RESUMO: Este estudo pretende analisar a conduta criminalizada pelo delito de apropriação indébita previdenciária previsto no art. 168-A, caput, do Código Penal Brasileiro a fim de distingui-la daquela penalizada pelo crime de sonegação de contribuição previdenciária previsto no art. 337-A da mesma codificação; a necessidade ou não de dano à seguridade social para a consumação do delito; a exigência de processo administrativo fiscal como condição objetiva de punibilidade; o pagamento do débito como causa de extinção da punibilidade; ação penal e requisitos específicos da denúncia; e o cabimento da tese defensiva das dificuldades financeiras como excludente de culpabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: Apropriação Indébita Previdenciária. Processo Administrativo Previdenciário.
SUMÁRIO: 1– Introdução; 2– Tipos Objetivo e Subjetivo do art. 168-A do Código Penal; 3- Análise comparativa em relação ao crime de sonegação de contribuição previdenciária; 4- A necessidade ou não de dano à seguridade social para a consumação do delito: crime formal ou material?; 5- A exigência de processo administrativo fiscal como condição objetiva de punibilidade; 6- Efeitos do pagamento sobre a extinção da punibilidade; 7- Ação penal e requisitos específicos da denúncia; 8- Tese das dificuldades financeiras como excludente de culpabilidade; 9- Conclusões; 10- Referências Bibliográficas.
1- INTRODUÇÃO
Este artigo procura analisar o delito de apropriação indébita previdenciária previsto no art. 168-A, caput, do Código Penal em suas várias nuances.
2– TIPO OBJETIVO E TIPO SUBJETIVO DO ART. 168-A, CAPUT, do CÓDIGO PENAL
A Lei 9.983/00 deu a seguinte redação ao artigo 168-A do Código Penal:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.
§ 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:
I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou
II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
A conduta criminalizada no art. 168-A, caput, do CP, descreve apenas uma ação em seu núcleo, que é “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional.”
Analisando o que a doutrina comenta sobre o tema, percebe-se que a dúvida central que surge na exata compreensão da conduta é saber se a ação de arrecadar integra ou não a conduta.
Há divergência na doutrina. José Paulo Baltazar Junior[1], na linha da jurisprudência tradicional, inclusive do STF (HC 76.978-1), afirma que o delito é omissivo, de modo que a ação de arrecadar não integra o tipo, pela impossibilidade de se imaginar um desconto em sentido físico na época da moeda digital (para ele o desconto é presumido) e porque, do contrário, se estaria criminalizando um ato lícito. A expressão “apropriação indébita”, aliás, é inadequada e induz a equívocos, sustenta esse autor. Diz ele que não constitui elementar do tipo a apropriação do dinheiro referente ao tributo não recolhido, isto é, o ato de apropriar-se, tomar para si, apoderar-se, agir como dono, de modo que a comprovação do desvio de finalidade do dinheiro pode ser tomada como circunstância desfavorável na primeira fase da aplicação da pena.
Já Luiz Flávio Gomes, citado por Rogério Sanches Cunha[2], extrai outra conclusão da norma, e vê nela a previsão de um delito comissivo omissivo (misto), no qual o comportamento comissivo seria recolher as contribuições dos contribuintes, enquanto que o comportamento omissivo posterior seria deixar de repassar os valores recolhidos.
No que concerne ao tipo subjetivo, a doutrina e a jurisprudência convergem no sentido que a omissão do recolhimento deve ocorrer por dolo, e não por mero erro ou descuido na forma e prazo do recolhimento. Aliás, não há previsão de inculpação por culpa. Quanto ao dolo, a configuração do crime não exige dolo específico - animus rem sibi habendi -, mas apenas o dolo genérico. A Suprema Corte é firme neste sentido:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS REM SIBI HABENDI). IMPROCEDÊNCIA DAS ALEGAÇÕES. ORDEM DENEGADA. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que para a configuração do delito de apropriação indébita previdenciária, não é necessário um fim específico, ou seja, o animus rem sibi habendi (cf., por exemplo, HC 84.589, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10.12.2004), "bastando para nesta incidir a vontade livre e consciente de não recolher as importâncias descontadas dos salários dos empregados da empresa pela qual responde o agente" (HC 78.234, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 21.5.1999). No mesmo sentido: HC 86.478, de minha relatoria, DJ 7.12.2006; RHC 86.072, Rel. Min. Eros Grau, DJ 28.10.2005; HC 84.021, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14.5.2004; entre outros). 2. A espécie de dolo não tem influência na classificação dos crimes segundo o resultado, pois crimes materiais ou formais podem ter como móvel tanto o dolo genérico quanto o dolo específico. 3. Habeas corpus denegado. (HC 96092, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 02/06/2009, DJe-121 DIVULG 30-06-2009 PUBLIC 01-07-2009 EMENT VOL-02367-04 PP-00589 RT v. 98, n. 888, 2009, p. 500-507)
3- ANÁLISE COMPARATIVA EM RELAÇÃO AO CRIME DE SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA
A diferença fundamental entre a conduta prevista no crime de apropriação indébita previdenciária, cujo tipo penal se encontra delineado no art. 168-A do CP, e a conduta prevista no crime de sonegação de contribuição previdenciária, tipificado no art. 337-A do mesmo Digesto, é a fraude existente na segunda conduta.
