Muito se tem questionado, em tempos de elaboração de um novo Código de Processo Civil, se o Poder Judiciário não tem se tornado cada vez mais poderoso, bem como sobre o impacto disso no cenário institucional democrático brasileiro.
Um pequeno exemplo disso, dentre tantos outros que poderiam ser referidos, é o que dispõe o art. 139, VI do projeto de um novo Código de Processo Civil - CPC, que permite ao juiz “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”.
Tem-se em tal permissividade, e em outros vários momentos do CPC projetado, um asseveramento inequívoco da ideia de instrumentalidade processual, aliada à compreensão de efetividade, que visa justamente à consolidação da justiça no caso concreto, finalidade precípua do exercício da jurisdição.
Isso ocorre dentro de um fenômeno mais abrangente, costumeiramente apontado como pós-positivismo jurídico. Tal corrente jusfilosófica, como é cediço, se marca profundamente pela reaproximação do conceito de direito com a “moral” e com a “ética” (volta a ter importância o chamado “conteúdo justo do direito”), embora não despreze a importância da lei escrita.
Ressalta-se no pós-positivismo jurídico, como elementos nodais e relevantes, a normatividade dos princípios e o papel do intérprete como verdadeiro partícipe na construção da norma.
E já que o intérprete não mais apenas realiza a subsunção dos fatos a uma norma jurídica necessariamente antecedente (e sobre a qual não tinha ingerência nenhuma no positivismo clássico), eis que se evidencia também – e aqui se tem, segundo Luis Roberto Barroso, um dos marcos teóricos do próprio neoconstitucionalismo – o fortalecimento da jurisdição, e marcadamente da jurisdição constitucional.
Diante disso, a jurisdição (conceito típico do processo civil) passa a ser reinterpretada no contexto do neoconstitucionalismo. Afasta-se a centralidade da lei e do Poder Legislativo, com a criação de tribunais constitucionais (judicial review), de tal sorte que a palavra final em interpretação jurídica passa a caber sempre ao Poder Judiciário.
Os direitos fundamentais são constitucionalizados, o que lhes garante uma proteção e efetivação mais severa, mesmo que em detrimento do sistema majoritário.
Ademais, tornam-se insuficientes os mecanismos clássicos de interpretação jurídica (métodos de Savigny), emergindo novas categorias para tal finalidade, tais como: cláusulas gerais e conceitos indeterminados; interpretação de princípios; colisão natural de normas constitucionais; ponderação (solução para a colisão de direitos); argumentação (hard cases).
E tudo isso leva a uma nova definição da própria jurisdição, e marcadamente da jurisdição constitucional, a qual perpassa pela verdadeira “constitucionalização” de todos os ramos do sistema jurídico. Em virtude do caráter expansivo e irradiante das normas constitucionais, o direito passa a ser sempre analisado sempre à luz da do texto constitucional, em fenômeno comumente chamado de “filtragem constitucional”.
O Supremo Tribunal Federal pode funcionar, por exemplo, como objeto direto para uma análise mais detida do que aqui se aduz. Com efeito, justamente em face do papel exercido por aquela corte tem se percebido uma repercussão cada vez maior das decisões por ela proferidas, dentro de um fenômeno que tem sido denominado ativismo judicial. O Poder Judiciário, e mais particularmente o Supremo Tribunal Federal, muitas vezes tem sido instado a atuar de forma bastante incisiva, sanando omissões dos Poderes Legislativo e Executivo ou corrigindo distorções geradas pelo processo democrático regular.
Não é demasiado asseverar que o Supremo Tribunal Federal, no mais das vezes, com o intento de preservar a incolumidade do texto constitucional e dos direitos fundamentais ali garantidos, chega a atuar de forma contramajoritária, indo até mesmo de encontro ao posicionamento estabelecido por representantes eleitos pelo povo.
É justamente nessa atuação que reside uma das mais relevantes discussões doutrinárias no âmbito do Direito Constitucional contemporâneo. Afinal, é comum serem trazidos à tona importantes questionamentos, relacionados à legitimidade democrática da corte constitucional e à tensão que se estabelece entre ela e os poderes políticos.
Há quem avente, por exemplo, que se vivencia hoje uma verdadeira americanização do Direito brasileiro, tamanho é o domínio que vem sendo atribuído ao intérprete (julgador) na construção do Direito. Diversas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal poderiam ser trazidas à baila para exemplificar tal fenômeno.
Apenas para citar um exemplo, está pendente de julgamento, atualmente, o importantíssimo Recurso Extraordinário nº 381.367, que analisa a possibilidade, ou não, da “desaposentação” no cenário jurídico brasileiro. Trata-se, como é cediço, de demanda com imensa repercussão social e econômica, cujo resultado trará importantes reflexos para a política previdenciária do país.
