao Supremo Tribunal Federal o poder de aprovar súmula com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 103-A).
Com essa nova atribuição, a Excelsa Corte passou a figurar como possível vítima do desrespeito a suas súmulas vinculantes, despontando, por isso, a reclamação como o remédio apto e eficaz para assegurar o seu devido cumprimento.
Todavia, não somente o Supremo Tribunal Federal como também o Superior Tribunal de Justiça, por desempenharem papel relevante no sistema jurídico brasileiro, em especial na interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional do País, respectivamente, não poderiam prescindir de um instrumento jurídico dedicado exclusivamente à preservação de sua competência e à garantia da autoridade de suas decisões.
Bem por isso a reclamação constitucional figura, hoje, como instrumento indispensável no ordenamento jurídico brasileiro.
2. Compreensão do instituto. Hipóteses de admissibilidade. Função e finalidades. Relevância. Terminologia.
A reclamação constitui remédio processual por meio do qual se leva a alguns tribunais o exame da usurpação de sua competência ou da desobediência a julgado seu, praticada por autoridade judicial ou administrativa. Assim, havendo invasão da competência ou desacato a uma decisão do tribunal, a reclamação afigura-se como instrumento jurídico idôneo a restabelecer a ordem violada.
De modo bastante simples, aquele que propõe reclamação pretende: a) demonstrar ao tribunal competente que determinada questão não poderia ter sido apreciada pelo órgão que a examinou; ou (b) pretende fazer prevalecer uma decisão proferida em seu favor, em razão da resistência em respeitá-la oferecida por uma dada autoridade.[1]
Na reclamação, figuram como partes o reclamante, isto é, aquele que ingressa com a reclamação para demonstrar que houve desacato a um julgado da Corte ou a usurpação de sua competência, e o reclamado, ou seja, a autoridade que teria desrespeitado a decisão do Tribunal ou invadido a sua esfera de atuação como órgão jurisdicional competente.
Mediante a reclamação, portanto, busca-se preservar a competência de um tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões. Com isso se quer afirmar que “a reclamação aumenta a eficácia decisória dos julgados, conferindo-lhes maior força por ocasião do respectivo cumprimento, e potencializa as normas de competência”.[2]
Essa dúplice função do instituto tem previsão expressa na Constituição Federal de 1988, integrando a competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, no art. 102, I, l, e no art. 105, I, f, a Constituição conferiu a ambas as Cortes a competência para “processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões”.
Daí porque o termo constitucional que se alia ao título deste artigo tem o propósito, de certo modo, de delimitar a análise do instituto às situações que envolvem o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, órgãos jurisdicionais de superposição, que atuam precipuamente na guarda da Constituição e na defesa do direito federal comum, respectivamente.
Assim, quando algum juiz ou tribunal exerce a jurisdição nas hipóteses em que somente o STF e o STJ poderiam atuar, ou quando nega cumprimento a um preceito ditado por eles, ou profere julgamento destoante de seus julgados, cogita-se do uso da reclamação constitucional. Nesse sentido, assevera Carla Maria Krieger de Valle que o reclamante
[...] ingressa com a reclamação para demonstrar que está a ocorrer um desacato a um julgado do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, ou uma usurpação da competência dessas Cortes, pretendendo comprovar que existe uma decisão proferida em seu favor, que merece ser cumprida, ou que tem o direito de ter a sua causa apreciada pelo órgão competente.[3]
A reclamação traduz, pois, uma demanda de fundamentação vinculada, na medida em que “somente pode ser utilizada em hipóteses previamente determinadas pelo legislador”.[4] Significa dizer que o reclamante deve necessariamente alegar ao menos uma das duas situações descritas na Constituição para que a reclamação tenha seguimento e seja apreciada no mérito.
Relevante observar que a reclamação constitucional emergiu no nosso sistema jurídico como desdobramento da delimitação de competência dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. Isso porque, tanto o STF como o STJ, justamente em vista das funções especiais que ambos desempenham, não poderiam prescindir de um instrumento eficaz para impedir a usurpação de suas competências e o descumprimento de suas decisões. Ela surge, assim, a partir da “teoria dos poderes implícitos”, influência do direito norte-americano (implied powers), segundo a qual “todas as vezes que é atribuída uma competência geral para fazer alguma coisa, nela estão compreendidos todos os particulares poderes necessários para realizá-la”.[5] Ou seja, como os direitos não sobrevivem sem suas garantias (instrumentos de proteção dos direitos), de nada adiantaria a atribuição das competências àqueles órgãos se lhes fosse negada a possibilidade resguardá-las.
Nesse raciocínio, a reclamação constitucional é instrumento que busca, em última análise, a preservação das funções do Poder Judiciário, pois, sendo do STF e do STJ a última palavra em matéria constitucional e infraconstitucional, respectivamente, a possibilidade de usurpação de suas competências desacreditaria o órgão como um todo, arranhando as bases do Estado de Direito.