Enquanto na sonegação de contribuição previdenciária o inadimplemento ocorre mediante uso de artifícios fraudulentos, como, por exemplo, omissão de remunerações pagas na contabilidade da empresa; omissão, na folha de pagamento da empresa, do nome de empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços, na apropriação indébita previdenciária o inadimplemento ocorre sem necessidade de recurso a meios fraudulentos, direcionando-se a vontade do agente para o não recolhimento da contribuição previdenciária do qual era responsável.
Por exigir a presença da fraude como elementar do tipo, o crime de sonegação de contribuição previdenciária é mais grave do que o previsto no art. 168-A do CP, pois expõe a maior perigo o bem jurídico tutelado.
Apesar disto, o legislador penal cuidou de estipular a mesma pena (reclusão de 2 a 5 anos e multa) para ambos os delitos, além de dispensar, em outros aspectos relevantes, um tratamento mais gravoso ao autor da apropriação indébita previdenciária relativamente ao sonegador de contribuição previdenciária, o que sem dúvida viola o princípio constitucional da razoabilidade.
Basta lembrar que para o crime em que não há fraude, o parágrafo segundo, do art. 168-A, do CP, traz a possibilidade de extinção da punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento do tributo devido antes do início da ação fiscal. Porém, para o crime que exige fraude, o parágrafo primeiro, do art. 337-A, do CP, exige apenas a declaração e confissão espontânea do tributo devido antes do início da ação fiscal. Esse tema da extinção da punibilidade será melhor abordado em tópico específico adiante, notadamente ante a edição da Lei 10.684/2003, a partir da qual o STF passou a considerar que o pagamento do tributo devido, mesmo após o início da ação fiscal ou do recebimento da denúncia, tem o condão de extinguir a punibilidade.
Outra diferença entre os crimes dos arts. 168-A e 337-A do CP diz respeito aos efeitos penais do parcelamento. O autor do primeiro desses crimes não se favorece, via de regra, do parcelamento da dívida, pois para ele somente o pagamento integral pode atingir o efeito da extinção da punibilidade. Porém, o autor do segundo crime, se obtiver o parcelamento, logrará a suspensão da pretensão punitiva enquanto perdurar o acordo, e, ao final, se pagar todas as parcelas, obterá a extinção da punibilidade. Ocorre que, apesar de ambos os crimes estarem arrolados no art. 68 da Lei 11.941/09, que prevê a suspensão da pretensão punitiva enquanto durar o parcelamento, as contribuições previdenciárias descontadas dos empregados não são em regra parceláveis, consoante o art. 7º da Lei 10.666/03.
4- A NECESSIDADE OU NÃO DE DANO À SEGURIDADE SOCIAL PARA A CONSUMAÇÃO DO DELITO – CRIME FORMAL OU MATERIAL?
Antes de se verificar a divisão existente na doutrina no tocante à classificação da conduta como omissiva pura ou comissiva-omissiva (mista), deve-se perquirir se se trata a apropriação indébita previdenciária de crime formal ou material. Segundo a jurisprudência tradicional, trata-se de crime formal, isto é, independe de resultado naturalístico posterior para sua consumação. Contudo, já existem alguns julgados sustentando tratar-se de um crime material.