Mas o “ativismo judicial”, como é cediço e já referido alhures, não se resume à atuação “concentrada” da corte constitucional brasileira. Ao contrário, trata-se de fenômeno que se encontra presente também na atuação difusa de todo e qualquer órgão jurisdicional, e não raramente no 1º grau de jurisdição, o que se vê muito claramente na própria matéria previdenciária.
Tome-se aqui como exemplo, ainda que sucinto e talvez inexato, e mais uma vez no espectro do direito previdenciário, a costumeira mitigação de um dos importantes requisitos previstos para a obtenção do benefício assistencial da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS.
Com efeito, assim dispõe o diploma legal em análise:
“Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
[...]
§3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.”
Nota-se, portanto, que o legislador estabeleceu um critério objetivo de verificação do critério de “renda familiar per capita”, fixando a “condição de miserabilidade” para os indivíduos cuja renda mensal fosse interior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.
Não se adentrará, por inoportuno, na discussão travada no Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do referido requisito (o que inclusive ensejou uma recente alteração de posicionamento daquela corte constitucional). O que se pretende destacar, neste específico momento, é a atuação difusa de diversos magistrados, que não raramente desconsideram por completo o requisito legal claramente estabelecido por um poder constituído (in casu, o Poder Legislativo), em razão de uma suposta – ou possível – inconstitucionalidade concreta.
Trata-se de postura que se faz plenamente possível no âmbito da sistemática brasileira de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos (em sua modalidade concreta ou incidental), mas que demonstra claramente uma importante superação paradigmática do positivismo clássico, estabelecendo um papel de protagonismo judicial evidente, o qual, reconheça-se, pode deixar mais vulnerável o jurisdicionado, em razão da menor objetividade que se faz presente em situações da espécie aqui utilizada.
E se já há tal protagonismo em tempos hodiernos, o CPC projetado, como bem se viu, fortalece sobremaneira a figura do julgador, conferindo-lhe poderes superlativos na busca pela efetividade jurisdicional e, naturalmente, pela consolidação da ideia de justiça no caso concreto.
Em interessante artigo sobre o tema, Maria Elizabeth de Castro Lopes, ao tratar deste fortalecimento da figura do julgador, bem o apresenta, no âmbito do CPC projetado, como “diretor material do processo”, senão veja-se:
Deve-se ressaltar, desde logo, que o fortalecimento dos poderes do juiz é uma tendência atual da doutrina, o que, evidentemente, não significa transformá-lo em dono do processo (dominus processi). O que verificamos na melhor doutrina é que o juiz não pode ser um “convidado de pedra”, mas deve exercer as funções de diretor material do processo.
Chama a atenção, portanto, a releitura do papel exercido pelo magistrado. O arcabouço jurídico (ou ordenamento) tem sido analisado de uma outra maneira, que toma como principais pontos de partida a normatividade dos princípios e o papel bastante do intérprete da norma – no caso, o juiz –, o qual contribui na própria construção do direito.
Merecem ser apontados, nesse contexto, três importantes marcos teóricos para este recente momento da compreensão jurídica, a saber: a força normativa das constituições; o fortalecimento e a expansão da jurisdição constitucional; e, finalmente, a consolidação de novas categorias de interpretação jurídica (ou de interpretação constitucional, já que toda interpretação jurídica é, no fundo, uma interpretação constitucional).
Tente-se resumir, de início, os dois marcos teóricos inicialmente referidos. Com efeito, é inequívoco que as constituições – e a Constituição brasileira é um exemplo disso –, passaram a ser enxergadas, ao longo do século XX, como instrumentos normativos em si próprias. São, afinal, documentos jurídicos, e não meras cartas de intenções de conteúdo eminente programático. As normas constitucionais possuem, nesse contexto, aplicabilidade direta e imediata.
E justamente por isso ganha força e relevância o exercício da jurisdição constitucional, afastando-se a centralidade da lei e do Poder Legislativo. Afinal, os direitos fundamentais, constitucionalizados que estão, podem e devem ser salvaguardados pelo Poder Judiciário, muitas vezes em contrariedade ao sistema majoritário, tão comum nos regimes democráticos. Debruçando-se sobre a realidade brasileira, a percepção de tal fenômeno se esclarece na própria análise do sofisticado sistema de controle de constitucionalidade que aqui vigora, o qual consegue compatibilizar as modalidades difusa e concentrada, exercidas por diversas instâncias jurisdicionais.
E é no exercício desta jurisdição, de aplicabilidade direta e imediata das normas constitucionalmente estabelecidas – e aí estão diversos princípios – que ganha contorno o fenômeno chamado de “decisionismo”, o qual é exercido em conformidade com as novas categorias de interpretação constitucional.
Com efeito, os métodos clássicos de interpretação jurídica (Savigny), embora ainda aplicáveis, não são mais suficientes. Passa-se a perceber, no mais das vezes, uma verdadeira inviabilidade da chamada “subsunção normativa”, e o aplicador do direito (órgão julgador) passa a trabalhar com categorias como: cláusulas gerais; conceitos indeterminados; colisão natural de normas constitucionais; ponderação; argumentação; hard cases.