Em suma, a reclamação constitucional consiste em instrumento destinado a garantir
[...] o direito fundamental de cada um de obter a justa e efetiva tutela jurisdicional – inerente, pois, às chamadas liberdades públicas – [...]; e garantir o atuar da função jurisdicional do Estado e, com isso, a integridade do Estado Democrático de Direito, a ordem, a paz social e a soberania popular.[6]
É dizer, portanto, que a reclamação tem um liame direto com a Constituição, com o processo constitucional. E é justamente essa ideia que fixa os pilares de sustentação para o nascimento da reclamação como instrumento de preservação e garantia das funções e decisões destes órgãos.
Quanto à etimologia, o vocábulo reclamação, do latim reclamatione, “significa protesto; ação de reclamar, de protestar; reivindicação de um direito”.[7] Na terminologia jurídica, o conteúdo da palavra assume caráter mais restrito, porém impõe certo cuidado na sua utilização, uma vez que o termo designa outros institutos do Direito brasileiro que não se confundem com o objeto de estudo deste trabalho, a exemplo da reclamatória trabalhista, com a qual evidentemente não guarda similitude no âmbito de sua atuação.
A respeito da denominação, todavia, registre-se a possibilidade de confusão, em especial com a reclamação correicional, mais conhecida entre nós como correição parcial. Tal se deve porque a denominação mais antiga deste instituto foi justamente “reclamação”, atribuída pelo Código de Processo Civil do antigo Distrito Federal (Guanabara), conforme refere Milton Vasques Thibau de Almeida, em estudo sobre a correição.[8] Há, efetivamente, dissertações mais antigas que se intitulam com o termo “reclamação”, a exemplo da elaborada por Vicente Paulo de Siqueira, datada de 1958, que consta, aliás, do assento bibliográfico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.[9] Além disso, quando a reclamação foi introduzida no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, em 02-10-1957, foi utilizada “a expressão ‘função corregedora’ (depois, felizmente abandonada), que permitiu permanecessem por algum tempo ainda as confusões”.[10]
Apesar desta semelhança, são institutos com finalidades diversas. A correição parcial é medida cujo objetivo é corrigir o desvio ou o tumulto perpetrado por juiz contra o devido processo legal[11], não atacado via recurso de agravo[12]. Assim, o juiz que se exime de despachar ou sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei (CPC, art. 126, primeira parte) pode ter sua omissão atacada por correição parcial. A doutrina inclina-se a afirmar o caráter administrativo[13] da “reclamação correicional”, em que pese haver alguns entendimentos em linha divergente[14], tendo assento em regimentos internos dos tribunais do País ou códigos de organização judiciária.
A reclamação constitucional, por sua vez, é medida de cunho judicial, com previsão na própria Constituição Federal (arts. 102, I, l, e 105, I, f), para a preservação da competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ou a garantia da autoridade de suas decisões.
3. Conclusão
A reclamação constitucional, que não se confunde com outros institutos jurídicos de denominação semelhante, figura como instrumento de preservação da competência e garantia da autoridade de decisões judiciais, integrando a competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 102, I, l, e no art. 105, I, f).
Se este instrumento tem por escopo a preservação da competência e a garantia da autoridade das decisões dos tribunais, sua finalidade, em última análise, é a defesa da função jurisdicional do Estado, condição indispensável à sobrevivência e integridade do Estado Democrático de Direito.
[1] MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. Prefácio Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 51.
[2] MORATO, Leonardo L. A reclamação constitucional e a sua importância para o Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 13, n. 51, p. 171-187, abr./jun. 2005. p. 185-6.
[3] VALLE, Carla Maria Krieger de. Súmula vinculante. 2009. 194p. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2418> Acesso em: 03 mar. 2010. p. 172-3.
[4] DIDIER JÚNIOR, Fredie. CUNHA, José Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JUS PODIVM, 2007. p. 383.
[5] MADISON apud MORATO, 2007. p. 32-3.
[6] MORATO, 2007, p. 112.
[7] LAUDELINO FREIRE apud SIQUEIRA, Vicente Paulo de. Da reclamação: aspecto de anomalia perante a constituição e o código de processo civil. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1958. p. 10.
[8] Reclamação correicional. In: COMPÊNDIO de direito processual do trabalho. São Paulo: Ltr, 1998. p. 859.
[9] Opus citatum.
[10] DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord.). Procedimentos especiais cíveis: legislação extravagante. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 328, em nota de rodapé.
[11] ALMEIDA, op. cit. p. 863.
[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. A reclamação no processo civil. In: _______. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 195.
[13] Cf. MALCHER, José Lisboa da Gama. Reclamação (correição parcial). In:______. Manual de processo penal. 3. ed., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002. p. 634.
[14] Milton V. T. de Almeida faz alusão a processualistas de expressão, como Moacyr Amaral dos Santos e José Frederico Marques (op. cit., p. 862).
Procurador Federal desde 2010, atualmente em exercício junto à Procuradoria-Seccional Federal de Caxias do Sul-RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALLEGARI, Artur Henrique. Reclamação constitucional: um instrumento indispensável no sistema jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41953/reclamacao-constitucional-um-instrumento-indispensavel-no-sistema-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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