No STF, o HC 76.978-1/RS é exemplo claro da linha tradicional de pensamento:
“EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA PRATICADO EM CONTINUIDADE DELITIVA: NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DESCONTADA DE EMPREGADOS. ALEGAÇÕES DE: EXCLUSÃO DA ILICITUDE POR INEXISTÊNCIA DE DOLO; EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PARCELAMENTO DO DÉBITO; INEXISTÊNCIA DE MORA POR VÍCIO NA NOTIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA, PORQUE DIRIGIDA À PESSOA JURÍDICA; ATIPICIDADE DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA; E DE APLICAÇÃO DA LEX GRAVIOR EM DETRIMENTO DA LEX MITIOR: ULTRA-ATIVIDADE DA LEI PENAL QUANDO, APÓS O INÍCIO DE CRIME CONTINUADO, SOBREVEM LEI MAIS SEVERA. 1. Dolo genérico caracterizado: alegação de inexistência de recursos financeiros não comprovada suficientemente no processo- crime. 2. A punibilidade é extinta quando o agente promove o pagamento integral do débito antes do recebimento da denúncia, o que não ocorre enquanto não solvida a última prestação de pagamento parcelado, possibilitando, neste período, o recebimento da denúncia. Precedentes. 3. Improcedência da alegação de irregularidade da notificação expedida em nome da pessoa jurídica: há comprovação de que a correspondência foi entregue e de que o paciente dela teve ciência, sendo, assim, constituído em mora. 4. Alegação improcedente de atipicidade do delito de apropriação indébita (crime de resultado), porque o paciente foi condenado por crime contra a ordem tributária: não recolhimento de contribuição previdenciária descontada de empregados, que é crime omissivo puro, infração de simples conduta, cujo comportamento não traduz simples lesão patrimonial, mas quebra do dever global imposto constitucionalmente a toda a sociedade; o tipo penal tutela a subsistência financeira da previdência social. Inexistência de responsabilidade objetiva. 5. Direito intertemporal: ultra-atividade da lei penal quando, após o início do crime continuado, sobrevem lei mais severa. 5.1 Crime continuado (CP, artigo 71, caput): delitos praticados entre março de 1991 e dezembro de 1992, de forma que estas 22 (vinte e duas) condutas devem ser consideradas, por ficção do legislador, como um único crime, iniciado, portanto, na vigência de lex mitior (artigo 2º, II, da Lei nº 8.137, de 27.12.90) e findo na vigência de lex gravior (artigo 95, d e § 1º, da Lei nº 8.212, de 24.07.91). 5.2 Conflito de leis no tempo que se resolve mediante opção por uma de duas expectativas possíveis: retroatividade da lex gravior ou ultra-atividade da lex mitior, vez que não se pode cogitar da aplicação de duas penas diferentes, uma para cada período em que um mesmo e único crime foi praticado. Orientação jurisprudencial do Tribunal no sentido da aplicação da lex gravior. Ressalva do ponto de vista do Relator, segundo o qual, para o caso de crime praticado em continuidade delitiva, em cujo lapso temporal sobreveio lei mais severa, deveria ser aplicada a lei anterior - lex mitior - reconhecendo-se a sua ultra-atividade por uma singela razão: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (Constituição, artigo 5º, XL). 6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido. (HC 76978, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 29/09/1998, DJ 19-02-1999 PP-00027 EMENT VOL-01939-01 PP-00060)” (grifo acrescido)
A maioria da doutrina segue essa linha de entendimento, afirmando que o delito é omissivo e dependente de regulamentação de leis previdenciárias disciplinadoras do prazo em que deve ser repassada a contribuição e da forma com que o repasse deverá ocorrer, assegura-nos Rogério Sanches Cunha[3].
Mais recentemente, há um julgado do STF, datado de 10/03/2008, preconizando tratar-se de crime material. O Inq. 2537 AgR/GO, de Relatoria do MIn. Marco Aurélio, foi assim ementado:
“APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA - CRIME - ESPÉCIE. A apropriação indébita disciplinada no artigo 168-A do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não simplesmente formal. INQUÉRITO - SONEGAÇÃO FISCAL - PROCESSO ADMINISTRATIVO. Estando em curso processo administrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do tributo, ficam afastadas a persecução criminal e - ante o princípio da não-contradição, o princípio da razão suficiente - a manutenção de inquérito, ainda que sobrestado.(Inq 2537 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2008, DJe-107 DIVULG 12-06-2008 PUBLIC 13-06-2008 EMENT VOL-02323-01 PP-00113 RET v. 11, n. 64, 2008, p. 113-122 LEXSTF v. 30, n. 357, 2008, p. 430-441)”
Não se pode dizer que esse último precedente, embora mais recente, represente a jurisprudência pacífica daquela Corte. Da leitura do acórdão supracitado, proferido de forma unânime pelo Pleno do STF, depreende-se, não obstante a ementa ter sido expressa no sentido de que a apropriação indébita disciplinada no art. 168-A é crime omissivo material, que não houve unanimidade ou votação específica quanto a este ponto porquanto o desfecho do processo, que culminou com o arquivamento do inquérito, decorreu da informação colhida no caso concreto junto à Previdência Social no sentido de que o tributo estava com exigibilidade suspensa, a partir da qual a Corte alinhou-se na conclusão de que a retenção feita pelo empregador poderia ter sido feita de modo indevido ou que até mesmo nenhum tributo poderia ter sido sonegado.