E a questão que se coloca, no âmbito de tal “decisionismo”, é a postura hermenêutica do intérprete diante dos casos concretos postos sob sua análise.
Trata-se, afinal, de uma atividade que se desenvolve em face da normatividade dos princípios, algo que se torna deveras facilitado no cenário que se desenha a partir do CPC projetado.
É importante ter em mente, para além disso, a salvaguarda da legitimidade democrática na atuação jurisdicional, a qual naturalmente não decorre do sufrágio, mas da razão argumentativa e de fatores outros.
A despeito das dificuldades pontualmente geradas pelo “decisionismo”, das quais muitas vezes a advocacia pública (área de atuação desta estudiosa) é “vítima”, compreende-se que o invés de se esvaziar a potencialidade jurisdicional em sede do sofisticado controle de constitucionalidade que no Brasil funciona, deve-se buscar ampliar a participação popular no cenário judicial, buscando-se conferir sempre a máxima legitimação democrática possível à atuação dos seus órgãos. As audiências públicas e a figura do "amicus curiae", por exemplo, são bons exemplos desta vertente.
Há que se trazer à lume outrossim, e ainda nesse contexto, a idéia de razoabilidade. No já citado artigo de Maria Elizabeth de Castro Lopes assevera que
A fixação do conceito de ativismo judicial precisa ser feita de maneira criteriosa, porque não deve significar a hipertrofia dos poderes do juiz, nem a liberdade para descumprir regras processuais, sob pena de sofrermos as consequências de um processo autoritário. Por exemplo, rejeitamos a chamada discricionariedade judicial, já que, diferentemente do que ocorre no direito administrativo, o juiz não deve decidir segundo razões de conveniência ou oportunidade, mas sim em função da necessidade da tutela jurisdicional. Assim, a concessão de uma tutela de urgência depende da demonstração da necessidade imediata do provimento, não sendo suficiente a simples conveniência ou oportunidade.
Note-se, portanto, que não se pode confundir ativismo ou mesmo “decisionismo” com discricionariedade. Não se trata de conferir ao julgador amplos e irrestritos poderes, para que o mesmo possa decidir os processos conforme seu senso próprio de justiça, não necessariamente associado ao que se persegue num cenário institucional e democrático.
O CPC projetado, portanto, consagra o ativismo judicial em sua boa vertente. Na vertente que assegura ao jurisdicionado a efetividade processual e a consecução do direito justo. Traz em seu bojo normas principiológicas importantes (tais como os princípios da razoabilidade, da dignidade da pessoa humana e da eficiência), possuindo, de outra banda, regras que elastecem sobremaneira o poder do magistrado, notadamente em matéria procedimental.
Todavia, o mesmo CPC projetado carrega consigo uma preocupação severa com a segurança jurídica dos jurisdicionados, focando-se na ideia de colaboração processual, o que termina por afastar um possível viés autoritário a residir numa eventual discricionariedade judicante.
Isso fica claro também nas palavras de Maria Elizabeth de Castro Lopes, em parte conclusiva do seu texto, cuja transcrição aqui se realiza:
A tendência atual de fortalecer os poderes do juiz e de prestigiar a jurisdição de 1.º grau foi acolhida no Projeto e merece aprovação.
Não houve, de modo algum, o propósito de subestimar os direitos e garantias das partes e de conferir poderes absolutos ao juiz, o que se demonstra com a simples leitura dos arts. 1.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 10 do Projeto, entre outros.
[...]
Podemos concluir, pois, que o modelo constitucional de processo civil foi mantido pelo Projeto que se harmoniza perfeitamente com o texto da Constituição e, portanto, deve ser prestigiado.
Nesse contexto, é um desafio intrínseco à atividade jurídica bem compreender as pretensões da novel norma que se desenha no cenário constitucional vigente, à luz de seus marcos jusfilosóficos aqui referidos, o que decerto permitirá um aprimoramento da atividade jurisdicional sem os riscos da discricionariedade judicante.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional trasnformadora. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
FARIA, Márcio Carvalho. O novo código de processo civil vs a jurisprudência defensiva. In: Revista dos Tribunais (on line). Revista de Processo. Vol. 210. p. 263. Agosto de 2012.
LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Ativismo judicial e novo código de processo civil. In: Revista dos Tribunais (on line). Revista de Processo. Vol. 205. p. 301. Março de 2012.
Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União, em exercício na Procuradoria Federal Especializada Junto à Universidade Federal do Sul da Bahia. Graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. Novo Código de Processo Civil e o risco "decisionismo": alguns apontamentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42131/novo-codigo-de-processo-civil-e-o-risco-quot-decisionismo-quot-alguns-apontamentos. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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