O servidor público, ao tomar posse no cargo para o qual prestou concurso (como regra), passa a ficar circunscrito a uma série de direitos, deveres e vedações. Essa sistemática existe para proporcionar proteções e prerrogativas para a relação estatuída para com o ente federativo que o remunera (e espera receber uma adequada prestação laborativa) e, principalmente, a relação “firmada” entre o servidor e a sociedade.
Dessa forma, como medida orientativa e de coibição, a punição por uma eventual ilicitude deve ocorrer da maneira mais ampla possível, justamente para demonstrar à sociedade e às demais pessoas que possuem vínculo com o Estado que desvios de condutas, ainda que leves, acarretarão em sanções.
Mas o que seria o ilícito administrativo passível de perpetração pelo agente público? O art. 186, do Código Civil, ainda que incompletamente, tenta conceituar a noção de ato ilícito:
Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral comete ato ilícito.
Assim, vislumbramos que os seguintes elementos são integrantes do ato ilícito: ação ou omissão humana promovedora de um fato; uma violação de direito e um nexo de causalidade com um dano atribuível a outrem. Como esses elementos e o conceito acima mencionado possuem uma grande amplitude, o ilícito pode ser cometido em diversos tipos do Direito.
Temos, portanto, os ilícitos penais, civis, comerciais, tributários, eleitorais, trabalhistas, previdenciários, ambientais, administrativos... Logicamente, a depender da infração, o grau de reprovabilidade será maior ou menor. Por exemplo, um homicídio é um ilícito penal que pode gerar repercussões cíveis e administrativas. Já o atraso no pagamento de uma multa pode ser um ilícito tributário ou administrativo, mas certamente não possui a mesma reprovabilidade social que um homicídio.
De plano, é possível afirmar que o ilícito não é baseado em formas estanques, isto é, ele pode irradiar efeitos e consequências para outros ramos jurídicos, ainda que o infrator não tenha tido consciência ou intenção desse intento.
Como há inúmeras esferas federativas para os servidores, ficaria extremamente exaustivo analisar cada estatuto funcional dos estados e dos municípios. Assim, para facilitar a compreensão, adotaremos a Lei 8.112/90 como modelo para as digressões do presente trabalho.
O art.121, da Lei 8.112/90, dispõe que o servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições. Focaremos mais nos ilícitos administrativos e suas repercussões. Eles são ações ou omissões que podem ser caracterizados como condutas funcionais que deixam de observar os deveres e as obrigações legais, constitucionais e em disposições internas.
Com base nessas ideias, podemos discriminar quatro tipos de ilícitos administrativos: o ilícito administrativo puro; o ilícito administrativo-civil; o ilícito administrativo-penal e o ilícito administrativo-penal-civil.
O primeiro deles é aquele que afeta somente a administração no seu plano interno. Acarreta responsabilização funcional, de índole punitiva, apurável via processo administrativo disciplinar da Lei nº 8.112/90 de 11/12/90.
O segundo deles é toda conduta contrária a dispositivo estatutário e causador de prejuízo ao erário ou a terceiro. Acarreta responsabilizações funcional (com penas do estatuto) e patrimonial (de indenizar), podendo ser ambas apuráveis na via administrativa, com possibilidade de repercussão processual civil.
O terceiro deles afeta não só a administração, mas a sociedade como um todo. Acarreta responsabilizações funcional (com penas do estatuto) e penal (com penas do Código Penal e de leis especiais), apuráveis de forma independente, respectivamente via processo administrativo disciplinar e processo penal.
Por fim, o quarto deles, além de afetar a administração e a sociedade como um todo, ainda causa prejuízo ao erário ou a terceiro. Acarreta responsabilizações funcional (com penas do estatuto), penal (com penas do Código Penal e de leis especiais) e patrimonial (de indenizar), apuráveis de forma independente, respectivamente via processo administrativo disciplinar, processo penal e, possivelmente, processo civil.
Verifica-se que uma mesma conduta ocasionadora da circunstância, quando configure ao mesmo tempo ilícito administrativo, penal e civil, deve suportar as sanções advindas das diversas instâncias de poder que atuam dentro do escopo comum de apuração e apenação, de maneira independente, harmônica e com competência delimitada pela lei.
A ação ou omissão reprovável e punível será analisada paralelamente nas diversas searas de apuração, mas cada uma delas somente exercerá o exame acerca da sua esfera de conformação, isto é, limitada a sua competência legal de atuação.
