RESUMO: O presente artigo pretende discutir os requisitos, de ordem objetiva e subjetiva, para a caracterização do dolo eventual em crimes de trânsito, questionando sobretudo a tendência da doutrina e da jurisprudência em sustentar a sua possibilidade de aplicação.
PALAVRAS-CHAVE: Crimes de trânsito. Requisitos objetivos e subjetivos. Dolo Eventual. Doutrina e jurisprudência.
1. INTRODUÇÃO
É cediço que o transito nacional é caótico, ocorrendo centenas de milhares de acidentes por ano, com milhares de vítimas fatais, sem punição, na mesma proporcionalidade, aos motoristas infratores.
As negras estatísticas pátrias colocam o Brasil no grupo dos países que apresentam os piores índices de violência no trânsito. A formação deficiente do condutor, somada ao precário estado de conservação de nossas vias, redunda em um alarmante número de pessoas lesionadas ou mortas.
2. DESENVOLVIMENTO
Conforme exposto no questionamento, os agentes responsáveis pelo transito realizam assiduamente centenas de campanhas educadoras/ esclarecedoras da vedação legal e dos resultados nefastos da “direção perigosa/ousada”; do trafegar em alta velocidade sem respeitar as placas limitadoras; do conduzir veículo em estado de embriaguez etc.
Destarte, é praticamente impossível que um motorista que assim se conduz não tenha, previamente, assumido o risco de produzir o resultado e, indiferentemente a este risco, não interrompe sua conduta.
Magalhães Noronha leciona:
No dolo eventual [...] o sujeito prevê o resultado e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência (eu não quero, mas se acontecer, para mim tudo bem, não é por causa deste risco que vou parar de praticar minha conduta – não quero, mas também não me importo com sua ocorrência).
E exemplifica o mestre:
É o caso do motorista que se conduz em velocidade incompatível com o local e realizando manobras arriscadas. Mesmo prevendo que pode perder o controle do veículo, atropelar e matar alguém, não se importa, pois é melhor correr este risco, do que interromper o prazer de dirigir (não quero, mas se ocorrer, tanto faz). É também o caso do chofer que em desabalada corrida para chegar a determinado ponto, aceita de antemão o resultado de atropelar uma pessoa.
Como bem alerta Flávio Augusto, “Sutil a linha divisória entre o dolo eventual e a culpa consciente, pois, em ambos sobressai um ponto comum: a previsão do resultado”, e, citando Frank, diferencia um do outro:
No dolo eventual o agente diz consigo mesmo: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”. Já na culpa consciente, o agente realiza a conduta acreditando sinceramente que o resultado previsto não se realizará. Ele atua descartando a hipótese de produzir o resultado.
O prof. Damásio de Jesus nos fornece excelente lição a respeito do dolo eventual que se amolda exatamente nas situações de acidentes automobilísticos:
O juiz, na investigação do dolo eventual, deve apreciar as circunstâncias do fato concreto e não buscá-lo na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento. Daí valer-se dos chamados “indicadores objetivos”, dentre os quais incluem-se quatro de capital importância: 1º) risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex.: a vida); 2º) poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3º) meios de execução empregados; e 4º) desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico. Consciente do risco resultante da conduta, apresenta-se ao autor a opção de comportamento diverso. Prefere, porém, sem respeito à objetividade jurídica a ser exposta a perigo de dano, realizar a ação pretendida.
É diante da presença destes “indicadores objetivos” que os nossos tribunais vem, assiduamente, pronunciando os motoristas que assim procedem.
JÚRI. HOMICÍDIO. DELITO DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. EXAME E AVALIAÇÃO DA PROVA INCUMBENTE AO JÚRI. HIPÓTESE EM QUE A PRONÚNCIA SE IMPÕE. PROVIMENTO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA REFORMAR A DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU QUE OPEROU A DESCLASSIFICAÇÃO PARA A HIPÓTESE DE HOMICÍDIO CULPOSO E PARA PRONUNCIAR O ACUSADO.
O elemento subjetivo que integra o tipo penal não se revela no mundo externo se não por intermédio dos fatos. Da análise destes é que se pode concluir se o agente quis o resultado, se assumiu o risco de produzi-lo ou se, não tendo querido nem assumido o risco, agiu com imprudência, imperícia ou negligência. Ou seja, a caracterização do dolo ou da culpa decorre do exame e da interpretação racional da prova. Nos crimes dolosos contra a vida, o exame e a interpretação da prova é reservada ao Tribunal do Júri. De regra, o elemento subjetivo que informa os delitos de trânsito é a culpa stricto sensu. Excepcionalmente, entretanto, as circunstâncias do fato podem apontar para a possibilidade da ocorrência do chamado dolo eventual ou indireto. Nessa hipótese, como tem proclamado a jurisprudência, o tema deve ser submetido ao Juiz natural, constitucionalmente investido da competência para dizer se o acusado agiu ou não de forma dolosa. (Recurso Crime n° 697076081, 1ª Câmara Criminal do TJRS, Santa Maria, Rel. Des. Ranolfo Vieira. j. 04.06.97).
“ACIDENTE DE TRÂNSITO - MOTORISTA EMBRIAGADO EM ALTA VELOCIDADE - ATROPELAMENTO DE CICLISTA NA MÃO DE DIREÇÃO - DOLO EVENTUAL - PRONÚNCIA MANTIDA. O motorista que dirige embriagado, imprimindo velocidade aproximada de 90 (noventa) Km/h, assume todo e qualquer risco de um acidente; seja qual for o resultado, procede com dolo eventual”. (Recurso criminal nº 9.191, 2ª Câmara Criminal do TJSC , Joinville, Rel. Des. Nilton Macedo Machado, 30.10.92, Publ. no DJESC nº 8.633 - Pág 08 - 30.11.92).
“DOLO EVENTUAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. Age com dolo eventual, aquele que, não querendo provocar ferimentos em seus passageiros ou em outras pessoas, assume o risco de fazê-lo através de um acidente de trânsito, porque dirige embriagado, em alta velocidade e na forma de ziguezague. Nestas condições, percebe que por causar o resultado e, não obstante, não desiste de sua conduta”. (Apelação Crime nº 293229860, 3ª Câmara Criminal em Regime de Exceção do TARS, Giruá, Rel. Saulo Brum Leal, 25.04.95).
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO.TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. PRONÚNCIA.
I - Se o v. julgado apreciou o recurso contra a pronúncia sob prisma diverso, não se aventando o teor da norma considerada como violada, o apelo especial peca pela falta de prequestionamento (Súmula nº 282 e 356-STF). II - O recurso especial não se presta a buscar o reexame do material cognitivo (Súmula nº 07-STJ). III - Sendo admissível a imputação por delito doloso, incabível a pretendida desclassificação sob alegação de que os delitos, no trânsito, são sempre culposos.
Recurso conhecido pela alínea c e desprovido.
(RESP 186440/SC; RECURSO ESPECIAL 1998/0062305-1, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Félix Fischer, 02/02/1999, Publ. no DJ 22.03.1999, p. 235)
(grifos e sublinhados nosso)
3. CONCLUSÃO
Diante de tudo exposto, somos por uma resposta afirmativa – sim, estando presente os “indicadores objetivos” conforme lição do Prof. Damásio de Jesus, há dolo eventual nos graves crimes de transito.
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