O Min. Cesar Peluso afirmou em seu voto, porém, que se trata de crime formal:
“(...) a meu ver, com o devido respeito, este caso de apropriação indébita previdenciária não pode ser equiparado ao dos delitos materiais de débito tributário (...)”
“(...) O que se censura e pune aqui - embora isso também não possa deixar de ser levado em consideração – não é tanto o não-pagamento à Previdência, mas o fato de descontar ou reter certa quantia do valor do salário devido ao empregado, ou, dependendo da hipótese, a terceiro que preste serviço mediante pagamento sujeito a retenção, e não repassar esse valor que o próprio empregador, por iniciativa sua, julgando que era devido, estima mas deixa de recolher à Previdência Social. (...)”
“(...) Simplesmente formal, não.(...)
Como se vê do trecho acima transcrito, a principal conduta punida, para o Ministro Cesar Peluso, é a de descontar ou reter certa quantia do valor do salário devido ao empregado, embora se puna também o não recolhimento à Previdência. Rebatendo essa posição, o Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão, afirmou: “o crime não está no primeiro passo, no desconto; está na ausência de recolhimento do que descontado e que seria devido à Previdência.” Efetivamente, parece que a razão está com este último, pois o desconto ou retenção decorre de uma obrigação determinada por lei. Ou seja, o desconto é lícito mesmo que a exigência tributária venha a ser posteriormente declarada ilegal ou inconstitucional.
O Ministério Público Federal, ao interpretar a decisão proferida pelo STF no Inq. 2537 AgR/GO, sustentou que sua ementa se distanciou do que foi de fato decidido. Essa argumentação foi feita perante o STJ, no EDcl no HABEAS CORPUS Nº 96.348 – BA, onde o acórdão reputado omisso, de Relatoria da Ministra Laurita Vaz, havia sido fundamentado na decisão do STF nos seguintes termos:
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO. DELITO MATERIAL. PRÉVIO ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. IMPRESCINDIBILIDADE. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE PARA A INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA. PRECEDENTE DO STF.
1. Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os crimes de sonegação e apropriação indébita previdenciária também são crimes materiais, exigindo para sua consumação a ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a Previdência.
2. O prévio esgotamento da via administrativa constitui, desse modo, condição de procedibilidade para a ação penal, sem o que não se vislumbra justa causa para a instauração de inquérito policial, já que o suposto crédito fiscal ainda pende de lançamento definitivo, impedindo a configuração do delito e, por conseguinte, o início da contagem do prazo prescricional.
3. No caso dos autos, constata-se o constrangimento ilegal, tendo em vista que o processo administrativo, no qual se imputou a existência de débitos tributários, ainda não havia chegado ao seu termo final, quando da instauração do inquérito policial para apurar a prática do suposto delito.
4. Ordem concedida para trancar o inquérito policial relativo à NFLD DEBCAD n.º 37.018.027-5, diante da ausência de justa causa para a sua instauração, por inexistir lançamento definitivo do débito fiscal, ficando suspenso o prazo prescricional até o julgamento definitivo do processo administrativo.”
Porém, o STJ não vislumbrou qualquer incongruência entre a ementa e os fundamentos do acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal no Inq. 2537 AgR/GO, e ainda acrescentou que a jurisprudência reiterada do STJ vem concluindo que o delito do art. 168-A é um crime omissivo material, mediante citação dos seguintes e recentes precedentes:
"HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA (ART. 168-A DO CPB). CRIME OMISSIVO MATERIAL. DÉBITO EM DISCUSSÃO NO INSS. APLICAÇÃO DO ART. 83 DA LEI 9.430⁄96. DECISÃO ADMINISTRATIVA DEFINITIVA. CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE. AÇÃO PENAL INICIADA ANTES DO ENCERRAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO-FISCAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM CONCEDIDA, NO ENTANTO, PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL.
1. O crime de apropriação indébita previdenciária é espécie de delito omissivo material, exigindo, portanto, para sua consumação, efetivo dano, já que o objeto jurídico tutelado é o patrimônio da previdência social, razão porque a constituição definitiva do crédito tributário é condição objetiva de punibilidade, tal como previsto no art. 83 da Lei 9.430⁄96, aplicável à espécie. Precedentes do STF e do STJ.
2. Parecer do MPF pela denegação do writ.
3. Ordem concedida, no entanto, para trancar a Ação Penal 2005.61.81.005020-0, em curso perante a 4a. Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, sem prejuízo de sua ulterior renovação, em sendo cabível." (HC 102.596⁄SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 09⁄03⁄2010, DJe 12⁄04⁄2010.)