Logicamente, a atuação específica de cada uma não impede, pelo contrário, até demanda, a cooperação e colaboração. Dessa forma, os tribunais e boa parte da doutrina administrativista entendem ser possível o uso de prova emprestada.
Se, por exemplo, as provas carreadas ao processo administrativo disciplinar tiverem um bom suporte estruturante para uma comprovação de ilícito penal, desde que produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, elas podem ser utilizadas pelo Ministério Público.
Nada impediria também que um interessado, que tenha sofrido um hipotético dano por conta da atuação ilegal do servidor, utilize-se do disposto no processo criminal ou administrativo para pleitear indenização na área cível.
Mas é importante frisar que embora esteja consagrada há muito tempo a independência das instâncias, isso não é e nem poderia ser encarado sob um prisma absolutista. Até porque, as normas buscam regular situações genéricas e indistintas, de modo a permitir um enquadramento prático aos operadores do direito diante de situações reiteradas e recorrentes.
Só que certamente existem e existirão casos em que a visão genérica e impessoal não será adequada para um caso mais específico ou peculiar. Andou bem a lei ao prever exceções no sentido vinculatório da Administração, de modo a permitir a existência de um sistema jurídico harmônico, que diminua a chance de ocorrer decisões conflitantes entre os estamentos estatais com relação a questões essenciais que digam respeito à própria essência do fato.
O art. 126, da Lei 8.112/90 expressamente prevê que:
Art. 126 A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria
Por esse artigo podemos enxergar duas ocorrências penais que influenciam o âmbito administrativo. A eventual absolvição por falta de provas ou a constatação de que houve a prescrição não servirão como fundamento para afastar a responsabilidade administrativa.
Isso ocorre pelo fato de não ficar cabalmente demonstrado a não concorrência do servidor no ilícito administrativo-penal, ou seja, apenas comprovou-se que aquele fato não é penalmente relevante ou foi agasalhado pela prescrição.
Mas, no caso de restar comprovado que o servidor público não participou do fato criminoso ou ele inexistiu, não seria razoável/proporcional punir a pessoa na seara do Direito Administrativo.
Ademais, se o Direito Penal lida, em tese, com as infrações mais graves e só é chamado a intervir de modo fragmentário e subsidiário, a comprovação plena de inocência nele nos casos elencados no artigo 126 deve expandir-se para as demais esferas, que possuem um campo de atuação menos gravoso que a área penal.
Os ilícitos administrativos passíveis de serem cometidos pelos servidores públicos federais compreendem os seguintes:
– violação a normas de conduta ativa (art. 116 da Lei 8.112/90); afronta às proibições do art. 117, da Lei 8.112/90;
– cometimento das condutas do art. 132, da Lei 8.112/90;
– inobservância de outros comandos de exigências ativas, afronta de proibições ou cometimento de situações arroladas em dispositivos legais, regulamentares ou atos administrativos; e
– figuras criminais exemplificativas e que também podem ser aproveitadas pela administração como base de sustentação de ilícito administrativo de natureza funcional.
Dessa forma, fica claro que o ilícito administrativo possui inúmeras sutilezas que demandam um maior aprofundamento na sua análise. A mera leitura desavisada do dispositivo constitucional, legal ou infralegal nem sempre é suficiente para que se possa chegar a uma escorreita conclusão.
Essa análise pormenorizada deve ser empreendida tanto para amoldar a punição adequada ao fato ilícito, como para absolver o servidor no plano administrativo, haja vista que pode ter ocorrido algum dano civil, por exemplo.
Referências:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27ª ed. Atlas
MADEIRA, Vinícius de Carvalho. Lições de Processo Disciplinar. Editora Fortium.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 8º ed. Impetus.
Advogada da União lotada na Procuradoria Regional da União - PRU 1ª Região, em Brasília, atuando na COSEP - Coordenação Regional de Servidores Públicos. Atuação em processos envolvendo servidores públicos federais, tais como processos administrativos disciplinares e ações coletivas envolvendo sindicatos. Foi, também, oficial de Justiça e Avaliadora Federal da Justiça do Trabalho. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito. Graduada em Direito pela UNIFACS - Universidade Salvador.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Fernanda Pereira Costa. O ilícito administrativo dos servidores públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41961/o-ilicito-administrativo-dos-servidores-publicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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