"PENAL. HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. ART. 168-A DO CP. CRIME OMISSIVO MATERIAL. PENDÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. O crime de apropriação indébita previdenciária, consubstancia delito omisso material, exigindo, pois, para a sua consumação efetivo dano, já que o objeto jurídico protegido é o patrimônio da previdência social, motivo pelo qual a constituição definitiva do crédito tributário é condição de procedibilidade para que se dê inicio à persecução criminal. Precedente do STF (Inq-AgR 2537⁄GO).
2. Ordem concedida para trancar a ação penal instaurada contra os paciente, em tramitação na Quarta Vara Federal de Ribeirão Preto (Ação Penal 207.61.02.005389-3), por falta de justa causa, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia, após o exaurimento da via administrativa, ficando suspenso o curso da prescrição." (HC 122.612⁄SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 05⁄03⁄2009, DJe 30⁄03⁄2009.)
Como se vê, as últimas decisões do STF e do STJ têm indicado que se trata de crime material.
A prevalecer a tese de crime omissivo material, que exige o dano à previdência social para a configuração do delito, a consequência advinda é a que enquanto tramitar discussão administrativa sobre a exigibilidade do tributo será inviável tanto a propositura de ação penal, quanto a instauração de inquérito policial, o que será melhor abordado no tópico subsequente.
5- A EXIGÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL COMO CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
Superando o pensamento até então vigorante de independência entre as esferas administrativa e penal, atualmente o STF vem entendendo que só há crime contra a ordem tributária quando há tributo efetivamente devido e que somente se pode falar em tributo devido após o seu lançamento definitivo. Nesse sentido inclusive há a súmula vinculante nº 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária previsto no art. 1º, I a IV, da Lei 8137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
Diz-se que definitivo é o predicado do lançamento já não mais passível de discussão na esfera administrativa.
Calha destacar que as impugnações e reclamações administrativas – que têm o condão de suspender automaticamente a exigibilidade do tributo, por força do art. 151, III, do CTN– podem resultar em anulação, redução ou modificação da exigência fiscal. Assim, somente se pode ter como definitivamente constituído o crédito tributário pelo ato do lançamento após o encerramento do processo administrativo fiscal.
Sob a influência do pensamento de que os crimes contra ordem tributária são delitos materiais, isto é, que dependem do resultado naturalístico para sua configuração, o STF construiu o entendimento de que enquanto não for definido se o tributo é devido, isto é, enquanto pender o processo administrativo-fiscal, não se pode cogitar de ocorrência de dano à integridade do Erário (e, portanto, de crime), tampouco em início da ação penal para apuração. Nesse sentido:
“EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.
(HC 81611, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084)” (grifo acrescido).
Nesse momento, é interessante bem distinguir condição de procedibilidade e condição objetiva de punibilidade. A primeira está relacionada ao direito processual penal e representa a condição exigida pela lei para o exercício regular do direito de ação. A segunda está relacionada ao direito material penal e representa a condição exigida pelo legislador para que o fato se torne punível, condicionando a existência da pretensão punitiva do Estado.
O pensamento do STF é oscilante, ora entende que o término do processo administrativo fiscal é condição objetiva de punibilidade, ora que é condição de procedibilidade, in verbis, respectivamente:
“HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. REPRESENTAÇÃO FISCAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. DECISÃO DEFINITIVA DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. Denúncia carente de justa causa quanto ao crime tributário, pois não precedeu da investigação fiscal administrativa definitiva a apurar a efetiva sonegação fiscal. Nesses crimes, por serem materiais, é necessária a comprovação do efetivo dano ao bem jurídico tutelado. A existência do crédito tributário é pressuposto para a caracterização do crime contra a ordem tributária, não se podendo admitir denúncia penal enquanto pendente o efeito preclusivo da decisão definitiva em processo administrativo. Precedentes. 2. Habeas corpus concedido.
(HC 89983, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 06/03/2007, DJ 30-03-2007 PP-00076 EMENT VOL-02270-03 PP-00423 RTFP v. 15, n. 74, 2007, p. 349-352 LEXSTF v. 29, n. 342, 2007, p. 486-491) (grifo acrescido)
“HABEAS CORPUS" - DELITO CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA - SONEGAÇÃO FISCAL - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIO AINDA EM CURSO - AJUIZAMENTO PREMATURO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DA AÇÃO PENAL - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A VÁLIDA INSTAURAÇÃO DA "PERSECUTIO CRIMINIS" - INVALIDAÇÃO DO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO, DESDE O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA, INCLUSIVE - CRIME DE QUADRILHA - PRESCRIÇÃO PENAL DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO RECONHECIDA PELA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA - CONFIGURAÇÃO - DECLARAÇÃO DE EXTINÇÃO, QUANTO A TAL CRIME, DA PUNIBILIDADE DOS PACIENTES - PEDIDO DEFERIDO. - Tratando-se dos delitos contra a ordem tributária, tipificados no art. 1º da Lei nº 8.137/90, a instauração da concernente persecução penal depende da existência de decisão definitiva, proferida em sede de procedimento administrativo, na qual se haja reconhecido a exigibilidade do crédito tributário ("an debeatur"), além de definido o respectivo valor ("quantum debeatur"), sob pena de, em inocorrendo essa condição objetiva de punibilidade, não se legitimar, por ausência de tipicidade penal, a válida formulação de denúncia pelo Ministério Público. Precedentes. - Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I). Precedentes. (HC 86032, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 04/09/2007, DJe-107 DIVULG 12-06-2008 PUBLIC 13-06-2008 EMENT VOL-02323-02 PP-00360 RTJ VOL-00205-01 PP-00231)” (grifo acrescido)
Essa exigência de processo administrativo fiscal encerrado como condicionante da persecução penal (processual e material) dos autores dos crimes contra a ordem tributária, inicialmente, não foi aplicada pela jurisprudência à apropriação indébita previdenciária, justamente porque esse crime era visto como um delito formal.
Todavia, percebe-se que hodiernamente houve uma mudança de orientação das Cortes Superiores, que passaram a considerar o crime em comento um delito material e a partir disso passaram a aplicar a exigência também para a persecução criminal do autor do crime do art. 168-A do CP. Exemplo disso são os dois precedentes do STJ já citados no capítulo anterior (HC 102.596⁄SP, HC 122.612⁄SP), o AGRHC 109488/CE, o RHC 19.276/SP e HC 40.515/MT. E, no âmbito do STF, o já citado Inq. 2537 AgR/GO.
Ora, se a criminalização da conduta do agente que deixa de repassar à União as contribuições previdenciárias descontadas dos empregados instrumentaliza uma forma reforçada de cobrança dessas contribuições - prova disso é que, a partir da Lei 10.684/2003, o pagamento da dívida passou a extinguir a punibilidade do crime-, e se o delito requer a presença de dano à seguridade social para restar configurado, estão corretos os precedentes que não estão admitindo a persecução penal antes do momento de se aferir se as contribuições são realmente devidas.
Esse juízo, aliás, influencia até mesmo o dever jurídico de retenção. Convém trazer à baila decisão do STF que autoriza o substituto tributário a não realizar a retenção do tributo devido pelo substituído quando dito tributo estiver sendo ilicitamente exigido (RE 363852/MG), o que realça a importância da higidez do crédito tributário para que o desconto seja realizado.
6- EFEITOS DO PAGAMENTO SOBRE A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
O pagamento como causa extintiva da punibilidade era previsto no art. 34 da Lei 9.249/95, que previa um requisito temporal. Deveria o pagamento ser feito em data anterior ao recebimento da denúncia para alcançar esse efeito extintivo da punibilidade. Rezava o dispositivo:
“Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”
O parágrafo segundo, do art. 168-A, do CP, introduzido pela Lei 9.983/2000, trouxe a possibilidade de extinção da punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento do tributo devido antes do início da ação fiscal. Esse o teor da norma:
“§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.”
A doutrina penalista interpretou a expressão “ação fiscal” como equivalente a “ajuizamento da execução fiscal”, embora, em termos técnicos no âmbito do direito tributário, início da ação fiscal signifique o momento inaugural da atuação administrativa de fiscalização tributária.
Com a edição do art. 9º, parágrafo 2º, da Lei 10.684/2003, hoje regulamentado pelos artigos 68 e 69 da Lei 11.941/09, a partir do qual o STF passou a considerar que o pagamento do tributo devido, mesmo após o início da ação fiscal ou do recebimento da denúncia, tem o condão de extinguir a punibilidade, foi revogado tacitamente o parágrafo segundo, do art. 168-A, do CP.
Eis a redação do artigo 9º:
“Art. 9o É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”
Nessa direção, pode-se citar os seguintes precedentes do STF e do STJ, respectivamente:
“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESCONTADAS DOS EMPREGADOS. PARCELAMENTO E QUITAÇÃO APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, POR FORÇA DA RETROAÇÃO DE LEI BENÉFICA. As regras referentes ao parcelamento são dirigidas à autoridade tributária. Se esta defere a faculdade de parcelar e quitar as contribuições descontadas dos empregados, e não repassadas ao INSS, e o paciente cumpre a respectiva obrigação, deve ser beneficiado pelo que dispõe o artigo 9º, § 2º, da citada Lei n. 10.684/03. Este preceito, que não faz distinção entre as contribuições previdenciárias descontadas dos empregados e as patronais, limita-se a autorizar a extinção da punibilidade referente aos crimes ali relacionados. Nada importa se o parcelamento foi deferido antes ou depois da vigência das leis que o proíbe: se de qualquer forma ocorreu, deve incidir o mencionado artigo 9º. O paciente obteve o parcelamento e cumpriu a obrigação. Podia fazê-lo, à época, antes do recebimento da denúncia, mas assim não procedeu. A lei nova permite que o faça depois, sendo portanto, lex mitior, cuja retroação deve operar-se por força do artigo 5º, XL da Constituição do Brasil. Ordem deferida. Extensão a paciente que se encontra em situação idêntica. (HC 85452, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 17/05/2005, DJ 03-06-2005 PP-00045 EMENT VOL-02194-02 PP-00418 RTJ VOL-00195-01 PP-00249 RDDT n. 120, 2005, p. 221)”
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. LEI Nº 10.684/03. PAGAMENTO DOS DÉBITOS PREVIDENCIÁRIOS APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AGRAVO PROVIDO.
1. O pagamento integral dos débitos oriundos da falta de recolhimento de contribuição à Previdência Social descontada dos salários dos empregados, ainda que posteriormente à denúncia e incabível o parcelamento, extingue a punibilidade do crime de apropriação indébita previdenciária (Lei nº 10.684/03, artigo 9º, parágrafo 2º).
2. Precedentes do STF e do STJ.
3. Agravo regimental provido.
(AgRg no REsp 539.108/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 26/04/2007, DJ 14/05/2007, p. 405)
Portanto, atualmente, o pagamento integral do débito, realizado a qualquer tempo, é considerado como causa extintiva da punibilidade. A obtenção de regime de parcelamento implica apenas a suspensão da pretensão punitiva e também da prescrição penal, mas a extinção da punibilidade ocorrerá apenas com o adimplemento de todo o parcelamento.
7- AÇÃO PENAL E REQUISITOS ESPECÍFICOS DA DENÚNCIA.
A ação penal é pública incondicionada, e é da competência da Justiça Federal, pois o crime é cometido em detrimento dos bens da União, por força do art. 109, IV, da Carta Magna.
Há requisitos específicos da denúncia concernente à prática do crime de apropriação indébita previdenciária a serem observados pelo Ministério Público Federal.
Dentre eles pode-se citar a comprovação do pagamento de salário ou da comercialização da produção agrícola, de onde se extrairá, por presunção, a ocorrência do desconto da contribuição previdenciária devida pelo empregado ou pelo produtor rural.
A denúncia deverá ainda indicar o valor não recolhido devidamente discriminado, isto é, com diferenciação entre principal, multas, juros e atualização monetária, isso porque, conforme leciona José Paulo Baltazar Junior[4], a correção monetária, a multa e os juros não são rubricas arrecadadas dos segurados, mas agregados posteriormente, de modo que não são objeto do delito.
Além disso, se tiver havido sucessão na administração da pessoa jurídica, o parquet ainda tem de identificar o valor devido no período de gestão de cada réu.
8- TESE DAS DIFICULDADES FINANCEIRAS COMO EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE.
A jurisprudência majoritária admite a tese das dificuldades financeiras da pessoa jurídica como fato motivador da omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias, e excludente de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa, para o delito de apropriação indébita previdenciária.
Essas dificuldades, porém, devem ser provadas pela defesa, e não pela acusação, consoante disposto no art. 156 do CPP. Esse o entendimento do STJ:
“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. PRESCINDIBILIDADE DO ESPECIAL FIM DE AGIR OU DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS REM SIBI HABENDI). CRIME OMISSIVO PRÓPRIO.
DIFICULDADES FINANCEIRAS. EXCLUDENTE DA CULPABILIDADE. ÔNUS DA DEFESA. RECURSO PROVIDO.
1. O dolo do crime de apropriação indébita previdenciária é a consciência e a vontade de não repassar à Previdência, dentro do prazo e na forma da lei, as contribuições recolhidas, não se exigindo a demonstração de especial fim de agir ou o dolo específico de fraudar a Previdência Social como elemento essencial do tipo penal.
2. Ao contrário do que ocorre na apropriação indébita comum, não se exige o elemento volitivo consistente no animus rem sibi habendi para a configuração do tipo inscrito no art. 168-A do Código Penal.
3. Trata-se de crime omissivo próprio, em que o tipo objetivo é realizado pela simples conduta de deixar de recolher as contribuições previdenciárias aos cofres públicos no prazo legal, após a retenção do desconto.
4. A alegada impossibilidade de repasse de tais contribuições em decorrência de crise financeira da empresa constitui, em tese, causa supralegal de exclusão da culpabilidade – inexigibilidade de conduta diversa – e, para que reste configurada, é necessário que o julgador verifique a sua plausibilidade, de acordo com os fatos concretos revelados nos autos.
5. O ônus da prova, nessa hipótese, compete à defesa, e não à acusação, por força do art. 156 do CPP.
6. Recurso conhecido e provido para anular o acórdão recorrido, bem como a sentença, e determinar o retorno dos autos à primeira instância, a fim de que, afastada a tese em que se apoiava a absolvição, prossiga no exame da denúncia. (REsp 881.423/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2007, DJ 23/04/2007, p. 307)”
Ao passar por uma situação de dificuldades financeiras extremas, invencível, não se exige da pessoa jurídica que sacrifique o pagamento dos salários e a sobrevivência da empresa em favor do pagamento de tributos.
Como bem lembra João Paulo Baltazar Junior[5], o problema financeiro deve ser saneado e, além disso, deve ser considerada a situação pessoal de fortuna dos sócios ou acionistas:
“Não se pode admitir, de outro lado, que essa seja a sistemática adotada permanentemente para o financiamento da empresa, que precisa ser capaz de se manter por seus próprios meios. Não se pode aceitar, a pura e simples desconsideração do recolhimento das contribuições arrecadadas como sistemática normal de funcionamento, como opção livre e consciente do empresário. Se as medidas saneadoras não deram certo, não havendo outros recuross à vista, em outras palavras, se o empreendimento está inviabilizado, o caminho terá que ser o da autofalência, caso em que os créditos públicos terão o privilégio que merecem, pois a lei conferiu prioridade ao pagamento das contribuições arrecadadas. O supremo valor aqui não é a sobrevivência da empresa, pois esta, além de gerar empregos, deverá arcar com sua carga tributária, a reverter para o bem de toda a sociedade. Uma empresa inviabilizada pela permanente incapacidade de pagar os tributos decorrentes de sua atividade não pode continuar em funcionamento (TRF3, AC 20010399058127-7/SP, Peixoto Júnior, 2ª T., u., 12.8.03; TRF4, AC 97.04.697465/RS, Fábio Rosa, 1ª T., u., 1.6.99). (...) Deverá ser verificada, também, a situação pessoal de fortuna dos sócios ou acionistas, pois há casos em que a empresa está mal, mas o empresário está bem (TRF4, AC 96.04.30199-3/RS, Amir Sarti, 1ª T, u., DJ 14.10.98 (...)”
Verifica-se que a existência de crise financeira na empresa, apontada como causa da consumação da apropriação indébita previdenciária, poderá funcionar como causa supralegal de extinção da culpabilidade.
9- CONCLUSÕES
Após esse breve estudo, pode-se enunciar os seguintes aspectos sobre o tema estudado:
1- o legislador penal dispensa um tratamento mais gravoso ao autor da apropriação indébita previdenciária relativamente ao sonegador de contribuição previdenciária, o que sem dúvida viola o princípio constitucional da razoabilidade.
2 – o precedente mais recente do pleno do STF, rompendo com tradição anterior que o considerava crime omissivo formal, passou a entender o delito previsto no art. 168-A, do CP, como crime omissivo material, isto é, aquele necessita de dano à seguridade social para a sua consumação, entendimento também seguido pelo STJ;
3- tanto o STF quanto o STJ estão exigindo o lançamento definitivo, assim considerado o erigido após o término do processo administrativo fiscal, como condição objetiva de punibilidade do delito;
4- o pagamento integral do débito, a qualquer tempo, extingue a punibilidade, enquanto que o parcelamento do débito é considerado causa suspensiva da pretensão punitiva;
5- a tese defensiva das dificuldades financeiras é acatada pela jurisprudência como causa supralegal excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, mas requer a demonstração de as dificuldades são extremas, incumbindo o ônus da prova à defesa.
10 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Frederico A. Di Trindade. Direito Previdenciário Sistematizado. Porto Alegre: Juspodivm, 4ª edição, 2013.
BALTAZAR JUNIOR, de José Paulo. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 19ª ed., 2007.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª Ed., 2010.
DIAS, Eduardo Rocha; MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: Método Editora, 2ª ed., 2010.
SOARES, Antonio Carlos Martins. A Extinção da Punibilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[1] Id., p. 29.
[2] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª Ed., 2010, p. 172.
[3] Id., p. 172.
[4] Id., p. 33.
[5] Id., p. 40.
Procuradora Federal desde novembro de 2007. Ex-Advogada da Caixa Econômica Federal. Especialista em Direito Previdenciário e em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal - ESMAFE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. O delito de apropriação indébita previdenciária e o processo administrativo fiscal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42417/o-delito-de-apropriacao-indebita-previdenciaria-e-o-processo-administrativo-fiscal. Acesso em: 22 nov 2024.
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